sexta-feira, 30 de agosto de 2019

Sociologia Associativa – Introdução ao Pensamento de Latour III


            Seguindo os posts introdutórios ao pensamento de Latour, agora apresento a sociologia associativa. No mesmo espírito dos posts anteriores, cabe destacar a oposição de Latour a outras abordagens. Neste caso, à sociologia funcionalista, a qual ele chama de sociologia do social. Mas é preciso novamente se manter em mete o foco sobre a ação (ao movimento) no qual as “coisas acontecem” e “produzem algo”.
            Para Latour – principalmente em Reagregando o social: uma introdução à teoria “do” ator-rede -, o funcionalismo e sua vocação para explicar interações sociais por meio de estruturas de consciência coletiva que se imporiam sobre os indivíduos de modo coercitivo, seria uma modalidade sociológica que separava o que era “conteúdo” ou “construção social” de um lado, e todo o resto não social, do outro. Assim, por exemplo, existiria um reino da biologia, da economia etc., independente do social. Para explicar, então, a ciência, seria necessário identificar como fatores sociais influenciariam a ciência – mas não permitiriam estudar o conteúdo da ciência. Cabe lembrar, aqui, que a sociologia da ciência com Merton e, ainda, com o criador do princípio de simetria, ainda preservava essa separação de um reino social “anterior” à ciência (Merton), ou “dentro” do conteúdo da ciência (Bloor).
            Com a sociologia associativa, por outro lado, o social se diluiria, não sendo um reino à parte de outras áreas. Desse modo, as interações entre elementos heterogêneos, como mosquitos e seres humanos, por exemplo, resultariam em associações produtoras “do social”. Como a ação é que está em jogo, então a observação seria voltada para descrever o processo pelo qual o social emergiria como resultado, não como causa da ação. Se Bloor e Merton explicariam um fenômeno por meio de uma causa social que os provocaria, Latour descreveria como o social foi produzido como resultado de associações, não como a causa dessas associações.
            A partir de um exemplo pessoal, eu pesquisei como agronomia e ciências sociais interagiam com agrotóxicos na UFRPE, em 2016. Analisando ementas de cadeiras de ambos os cursos e realizando observação participante (assistindo aulas de cadeiras dos dois cursos), decidi utilizar a abordagem de Latour como referencial teórico. O que fiz foi então analisar como as aulas eram situadas e enquadradas em cada ambiente conforme ementa, e quais eram as associações que a agronomia e as ciências sociais mantinham com agrotóxicos. Como resultado, mapeei duas redes de associações distintas e em conflito, nas quais diferentes seres e substâncias eram, cientificamente,  mobilizados para a formação de pesquisadoras/es das duas áreas analisadas.
            Num contraste, poderíamos analisar as mesmas circunstâncias com a hipótese de que existiria uma força ideológica por trás dos dois cursos, uma de trabalho contra o capital; outra de capital contra o trabalho. Isso explicaria porque agronomia estaria associada ao agronegócio e ciências sociais à agreocologia. Por conseguinte, também poderia explicar porque existe mercado de trabalho amplo para agronomia e um amplo exército industrial de cientistas sociais de reserva, desempregados. Ou, ainda, poderíamos tentar compreender como a estrutura de reprodução da desigualdade permitiria certa autonomia aos campos, relativa, mas ainda assim, condicionada por outros campos, como a economia e a política.
            Se esse tipo de análise explica a desigualdade por meio de suas lentes, a sociologia associativa não faz o mesmo, ela se propõe a observar como as diferentes interações geram cursos de ação e alianças distintas. O lema, como diz Latour, é seguir os atores. Não falar em nome deles; nem escolher entre um e outro. Essa postura, normalmente criticada, não decorre apenas de uma questão ética, mas também de uma questão teórica: se o social emerge das relações, não cabendo explicar forças “sociais” por trás da ação, então como poderemos descrever um processo cujo resultado ainda está em construção, se já definimos de antemão suas causas?
            Outra controvérsia pode ilustrar uma situação distinta da controvérsia entre agronomia e ciências sociais – já que esta parece exigir que escolhamos entre qual dos lados está certo no modo como interage com agrotóxicos. Trata-se de uma controvérsia que analisei recentemente: sobre a capacidade vetorial de mosquitos comuns transmitirem o vírus Zika. Isto é (perguntaram-se entomologistas da Fiocruz de Recife): será que os mosquitos comuns, além dos mosquitos da dengue, conseguiriam transmitir o vírus Zika? Resultado: elas concluíram após testes de laboratório, que sim, eram potenciais vetores. No entanto, outros pesquisadores fizeram a mesma experiência, mas na Fiocruz do Rio de Janeiro, e concluíram o oposto: “não, mosquitos comuns não transmitem Zika. Recife deve estar errado”. Eu, sociólogo à época, explicaria que existia uma causa social por trás das duas instituições que, consequentemente, estaria influenciando os resultados científicos? Deveria apenas descrever a controvérsia e, especialista que sou em entomologia, me tornar o árbitro da controvérsia dizendo, “a regra é clara, meu time, recifense, está certo e ganhou o jogo porque saiu na ofensiva”? É por isso que a regra na sociologia associativa é “seguir os atores”, pois quem vai finalizar a controvérsia são os atores (actantes). Não “a gente”, que pesquisa a controvérsia “de fora”.
            A ideia de rede aparece nesse “rastro” deixado pela “trilha” que os atores vão desenhando na medida em que fazem e desfazem associações. Antes da epidemia de Zika, por exemplo, os mosquitos comuns eram pouco estudados no laboratório de entomologia; mas assim que a associação da doença misteriosa à época, “dengue fraca”, foi associada com o vírus Zika, descoberto em 1947, em Uganda, a situação mudou. O laboratório rapidamente começou a investir em pesquisas sobre Zika e, depois, Zika e Culex quinquefasciatus (mosquito comum). Seguindo essas associações, ao invés de identificar causas sociais por trás da mudança de práticas no laboratório, decidi seguir os atores. Como um etnógrafo fiquei observando todo o processo de produção até onde ele ia e, novamente, fiz certo mapeamento das associações em torno do Zika. Como resultado, pude compreender como a experiência de um local (laboratório) possibilia alistar aliados (agencias de fomento, parcerias internacionais, outras instituições) em busca da produção de respostas para lidar com a epidemia e, em seguida, essas alianças permitem com que o resultado das experiências seja comunicado/transportado para fora do laboratório. O que permite com que se desenvolvam políticas públicas e, em geral, “altere as interações sociais” ou, finalizando com Mary Douglas, modifica o modo como lidamos com a poluição (epidemia).
           

quinta-feira, 29 de agosto de 2019

Por que antropologia simétrica? – Introdução ao pensamento de Bruno Latour II

O princípio de simetria: origem

O principal livro de Latour no qual se encontram os princípios de uma antropologia chamada simétrica é Jamais fomos modernos: ensaios de antropologia simétrica. Alguns anos depois, Latour fez críticas e reconheceu as falhas desse projeto em Políticas da natureza: como fazer ciência na democracia. Outro livro em que alguns princípios sobre o assunto podem ser encontrados é em A esperança de Pandora: ensaios sobre a realidade dos estudos científicos.
Tal como na postagem anterior, cabe alguma contextualização sobre contra quem Latour estaria se opondo ao falar em simetria. Mas antes, é fundamental lembrar que a ideia de simetria veio originalmente do trabalho de David Bloor e Barry Barnes, chamado de o Programa Forte em Sociologia do Conhecimento. Para esses autores, simetria era um princípio segundo o qual não deveríamos opor crença e razão, verdade e falsidade, mas antes, identificar como tanto a ciência quanto a crença seriam causadas por fatores sociais externos. Bloor analisou como mesmo o conteúdo de diferentes abordagem matemáticas, foram transformados por razões sociais externas aos dados produzidos por matemáticos.
Em Vida de Laboratório: a construção dos fatos científicos, Latour e Steve Woogar aplicaram o conceito de simetria de David Bloor, mas perceberam que ele se limitava a causalidade social, ou a cultura, ignorando a participação de não-humanos (da natureza) na fabricação dos fatos científicos. Para retomar um exemplo do post anterior sobre Latour, voltemos para o caso de minha pesquisa sobre vírus Zika em um laboratório da Fiocruz em Recife. Se aplicássemos a simetria como Bloor sugeriria, eu deveria investigar como fatores sociais causaram a produção de fatos sobre Zika; por outro lado, a participação de mosquitos, máquinas e o laboratório como um todo, seriam ignorados.
Para Latour, incluir essa não humanidade (objetos, insetos, máquinas etc.) e estudar a ação em movimento, possibilitaria observar a relação que mediaria os testes de laboratório. Quando falo em mediar, estou me referindo à capacidade dos envolvidos de agir, de produzir a realidade como resultado de suas práticas e rotinas. O que é o oposto do que Bloor desejava, já que para esse sociólogo, cuja influência da sociologia clássica via Durkheim é assumida em seu livro Conhecimento e Imaginário social [1976], a relação de causa e efeito do social sobre a ciência que deveria explicar o ordenamento da ciência como parte de uma estrutura social.
Lembremos: Latour está o tempo todo interessado em abandonar o olhar para uma estrutura por trás dos agentes (ver Reagregando o Social: uma introdução à teoria do ator-rede). É ação e seu movimento que interessa. Quando isso fica claro, podemos então “seguir os atores” conforme eles e elas vão modificando as relações entre humanos e não-humanos.

Simetria generalizada

Apesar de outros autores, como Michel Serres e Michel Callon terem desenvolvido o princípio de simetria generalizada, no Brasil esse princípio parece ter ficado mais conhecido via Latour, que, claro, dialogou e foi influenciado por esses autores. Quando Latour fala em simetria generalizada, ele está adaptando a abordagem de Bloor, ao incluir a dimensão não-cultural – a natureza – e os não-humanos na análise. Mas no que isso resulta?
Em Jamais fomos modernos... Latour diz que a chamada modernidade européia se desenvolveu com ajuda da filosofia da época e com o progresso da ciência, passando por Déscartes e Kant. Seu resultado foi separar o que seria cultura do que seria natureza. Apesar de parecer um absurdo, conforme a antropologia desenvolveu o conceito de cultura para compreender as representações culturais de cada povo sobre a natureza, ocorria uma essencialização do que seria “natureza”. Isto é: a natureza seria algo universal, independente das representações que cada cultura teria dela. Resultado? Apenas nós, modernos, poderíamos, por meio da ciência, o que seria a natureza, já que conseguíamos produzir conhecimento independentemente das crenças. Essa seria nossa diferença para outros povos: “eles” são irracionais e suas crenças os impede de serem objetivos; nós, modernos, descobrimos um modo de alcançar a verdade, que seria a representação correta da realidade (2 + 2 = 4; a gravidade é inegável etc.). Qual é o problema dessa conclusão, afinal?
O problema é que não aceitamos que fazemos as mesmas coisas que as outras culturas: nós inventamos um conceito para interpretar as representações de outros povos – o conceito de cultura. Mas nos escondemos por trás da ciência como se não fossemos uma cultura como outras. Também representamos a realidade. Por que então seriamos tão diferentes?
O lado negativo dessa conclusão é que não sairíamos do relativismo cultural. Em outras palavras, se tudo fosse representação, então não faria mais sentido pensar em objetividade ou universalidade ou, politicamente, um bem comum. A solução, por sua vez, seria inverter os termos: propor uma antropologia que abandonasse a busca por representações culturais. Novamente, vem a questão da mudança de abordagem: seria preciso abandonar a velha antropologia para investigar como cada povo (“coletivo”) produziria sua própria natureza-cultura. Dito de outro modo: ao pesquisar qualquer povo, deveríamos observar como a mediação humano/não-humano poderia ser vista como uma relação que constrói (performa) a realidade. Esse é, aliás, o fundamento do conceito de “híbrido” – coisas compostas pela relação humano/não-humano: um celular, o buraco na camada de ozônio, uma bicicleta, um isqueiro, uma doença, o vírus Zika etc. São híbridos porque são parte Natureza, parte Cultura; são parte matéria, parte símbolo. Olhar para esses híbridos é olhar para os efeitos da ação. Por isso, cabe reforçar, não devemos olhar para como as estruturas sociais ou as representações culturais ordenam nossa sociedade; ao contrário, devemos estudar como a relação humano/não-humano produz, fabrica, constrói a sociedade, ou o coletivo – ou, nos termos clássicos, a natureza/cultura.
Caso essas ideias sejam levadas a sério, então deveríamos aplicar esse princípio de simetria a nós mesmos: à ciência e à tecnologia; ao nosso próprio coletivo (nossa sociedade). Latour admite que quando desejamos fazer uma antropologia simétrica, perdemos o exotismo, característica tão marcante da antropologia clássica, acostumada a pesquisar povos não ocidentais. Desse modo, aplicando o princípio de simetria, somos capazes de perceber que nossa suposta autenticidade “moderna” esconde nossa semelhança com outros coletivos (não-ocidentais), pois nós mobilizamos humanos e não humanos para produzir nossa sociedade e, claro, nosso político almejado bem comum.
Concluindo, falar em simetria não seria, em Latour, uma maneira de “descolonizar” a ciência. Trata-se, sim, de aplicar os mesmos princípios que aplicamos aos outros, a nós mesmos. Por que não conseguíamos estudar nossas “sociedade complexa” como um bom etnólogo conseguiria estudar a bruxaria Azande ou as Cosmologias Amazônicas, ou ainda, os rituais religiosos e a hierarquia hindu relacionado-as a política, ao parentesco, as regras de matrimônio, a educação etc.? Em outras palavras: por que quando estudamos nossa sociedade, só conseguimos estudar o marginal, o excluído etc., nunca a ciência, a tecnologia, as elites e sua relação com a totalidade de nossa sociedade? Eis o objetivo da antropologia simétrica.



quarta-feira, 28 de agosto de 2019

Introdução ao pensamento de BRUNO LATOUR I


I
Zelando por clareza e brevidade, busco apenas introduzir o pensamento do filósofo de formação Bruno Latour. Este é um texto cujo público alvo são estudantes universitárias/os que se interessam pela obra deste autor, mas ainda pouco o conhecem.
Creio que seja essencial compreender primeiramente quem Latour buscou combater e como ele desenvolveu essa “luta”. De seus trabalhos mais próximos a uma etnologia incomum, voltada para “nossa sociedade”, estudando ciência e tecnologia; abrindo mão de investigar o exótico (etnias indígenas, por exemplo), até chegar à antropologia simétrica e, mais tarde, à sociologia associativa (tudo isso podendo ser simplificado pelo termo teoria do ator-rede), Latour foi se opondo ao estruturalismo (Lévi-Strauss), à teoria crítica (Bourdieu), ao funcionalismo (de tradição britânica e seu criador, Durkheim), à desconstrução e ao interpretativismo (Geertz) – principalmente aos chamados pós-modernos.
Se entendemos contra quem Latour veio se opondo há aproximadamente 50 anos, agora perguntamos como isso foi feito. Acho que é fundamental que “esqueçamos” de nossas certezas teórico-metodológicas. Em segundo lugar, é preciso ser prático, pois, se eu conseguir ser claro como desejo, veremos que a teoria ator-rede é mais simples do que aparenta.
Ao invés de acreditarmos na ciência e na razão, façamos como faz um etnógrafo: vamos ao campo (não problematizemos esse termo). Quando fazemos esse movimento simples, passamos a observar cientistas sendo financiados, instalados em laboratórios cheios de máquinas, utilizando manuais e repetindo rotinas com diferentes amostras de coisas da natureza. Se deixarmos de lado debates filosóficos sobre epistemologia e nos tornarmos observadores participantes – como a antropologia nos ensinou -, perceberemos que fazer ciência é como fabricar um carro, por exemplo (Cf. Ciência em Ação; Vida de Laboratório).
Por outro lado, “não acreditar na ciência” não deve ser levado ao pé da letra. Trata-se apenas de deixar certezas de lado e estudar a ciência na prática; observar como cientistas constroem a ciência – ou como produzem fatos. A partir desta experiência, novas interpretações (e conceitos) surgiram...

II
Reduzindo a ciência  às práticas (lembrar que Foucault já havia sinalizado esse caminho em A arqueologia do saber), isto é: no estudo de práticas científicas, Latour incluiu a participação do que chamamos de coisas e natureza na análise. Ao invés de fazer como Marx, que falou em relações sociais entre coisas (fetichismo), Latour tentou compreender o que aconteceria se levássemos a sério nossa relação com essas coisas (objetos e não-humanos em geral). Porque essas coisas, principalmente o que ele chamava de técnica, seria o que nos distinguiria de outras espécies de animais, como os macacos (Cf. seu trabalho com a primatóloga Shirley Strum, redefinindo o “link” social: de babuínos a humanos  (https://journals.sagepub.com/doi/abs/10.1177/053901887026004004 ).
Pesquisar a técnica, então, permitiu-lhe concluir que as interações humanas eram mediadas pela presença de não-humanos, de objetos. Aqui ocorre o abandono da ideia de uma racionalidade intencional, humana, por trás da ação. Trata-se, antes, de observar a ação em movimento – as coisas acontecendo – e identificar como uma situação pode ser compreendida pela simples descrição das coisas interagindo e produzindo novos efeitos.
Vê-se, assim, que Latour se concentra em abordar a ação. Por isso, não se trata de observar por meio das técnicas e da materialidade, como a cultura se perpetuaria nas interações entre culturas (culturalismo); também não se tratava mais de se chegar a uma ordem social que estruturaria os rituais ou a ação dos indivíduos (antropologia social). Mas também não se tratava de tornar tudo discurso (interpretativismo) ou desconstruir os significados e seus “jogos” de diferença (Derrida). Tratava-se de investigar como a materialidade e os símbolos faziam parte das relações antes consideradas apenas intersubjetivas, porque ocorreriam apenas entre humanos. Ao colocar esses não humanos na interação, o olhar investigativo deveria se concentrar em “seguir” as redes em que a ação vai se desenvolvendo.
Numa pesquisa recente, fiz isso com o vírus Zika. Então primeiro identifiquei em quais locais o vírus estava circulando e escolhi o Instituto Aggeu Magalhães para observar como esse vírus circulava por lá. Então descrevi o ambiente, pesquisei sua fundação, sua história e analisei como as máquinas (de PCR, centrifugadoras, máquinas de macerar, computadores) permitiam com que amostras de mosquitos fossem estudadas por cientistas cujo intuito era produzir fatos novos sobre Zika. Ao fazer isso, percebi como as máquinas mediavam a produção dos fatos: a relação entre cientistas e mosquitos jamais foi a mesma depois da invenção das máquinas citadas. Assim, mosquitos chegavam ao laboratório e eram transformados em informação – como resultado de artigos científicos ou saiam em audiovisuais, como resultado de entrevistas feitas por jornalistas. Com isso, conclui que  a ação – epidemia de Zika -  passavam por diversas transformações até se tornar informação circulando em telejornais, possibilitando a mudança de comportamentos. Além disso, os interesses (intenções) humanos não desapareciam do processo: o governo financiava pesquisas por meio, por exemplo, da FACEPE, CNPq, Capes, no intuito de fazer políticas públicas e tomar decisões político-sanitárias; cientistas com suas carreiras pela frente buscavam contribuir realizando as pesquisas com o financiamento recebido e, assim, produziam fatos; a mídia, como comunicadores que são, visavam “conscientizar” o público em como combater a epidemia e, assim, mantinham seus investidores privados nos intervá-los de sua programação; a “população” tomava consciência da relação entre seus sintomas e a nova doença, o vírus Zika e, mais tarde, sobre microcefalia e Síndrome Congênita de Zika. E por aí vai...
Por ora, nessa parte, o mais importante é atentar para o movimento. Trata-se de uma teoria da ação, que cada vez mais dialoga com o pragmatismo (não utilitarista) estadunidense (o blog do sociofilo tem sido um grande difusor do pragmatismo no Brasil: ver: https://blogdosociofilo.com/tag/bruno-latour/). Por isso, é o olhar investigativo que tem que ser modificado. É preciso apenas observar como as coisas vão se transformando conforme vão trafegando entre os locais (um mosquito circulava pela paisagem; tornou-se amostra estatística congelada em microtubos; foi amplificado em uma máquina e seu RNA foi separado dele; essas informações se tornaram número; esses números foram interpretados por cientistas que concluíram que o Zika vírus estava ou não presente nas amostras; esses resultados circularam como artigos científicos ou matérias de jornal e televisão; as pessoas mudaram suas práticas depois de saber que o mosquito da dengue transmitia Zika?).
Nos (possíveis) próximos posts, falarei sobre antropologia simétrica e sociologia associativa, passando por conceitos desenvolvidos por Latour.






terça-feira, 27 de agosto de 2019

Contra a CIÊNCIA: Explicando o BOLSONARISMO e sua IDEOLOGIA


Como se comportam, como pensam e como é a estrutura social que ordena a consciência social de grupos políticos relacionados ao regime bolsonarista?

Na antropologia, a questão acima pode ser feita para se compreender o “sistema social” de outros povos e culturas. Desse modo, se tornaria possível  compreender o sentido por trás das interações sociais e as crenças, por exemplo, sobrenaturais de um povo.
Não precisa ser diferente quando analisamos os bolsonaristas. Uma diferença essencial entre bolsonaristas e lulistas reside não na devoção religiosa de seus seguidores, mas em como o primeiro representa a moral religiosa – quase que inevitavelmente hipócrita – e o segundo uma moral tipicamente secularizada, na qual a moral se baseia no Estado de Direito – portanto laico.
Neste sentido, bolsonaristas, assim como seu representante, compreende a relação entre moral/religião e ciência como completamente separados, sendo a ciência subordinada à moral/religião. Não é à toa que as ciências sociais e humanas, assim como a filosofia, recebem o descrédito de bolsonaristas e são classificadas como ideologia.

IDEOLOGIA

Ideologia, por sua vez, sempre foi, para as áreas das ciências humanas e sociais, assim como para o Estado laico, o que substitui a moral religiosa. Dessa forma, o que se tornaria prioritário seriam as relações estabelecidas entre ideologias seculares e a ciência. Esta, a seu modo, ficaria a serviço da gestão política.
Quando bolsonaristas alcançaram o poder, sua principal arma foi a bandeira moral/religiosa – sua ideologia, não se enganem. Para combater o crime, cidadãos de bem se armariam contra o mal. Já o bandido, bom quando morto, representaria um tipo de pessoa que por escolha própria, mal caratismo e malandragem, caiu em tentação e seguiu o caminho “mais fácil”. "O cidadão de bem", muito pelo contrário, respeitaria a lei e teria princípios morais superiores, não se corromperiam. Assim como seu esforço o compensaria.
A compensação, portanto, seria sinônimo de mérito. "Se um cidadão de bem se esforça", então a graça divina recairá sobre ele. Não era justamente assim que a religião protestante conseguiu sedimentar o capitalismo ocidental (Max Weber) e mesmo a ciência utilitarista, baseada apenas nos resultados práticos e técnicos necessários ao desenvolvimento econômico liberal (Robert Merton)?
Então, neste caso, observamos que o comportamento de bolsonaristas estabelece duas coisas depois que se entende que a ciência está subordinada à moral religiosa: a) Educação voltada para fins econômico-liberais – o que exclui as ideologias das ciências humanas; b) Combate ao crime por meio da responsabilização individual, não social, baseada nessa mesma moral religiosa de um lado, liberal de outra.
No regime bolsonarista, existe um projeto de combate às ideologias dentro dos setores ministeriais de governo (como nas áreas de Direitos Humanos, Meio Ambiente, Educação, Ciência e Funai) e a promoção de princípios liberais em outros setores (Ministério do Trabalho, na chamada Bancada Ruralista – o agro é pop -, e, também, por meio da privatização de diversas empresas estatais).
Neste sentido, diríamos que no bolsonarismo, a crença religiosa está por trás do ordenamento político da sociedade. Mesmo que um bolsonarista não se diga religioso, eles estão até o pescoço reproduzindo uma consciência coletiva que mantém coercitivamente padrões de comportamento e de ideias que justificam essa crença e sua convicção moral. Assim, um terra-planista duvida da ciência, mas não de Olavo de Carvalho; duvida da NASA, mas não de seu líder; Ricardo Salles duvida dos dados do INPE, chamando-os de fruto de um aparelhamento ideológico do instituto; duvida da ciência da História, ao falar em Revolução e não Golpe Militar de 1964; e por aí vai. É que a ciência ou está a favor da moral/religioso-liberal, ou é resultado da ideologia de comunistas e, portanto, é falsa.

AUTORITARISMO
É importante lembrar  que o bolsonarismo é fruto da relação entre uma moral religiosa e a obediência à autoridade. Bolsonaro dá exemplos disse quando constantemente reforça o seu papel de “quem manda sou eu”. Segundo, obedecer à autoridade, sem questionamento, direito à dúvida, inibição à autonomia, raiva da democracia e dos direitos humanos, é uma coisa que gera um comportamento e uma consciência coletiva que se impõe sobre à sociedade, às vezes disfarçadamente, às vezes pelo exercício da violência. Assim, bolsonaristas baseados numa mesma consciência social atacam o que não é normal para suas crenças: a homossexualidade é combatida com fervor; as drogas associadas à esquerda, as não legalizadas, são motivo de pré-conceito, discriminação e agressão policial; a Educação universitária é considerada “balbúrdia” ou pura ideologia comunista; teoria de gênero é transformada em ideologia de gênero e, claro, imoralidade LGBTI. Bolsonaristas mais fanáticos orquestram ataques às universidades; ameaçam políticos e jornalistas ligados à oposição; ameaçam e perseguem feministas e/ou antropólogxs, filósofas e cientistas sociais em universidades, em redes sociais ou pessoalmente.

RACISMO
Outro aspecto nocivo do bolsonarismo é sobre o racismo. Se engana quem reduz o assunto à questão de raça e privilégio de classe. Não é que isso não exista, mas que é preciso se ter em mente o que se falou sobre moral e crime. No caso da moral, ao individualizar e penalizar quem comete um crime; ao reduzir o tema da desigualdade social ao mérito individual (liberalismo), os vínculos sociais são convenientemente ignorados. Mas não todos. Ou seja: ao se ignorar a questão de raça, classe e criminalidade, associa-se o comportamento de um indivíduo com a criminalidade. Então, se assaltos e o tráfico está relacionado à favela, por exemplo, então não se trata de racismo, mesmo que a maioria da população das camadas pobres da cidade seja composta por não-brancos (pretos, pardos e amarelos). Em outras palavras: se determinada modalidade de crimes e pobreza estão associadas estatisticamente, não seria racismo culpar indivíduos não-brancos por sua falta de caráter e tendência para a bandidagem.


Resultado, ao refletirmos sobre nossa sociedade e, especificamente, sobre o bolsonorismo, já não os achamos tão relativistas em alguns casos, e tão totalitaristas em outros. Basta que compreendamos como a consciência social deles e delas se impõe como um regime de atitudes que é reproduzido por cada bolsonaristas na tentativa de dar continuidade a um modelo de sociedade que resgata a moral/religiosa e a casa com o liberalismo econômico. Isso não é, inclusive, novidade nenhuma. Por isso, podemos compreender o regime bolsonarista exatamente como ele é: um regime ideológico autoritarista, conservador, liberal-econômico que encontrou no Brasil um ambiente perfeito para proliferar. Quando percebemos essa submissão da ciência à moral/religiosa em oposição à moral secular (a ideologia), então o aparente incoerente comportamento do bolsonarismo pode ser explicado e compreendido como o seu contrário - um sistema de ideias baseado numa hierarquia de valores bem definida. Se “jamais fomos modernos” – como disse um antropólogo e filósofo francês no início da década de 1990 -, no Brasil, somos um moderno e meio (somos o pior que há no cinismo moderno que fingia que à ciência não tinha a ver com a sociedade e com a moral, pois seria objetiva e real, além das ideologias). Resta saber aonde isso nos levará. 








sábado, 24 de agosto de 2019

Uma Ponte Para o Passado (Agnoiology)


Fazer de conta que não sabemos de algo, ou que algo não está acontecendo, ou ainda, ao invés de minimizar, decidimos contestar e, também, utilizar um acontecimento para atacar a oposição. É isso que está acontecendo constantemente: seja pelo representante do Executivo; seja por seu ministro do Meio Ambiente; seja pelas pessoas que defendem o governo – como o cúmulo mais recente, do carinha que contestava os dados da Nasa, falseando-os.
       Na filosofia existe uma teoria da ignorância (agnoiology), desenvolvida por um filósofo chamado Frederick Ferrier. Tal teoria tem sido utilizada por um antropólogo chamado Roy Dilley, da Universidade de St Andrews, na Escócia. Podemos tentar compreender as práticas políticas, justamente, por meio dessas abordagens. A pergunta seria: quais são as implicações de práticas relacionadas à construção da ignorância? É preciso dizer que a ignorância pressupõe uma relação com o conhecimento. Como fica então o conhecimento?
            Num recente debate entre Salles (Ministro do Meio Ambiente), com antigo diretor do INPE, Ricardo Galvão, foi possível observar algo que está acontecendo há muito e em vários ministérios: o aparelhamento militar e “anti-ideológico”. Em certo momento da conversa, Salles diz que o INPE e seus dados são veículos de interesses ideológicos. O governo, por sua vez, em abril deste ano, fez o mesmo quando indicou Salles para o cargo: o objetivo era desideologizar o órgão.
            Resultado? Se o conhecimento e a ignorância são relacionais, então o conhecimento está, com efeito, associado a escolhas morais – o que não é novidade. A novidade é a articulação da ignorância – como má fé, não como desconhecimento involuntário - como um projeto de governo. Não é de se surpreender, por fim, que a ciência como um todo esteja sendo atacada e, por conseguinte, às universidades estejam sendo sucateadas. Se existiu Uma Ponte Para o Futuro; me pergunto se, como na série Dark, não estamos em Uma Ponte Para o Passado, ao mesmo tempo
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Imagens de Internet.


quinta-feira, 22 de agosto de 2019

CORTES NO CNPq - A favor das Ciências Humanas

Circular por universidades, participar de grupos de redes sociais, assistir TV ou ouvir rádio, tem causado ansiedade e preocupação para estudantes de todo o Brasil. Tudo isso devido às recorrentes notícias sobre cortes de bolsas. Até o momento, o CNPq teve cortes de R$ 330 milhões em seu orçamento.

Os impactos desses cortes sobre Pesquisa Desenvolvimento e Tecnologia no país são assustadores. Ontem, por exemplo, foram cortadas 24 bolsas de graduação (Iniciação Científica) na UFPE. Qual a importância de uma bolsa dessas? Duas coisas vem logo de cara: 1) uma bolsa de iniciação científica é semelhante a um estágio. Ou seja: alguém que está apenas aprendendo “na teoria” tem a chance de aprender “na prática” (na minha graduação tive a oportunidade de desenvolver duas pesquisas de iniciação científica que, creio eu, foram fundamentais para me preparar para entrar no mestrado e, agora, no doutorado). 2) as bolsas são essenciais para estudantes de baixa renda (mas não somente), porque primeiramente: elas só são dadas a quem não mantém vinculo empregatício, o que, portanto, significa: ou você estuda ou você trabalha (bem sabemos como essa escolha é difícil e, na maioria das vezes, trabalhar não é uma opção, é uma necessidade; o que afasta milhões de brasileiros/as das universidades – quantas famílias não veem passar no Vestibular como a realização de um sonho? Meus avós sempre sonharam em ver filhos/as e netos/as em uma universidade. Meu pai e minha mãe – ambos artistas plásticos – também, apesar de meu pai ter falecido dois anos antes de me ver realizar o sonho dele, junto às minhas irmãs, que já cursavam nível superior).

Ainda sobre cortes, o CNPq suspendeu a oferta de 4500 bolsas que seriam concedidas a partir do próximo semestre letivo, setembro em diante. Ou seja: menos 4500 pesquisas serão desenvolvidas no Brasil devido a esse corte do governo Bolsonaro. Como se não bastasse, 84 mil bolsistas podem perder suas bolsas a partir, também, de setembro. Isto é: não são novas bolsas, são bolsas que já estão financiando pesquisas atualmente.

Por outro lado, é importante destacar que o Nordeste (#somostodosparaíbas) tem resistido. Recentemente universidades da região assinaram um convênio com universidades do Japão em prol de desenvolvimento social baseado em Tecnologias Humanas. Essa parceria será apresentada em uma solenidade que ocorrerá no próximo dia 24, no Salão Nobre da UFRPE (#ruralinda). Mas o que significa “tecnologia humana”?

Caso você esteja em alguma rede social, ou converse colegas de trabalho ou amigos, provavelmente você já deve ter ouvido alguém falar que “deviam desenvolver pesquisas úteis” e, segundo, que cursos de Humanas são cursos “ideológicos”, como aquela tal “ideologia de gênero”. Pois, bem, a primeira questão seria: útil pra quem? Segundo, “ideologia de quem”? “Nós não temos ideologia, mas “eles têm” – dizem pessoas que não foram às escolas, não foram a universidade, não tem família, não participam do mercado trabalho, não namoram, não falam nenhum idioma ou, como dizem sociólogos/as, não existem em sociedade; ou antropólogos/as, não vivem em uma cultura; ou historiadores/as, não são resultado de uma história.

Tecnologias são, antes de tudo, meios com os quais nos relacionamos para produzir alguma mudança ou adaptação a algum ambiente ou situação – seja ele um material ou uma ideia. Porém, costumamos separar “tecnologia” e “ideologias”. Na prática, dirão, uma máquina é uma coisa, uma ideia é outra coisa, só uma opinião. Mas por que será que uma das maiores potências (pasmem!) capitalistas do mundo, firma parcerias com o Brasil para o desenvolvimento de tecnologias humanas? Onde estaria a “ideologia” do Japão? É inútil tentar encontrá-la, pois o que importa é simples: o desenvolvimento humana tem na economia apenas uma de suas possibilidades; o desenvolvimento chamado social – essas tecnologias sociais – existem para, por exemplo: combater à criminalidade, capacitar pessoas para o mercado de trabalho (já ouviu falar de capital humano?), para combater à violência – principalmente contra a mulher -, para garantir o Estado de Direito, para conscientizar sobre nossa humanidade em comum, para garantir a paz, não a guerra; para promover o diálogo e a democracia; para assegurar os direitos das próximas gerações ao meio ambiente (nossos filhos e filhas etc; Para, como disse certa vez certo filósofo quando foi se perguntou: “qual o papel da Educação após o nazismo?” – e ele respondeu – “impedir que Auschwitz (campo de concentração nazista) – se repita”. Pois bem, a cultura combate o autoritarismo.
Por fim, cabe dizer que existe uma relação óbvia entre interesses e meios tecnológicos para desenvolver uma sociedade. A questão da utilidade da ciência para fins mercantis (FUTURE-SE) e o desprezo pelas ciências humanas representada pelos cortes orçamentários ao CNPq resulta ao menos em duas coisas: 1) retirar o sonho de milhares de brasileiras e brasileiros de conseguir continuar na universidade, lançando como única alternativa de sobrevivência, o abandono desse sonho (estudar ou trabalhar ); 2) no total (até agora): 4803 (com acréscimo de 194 bolsas cortadas no estado do Piauí). 

Fonte: site UOL*
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Bolsas de segundo semestre - Suspensão de chamada de novas bolsas:







quarta-feira, 21 de agosto de 2019

A favor das CIÊNCIAS SOCIAIS

    Nesse breve escrito, divido algumas conclusões de minha imersão na antropologia. Isto é: compartilho um efeito gerado em mim pelas leituras de textos de antropologia ao mesmo tempo em que analiso como as salas de aula e os livros nos ajudam a perceber coisas que antes não percebíamos e que mexem com nossas experiências e percepções pessoais.

Recentemente, num esforço, li um capítulo de “O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota” (Olavo de Carvalho). Fiquei pensando: será que ele já leu algum clássico em sociologia, história ou antropologia? Segundo, sua retórica ou argumentação cruza o céu e a terra em um parágrafo, concluindo em como devemos nos comportar “para não sermos idiotas”. Não se encontra isso em um bom clássico de ciências sociais.

Nesses próximos 15 minutos desejo apenas dizer que a percepção de Olavo, assim como a minha ou a sua, pode ser transformada. E isso não significa doutrinada. Por acaso estudar matemática ou astronomia é ser doutrinado? Estudar biologia tampouco. Por que estudar ciências sociais e história seria? O que importa é compreender como cada área científica nos enriquece com uma maneira de perceber a realidade. Porém, tal maneira de percebê-la não significa reproduzir textos de maneira religiosa, afinal, não estamos pregando.

Luis Dumont, um célebre antropólogo francês, criou um conceito chamado de apercepção. Basicamente, dizia que na sociedade moderna, de indivíduos, a sociologia poderia demonstrar como nossa individualidade, na verdade, seria resultado de uma configuração específica de nossa sociedade “moderna”; pois em outras civilizações, como a indiana, seria a coletividade que estaria em questão. Ou seja: ter consciência dessa relação entre nós e a sociedade seria uma apercepção sociológica.

A antropóloga Mary Douglas, estudando outros povos, dizia que nossa percepção tinha relação com nossas experiências e com os rituais (chamo rotinas) em que a sociedade em questão participa. Ela também diz que nossa percepção da realidade é seletiva, pois temos certa configuração perceptiva
que selecionaria uma forma de perceber certas coisas e deixaria outras coisas de lado.

Simetria e autonomia, GB 2019
O que quero dizer, com isso, que nas aulas de antropologia, estamos diante da possibilidade de comparar diferentes sociedade e “civilizações” – como ocorre com a área da história – e, assim, contrastar diferentes percepções. Ao fazer isso, nós passamos a remodelar, caso desejemos, o modo como vemos nossa sociedade. Podemos mudar e selecionar os novos modos de perceber e enxergar a realidade. De um modo de outro, você escolherá se consegue repensar ou não sua experiência, pois, no final, isso depende da sua relação com o que você está lendo. O mesmo vale para quem ler Olavo de Carvalho.

segunda-feira, 5 de agosto de 2019

ESSENCIALISMO E NATURALIZAÇÃO para curiosas/os


Explicando alguns termos a partir do pragmatismo

            De acordo com um famoso filósofo e psicólogo norte-americano (William James), existe uma relação entre percepção e experiência. Em poucas palavras: “vemos as coisas de nosso jeito e isso é diferente do modo como outra pessoa enxergaria o assunto”.
Mas vamos adicionar outro pensamento a isso. Uma antropóloga britânica pesquisou (Mary Douglas) etnias africanas e temas religiosos. A partir disso, chegou à conclusão que a nossa percepção está moldada pelos “ritos” (chamo-os de “rotina”). Ou seja: agora é a experiência comum – àquelas de grupos - das pessoas que as faz enxergar e perceber as coisas de maneira semelhantes.
Cada pessoa, todavia, vive inúmeras experiências em suas vidas e, muitas vezes, ao mesmo tempo! Além disso, a própria intenção e os valores morais das pessoas parece condicionar o modo como elas chegam a um entendimento. Um filósofo alemão (Arthur Schopenhauer) dizia que nossa vontade e nossas emoções afetam até mesmo como percebemos a realidade e como lidamos com ela.
Parece, então, que chegamos a um problema – como não chegar à conclusão que “tudo se torna opinião de cada um e cada uma” e como não cair no erro de achar que “quem tem mais experiência sabe mais’ sobre a ‘verdade’”?
A resposta é bem simples: sua opinião precisa ser testada! E ela deve resistir às “provações” – quem diz isso é um filósofo e antropólogo francês (Bruno Latour). Então, se você perguntar para um estudante de antropologia ou sociologia o que é NATURALIZAÇÃO, por exemplo, ele ou ela responderão mais ou menos da seguinte maneira: é um fenômeno ou uma coisa que acontece quando alguém tem uma opinião invariável sobre um comportamento e o justifica a partir de uma alguma ideia que classifica algo como normal ou inevitável, como se não dependesse de outros fatores. Por exemplo: “a desigualdade ou diferença entre ricos e pobres, supostamente, é uma coisa NATURAL, porque sempre foi assim e sempre será”.
Diário de Pernambuco,1850, 20 (1).*


 Caso perguntem sobre ESSENCIALISMO? O RACISMO [ver foto sobre venda e posse de pessoas escravizadas de/em Pernambuco] é um ótimo – e péssimo – exemplo. Durante os séculos XIX e início do XX estava “na moda” unir a percepção da “EVOLUÇÃO DAS ESPÉCIES” e a noção de progresso humano e realizar pesquisas para descobrir provas dessa suposta evolução e, neste caso, sustentar a ideia de que BRANCOS seriam superiores aos NEGROS e, por isso, a COLONIZAÇÃO estaria justificada. Conclusão: a percepção essencialista se utilizava da ciência para buscar evidências e provas que justificassem uma diferença entre pessoas. Esse tipo de ideia é comum entre machistas, racistas, classistas etc., mas não somente, visto que essencialismo é, antes de tudo, uma relação entre como percebo o mundo, como o julgo, e que rotinas eu participo (você vai à universidades assistir seminários? Quais filmes assiste? Tem o hábito de ler literatura, ficção, poesia, ou filosofia? Ouve músicas instrumentais, MPB, pop, folkindie, funk, brega etc? – percebam que não é uma coisa superior ou inferior à outra: mas sim as diferentes experiências e o que elas estimulam na sua consciência; assim como uma rotina de exercícios físicos diários é um ótimo estimulante para características musculares e para a saúde e bem estar em geral, outros hábitos também o são, mas para nossa percepção e saúde mental).
É aqui que amarramos o texto! Diferentes grupos possuem diferentes percepções e, em alguma medida, você encontra diferentes experiências, mas certas semelhanças nas percepções e opiniões conforme você sai de uma discussão sobre “lugar de fala” e “gênero” e passa para um grupo discutindo sobre “Lula Livre” e “Bolsominion”. No caso do LUGAR DE FALA, por exemplo, também encontramos outros termos associados, como “PROTAGONISMO”, privilégio epistêmico etc. Mas estamos sempre falando do que já se falou antes – percepção e experiência -, mas agora estamos produzindo novos sentidos e mudando as coisas.
 Em conclusão, não estou direcionando as coisas para dizer que as experiências individuais são superiores ou inferiores. Ou que as opiniões “são de cada um” e o que conta é que “cada um tem a sua”. Estou apontando para como nossa própria percepção é moldada. Chamo atenção para a diferença entre fatos e opiniões. Chamo atenção para o singular, o único na experiência. Mas também chamo atenção para não essencializar (não generalizar) demais e classificar sempre a experiência do outro como “de grupo” e a nossa como a correta; nem também achar que a experiência individual supera a capacidade analítica de uma pesquisa – não se trata de comparar experiência individual com meses ou anos de pesquisa.

* Fonte: Hemeroteca Digital do Brasil: http://memoria.bn.br/DocReader/029033_03/115

Duas religiões econômicas no comércio

 - Terminei. Vamos? - Diz minha pequena. - Posso ir ao banheiro? - Diz minha segunda pequena. Alguns minutos depois, caminhamos sobre o asfa...