Reprodução de Internet. Fonte abaixo.
Masculinos e femininos (ciclo 1)
Sabe
o tema da beleza? E de “exposição” em redes sociais? Ou da nudez feminina? De selfies?
De “injeção de autoestima”? Bom, tudo isso aí pode levar uma boa parcela de homens
a simplesmente não entender nada do que se passa na cabeça de quem posta essas
coisas. E pior: que você, homem, caia na crítica automática. Não se engane, nas
Ciências Sociais e Humanas, isso também acontece. Ou seja: homens cientistas
fazem o mesmo que outros homens não cientistas fazem sobre o assunto: eles
desclassificam temas ligados ao “feminino” (social, cultura e historicamente
falando).
Não
se engane de novo: não é só em Humanas e Sociais, pesquisas na antropologia da
ciência e tecnologia vem demonstrando que mesmo os algoritmos são feitos
“masculinamente”, às vezes de modo racista também. Não se engane pela terceira
vez: isso também acontece em áreas ligadas à Biologia e comportamento animal,
como no caso da primatologia que, quando estudada por homens, compreendia e
representava os dados como visões “Masculinas”. Bastou uma primatologista
mulher (Shirley Strum) estudar os mesmos animais (orangotangos), que outros
resultados foram descobertos.
Gosto
de refletir sobre esse assunto partindo de uma mulher, a filósofa francesa
Simone de Bouvoir. Na década de 1970 ela falou sobre ser mulher e sobre a
relação masculino e feminino, concluindo que nessa relação as mulheres são
reféns da representação masculinizante da realidade do que, inclusive, é ser
mulher. Ou seja, fera, todos os exemplos que dei acima representam essa
“sacada” da Simone. Seja na Ciência seja em Redes Sociais, existe essa
“masculinização” da realidade.
O
que quero colocar em evidência são os limites das visões, não apenas como uma
crítica, mas também como um encerramento da realidade em uma perspectiva. Mas
não só isso (porque ficamos achando que se trata de “pontos de vista”).
Trata-se, muito mais, da capacidade de entender em um momento e entender mais
adiante. Aqui o melhor exemplo é a série Dark: o entendimento sobre a realidade
só é possível parcialmente e, mesmo assim, é limitado às nossas experiências a
cada momento.
Fechemos
esse ponto: masculino e feminino. Se tu entendeu esse papo, tu já pode falar
que entende de ontologia, fera. Porque o termo serve pra isso.
Cores, raça, classe e etnias
(ciclo 2)
Você
já teve a sensação de que não fazia sentido nenhum gastar R$ 5,000,00 naquela
calça jeans? Se sim, você está comigo, um homem que nasceu na classe pobre. Ou
seja: primeiro é um corpo masculinizado (gastar com roupa não é sua
prioridade), segundo, é um corpo “classicizado” (não faz sentido gastar tanto
pra comprar uma “mera” calça).
Entenda
esse ponto: feito Dark, está acontecendo tudo de novo, você não consegue
entender “o sentido do outro”. Você não pode. Assim como não pode enquanto
homem entender o “sentido” de certos hábitos ou comportamentos de mulheres.
Historicamente isso foi tornado “moda” e reproduzido, por exemplo, no cinema:
“guerras dos sexo”, “isso é coisa de mulher”, “mulher é bicho complicado”,
“quem pode entender o que se passa na cabeça de mulheres” (frase usada em Dark
pelo Egon para explicar o desaparecimento de Agnes). O cinema, contudo, não
apenas “molda” a realidade como também é “moldado” pela “sociedade” (o mesmo
vale para a mídia, moda etc. – Thiago Pinho e Thays Souza que merecem o crédito
aqui).
No
caso do tema raça e cor, mas também etnicidade e indianismo, não acontece
diferente (“nunca duvide disso” [Dark de novo! Meu Deus!!! Rs]). Lendo a Neuza
Santos Souza eu entendi o que não entendia no passado. O relato de experiências
de mulheres negras e a narrativa de Neuza, escritora, psiquiatra e psicanalista
brasileira, mulher negra, provocaram meu eu, como do tipo “quem eu era antes de
te conhecer” (Filme, amores e amoras): meu Eu passado não tinha ferramentas
suficientes para entender a realidade de um corpo “colorificado”,
“masculinamente feminilizado”, “classialmente estigmatizado também”, não só
pela “colorificação” que pejorativa toda a possibilidade de abrir a dimensão
perceptiva da beleza do corpo negro [e aí, já tá tendo alguma “sacada” sobre
uso de Rede Social e o tema do “feminino” e do corpo de mulheres? Eis uma
deixa...].
Certo,
faltou a indianidade. Quando falamos em etnia, estamos falando de “grupos de
pessoas” e suas “origens, descendências” e hábitos e praticas (alguns e algumas
chamariam isso de “a cultura” dos índios e das índias, prefiro reduzir à escala
conceitual mais simples, “menor”: hábitos e práticas experienciadas). Assim,
quando você não entende uma pratica de um índio ou índia, você pode lembrar: é
que você não foi “indianizado”; você foi, como eu, masculinizado, classicizado,
racializado, etnicizado dentro de um coletivo de pessoas específico e cuja
origem foi “perdida” (eu não sabia, mas meu individualismo foi “aprendido” e
ele é um valor europeu moderno que “zarpou” de navio para as colônias – que nem
o mosquito da dengue que veio em “navios escravizantes de pessoas pretas”,
neste caso, escravizadas por pessoas portuguesas de descendência mista, como
árabes, mulçumanos, entre outros; e aí eu, inconscientemente, alimentei ele com
o consumo que faço de música, de cinema, de filosofia greco-alemã
principalmente – tudo tem uma origem e um fim, mas no caso da “cultura
colonial”, não, que nem Dark [¬¬]) , onde tudo se repete infinitamente).
Fechemos
esse 2º “ciclo”.
O erro (o 3º e último ciclo)
Até
agora pode ter parecido que fui pessimista, e até reducionista e simplista, e
que estou dizendo que não conseguimos “sair” de quem somos. Conclusão possível,
mas não intencional. Não é essa a resposta que busco, na verdade. É exatamente
seu contrário: como sair desse ciclo? A questão é “como mudar?”. Afinal, não
podemos ir no nosso passado (Dark) para contar pro nosso Eu passado o que
“sabemos” agora. Isso não mudaria o Eu do passado, apenas o informaria. Mas
isso geraria a possibilidade de esse Eu do passado seguir outros caminhos e,
portanto, ele viveria novas experiências, podendo, enfim, mudar quem é.
Vamos
fazer o mesmo “movimento temporal”: falei de homens e mulheres, vamos chamá-lo
e chamá-la de Jonas e Marta pra brincar um pouco. Existe um desentendimento
sobre o ser homem e ser mulher: quando você parte do homem para falar da
mulher, você perdeu a vida de ser mulher, o que você mantém são suas visões
masculinizadas sobre o feminino. O inverso dá no mesmo. Quando você parte do
branco pra falar da preta. Aconteceu de novo. Quando você parte do yanomami
indígena, David Kopenawa, para falar do homem branco, dá no mesmo. Há sempre um
limite e uma perda: “o que sabemos sobre o universo é sempre uma gota, enquanto
ele é um oceano” (Dark).
O
erro que limita a gente é achar que é pela via do conhecimento que
transformamos o mundo. Mas sendo sempre dualistas. Acreditamos que sairíamos
desses dois polos (homem branco para o indígena; preto/branco pra cor; rico/pobre
pra classe – ora, não é a origem religiosa do legado judaico-cristão, no
Ocidente, “o bem e o mal”?). Nas Sociais e Humanas o caminho se refletiu em “epistemologias”
postas em igualdade, em “simetria”. Percebe que a gente fez o mesmo que um homem
masculinizado que não “entende” o uso de Redes Sociais por parte das mulheres?
Mas essa estrutura perceptiva “dualizante” nos aprisiona em um limite: a chave
interpretativa coloca o problema de um jeito, mas não pode sair dele. O Davi
Kopenawa não ficou no dualismo. Ele escapou dele quando não separou a
Humanidade do Mundo (não somos “humanidade”, somos “o mundo”, “somos a
natureza”, “somo com”, poderíamos sugerir). Ele simplesmente disse que
morreremos juntos com a “queda do céu”, isto é: quando as florestas morrerem e
os rios secarem o céu vai desabar.
Encerrar
o dualismo não é, contudo, nem diminuindo (somos um) e nem multiplicando (como
se sugere com a noção de ontologia). Também não é mudando, apenas, pois caímos
noutro dualismo: “mudar/permanecer”. A experiência é a saída (viver cairia no
viver/morrer: dois verbos, dois predicados para o substantivo ser). A
experiência não pode ter um oposto substantivo. Ou seja: você só cai no
dualismo da negação, da não-experiência, ou inexperiência. Mas isso é um
dualismo fundante: sim/não. Quer dizer que remete ao fundamental: a escolha. A
escolha de viver uma experiência ou não.
Finalmente:
você não tem que nascer de novo para entender melhor outros corpos, outras
pessoas. A questão também jamais foi essa (mentira: durante um TEMPO foi sim).
Não é como você pode se colocar no lugar do outro (porque você não pode). É
como você se cala, “produzindo” silêncio diante do outro e aceita a diferença
inescapável entre você e os outros. Acolha sua limitação. Não precisa achar que
é “valorizando o saber” do outro que as coisas vão mudar. Esse foi o primeiro
passo que o século XX, pós-colonial, tentou dar dentro das Ciências Sociais e
Humanas. Mas muito ainda precisa ser feito. Isso tem que sair para o mundo. Mas
enquanto “vai saindo”, você precisa dar o segundo passo. É o que Morfeu disse a
Neo em Matrix 1: “existe uma diferença entre conhecer o caminho e trilhar o
caminho”. É rompendo com a nossa autoimagem e definição de mundo e da presunção
de saber mais e melhor que os outros. É a própria herança moderna que acolhemos
e que criou uma versão de realidade que precisa ser superada.
Acolher,
calar-se, “viver-se”. Deixai os outros corpos “viverem-se”. Ao viver-se você
nota, “que nem” Matrix, que não é o mundo “exterior” que muda (no filme era uma
colher), é você mesmo ou mesma quem “muda-se”. Ao fazer isso, você acolhe o
outro, sem precisar confundir o mundo do outro dentro da sua Ciência
modernizadora. Sua Ciência não é uma caixinha da qual você retira uma
ferramenta para “conhecer” o outro: assim como o outro não vai te conhecer pela
caixinha dele (epistemologias). O outro
apenas vai te conhecer e você vai conhecê-lo. Sua Ciência não é pra conhecer
ninguém. A Ciência, Gabriel, é o que tu usa para fazer pesquisa acadêmica sobre
pessoas e coisas diferentes. Ela te dá a sensação de que tu conhece as pessoas.
Mas tu não conheces elas (e nem a ti – diriam psicólogas, terapeutas holistas
e certos filósofos gregos). O que você conhece, Gabriel, são as formas pelas
quais as pessoas estão lidando com a Covid-19 no teu bairro!
(Falando na
primeira pessoa). Antes eu conheci como pequenos grupos de cientistas sociais,
agrônomos e agrônomas lidavam com agrotóxicos ou defensivos agrícolas (uso o
termo agrotóxico). Antes eu conheci como certos e certas cientistas sociais
mudavam de teorias, incorporando teorias de gênero e pós-colonialidade. Noutra ocasião
eu conheci como entomologistas descobriam informações sobre o Zika vírus.
Quando juntamos o que nós conhecemos, temos a impressão de que estamos falando
de “saberes” e que essa é a chave: mas a diferença entre conhecer um vírus e
conhecer uma pessoa é gigante: pois conhecer não é conviver. A antropologia
ensina a com-viver. Não é o mesmo que “conhecer alguém”. É como um namoro:
conviver é uma coisa, outra é conhecer Redes Sociais da pessoa, ler seus posts,
trocar afetos etc.
Neste sentido,
a antropologia pode nos ajudar a com-viver, ao invés de “com-saber”. Eis o que
o antropólogo britânico e herdeiro dos frutos do colinialismo de seu povo, Tim
Ingold, chamaria de sabedoria. Com-vivendo, quem sabe, cultivemos mais a
herança “sabedorial” de tantos eus que existiram e que existem por aí,
inclusive "eus" como “nós” mesmos e mesmas.
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