Manifesto
pragmático
Minha
hipótese de trabalho é que a divisão do trabalho dentro da instituição
científica é, na verdade, muito simples. Primeiro você produz, historicamente,
a episteme por consensos e delega as especialidades. Assim, a filosofia de
origem grega dá o norte sobre questões metafísicas. Segundo: na modernidade,
diante do acumulo institucional e, antes, privado, dos saberes, então você,
finalmente, pode delegar as especialidades, enquanto a filosofia continua com a
“metafísica da ciência”.
No
século XX, contudo, algo muda. Mas, antes, desde o XIX, as ciências sociais se
desenvolvem dentro dessa especialidades separadas, mas prossegue montando seu
campo a partir da metafísica da ciência. No entanto, quando um de seus
subcampos passa a tentar “retirar da filosofia” sua metafísica da ciência,
então as coisas começam a mudar. Primeiro você pensa na metafísica da sociedade
e da historicidade do conhecimento, mesmo o nosso, de dentro da episteme.
Segundo, você passa a desrespeitar as fronteiras que separam o alicerce sagrado
que monta o conhecimento científico – a matemática, a física, a química e a
biologia (Ciências da Natureza).
Na
segunda metade do século XX, já não há mais privilégio da “epistemologia”
enquanto metafísica da ciência. Cientistas sociais desafiam os alicerces e se
dividem entre defensores da tradição, da divisão do trabalho clássica: ciência
objetiva de um lado - com filosofia ou metafísica da ciência de outro – ciência
e especulação metafísica como ingrediente da prática de pesquisa
científico-social do outro – com o lugar da especulação metafísica alinhada a
prática científica (em certa medida, isso pode ser chamado de reflexividade “ontológica”).
Dos
anos 80, principalmente, em diante, com ênfase na primeira década de 2000, a metafísica
da ciência se junta a uma metafísica da sociedade aliada à produção de pesquisas
em ciências sociais. Na antropologia a cultura, e a epistemologia tradicional
que respeita a divisão do trabalho clássica, é sacudida e passa a ser vista por
seus críticos e suas críticas como deslegitima, colonial e incapaz de alcançar
seus objetivos iniciais. A antropologia tem seu ápice científico com
Lévi-Strauss e o estruturalismo, mas sua “idade de ouro” não dura mais que trinta
anos na França, onde nasceu. Na sociologia, também francesa, é Bourdieu o ápice
da sociologia, com seu respeito a divisão do trabalho entre a ciência prática de
um lado, e a metafísica da ciência de outro. Tão logo ele sintetiza a tradição
crítica da sociologia (Marx e Engels) com a sociologia científica de um lado
(Durkheim) e suas dimensões humanas de outro (Weber), tão logo seu reinado
começa a ceder no final dos oitenta.
Enquanto
isso, as ciências da natureza seguem firmes e fortes, sem preocupações com o
que acontece com as “fábricas” concorrentes de ciências humanas. A união entre,
por exemplo, biologia e medicina alcançam seu ápice com a Organização Mundial
da Saúde, fundada em 1948, três anos depois da fundação da Organização das Nações
Unidas. Posteriormente, a segunda metade do século XX reúne a biomedicina e a
tecnologia com questões de Segurança Nacional, como, em alguma medida, já
existia no passado, com os Estados Nacionais.
Já
nas Ciências Sociais, assistimos nas últimas décadas do século XX e nas duas
primeiras do XXI, a uma nova divisão do trabalho que, na verdade, é uma fusão,
não uma separação, entre antropologia e sociologia com a metafísica da ciência
e da realidade (ontologia). Esse movimento pode ser rastreado até a
fenomenologia, no final do XIX e início do XX. Depois foi aplicada à
sociologia. Porém, enquanto a separação entre “mundo da vida” de um lado e “divisão
do trabalho científico clássico” continuasse, não havia problema.
No
entanto, na segunda metade do século XX, a divisão do trabalho científico, como
já dito, foi alterada por cientistas sociais. Não é coincidência que o trabalho
tenha sido feito por sociólogos do conhecimento (de Mannheim e Merton a Bloor),
um filósofo e antropólogo (Latour), sociólogas (Knor-Cetina,) sociólogos (Law e
Callon) e médicas/os e filósofas/os da medicina (Mol e Fleck). Ou seja: estamos diante de uma fusão entre Ciências da
Natureza, Ciências Sociais e metafísica da Ciência e da realidade (Ontologia).
Conclusão:
o novo formato das Ciências Sociais, hoje, não vem de agora. Ele vem se
modificando, como foi visto, há pouco mais de um século. Atualmente, podemos
dizer que Ciências Sociais estão incorporando a metafísica “especulativa” e da
realidade (ontologia) com as pesquisas e práticas da área. Portanto, sempre que
um artigo ou uma monografia forem publicados, haverá uma dimensão sobre a
metafísica e outra sobre as práticas de pesquisa (metodologia e análise de dados).
Quando não, normalmente os artigos serão de metodologia quantitativa. Mas, via
de regra, sempre que haja espaço para análise qualitativa, é bem provável encontrar
uma discussão metafísica por trás.
Quais corpos fazem ciência?
Essa
é a questão mais importante para as ciências sociais do século XX. Foi por meio
dela que toda a teoria crítica e, depois, as diferentes vertentes críticas
(feminismos, teorias pós-coloniais, estudos subalternos, estudos culturais, “pós-modernos”,
“pós-estruturalistas”) conseguiram seu “lugar de fala” e, assim, passaram e
remodelar as ciências sociais. A grande questão é saber se isso modificou as
ciências da natureza. E a resposta mais óbvia é que “não, não surtiu efeito
nenhum” e jamais surtirá.
Os
efeitos que ocorrerão e que vem ocorrendo, são muito mais “sociais” do que “científico-sociais”
ou “metafísicos”. Ou seja: são efeitos pragmáticos de mudanças históricas. Com
generosidade ao trabalho das ciências sociais, podemos dizer que tais efeitos
ocorrem apenas indiretamente por causa desta área, e não produzem nenhum
resultado sobre o “conteúdo do conhecimento científico-natural” (como queria Bloor).
A únida mudança substantiva que ocorre, será sempre de ordem institucional. O
que pode ser chamado de mobilidade de corpos (como corpos negros ocupando
espaços antes apenas ocupados por espaços apenas brancos).
A
alternativa, por outro lado, para produzir uma mudança, é ou seguir
pragmaticamente com as ciências sociais – deixando, assim, a metafísica da
ciência e da sociedade ou da cultura (ontologia) “de fora” das práticas -; ou
se prossegue produzindo sempre mais do mesmo nas ciências sociais, acreditando
que questões de conhecimento produzido em ciências sociais com esta “reflexividade
metafísica” irá, por milagre, reconciliar os valores das ciências sociais, com
os valores das ciências da natureza. Isso jamais acontecerá.
A
outra alternativa é, em continuidade com a segunda mencionada, manter dois
nichos: o de praticantes da divisão do trabalho científico clássica (com o
social e a cultura) de um lado e praticantes da nova divisão do trabalho
científico dentro das ciências sociais, do outro (com suas viradas e
ontologias). O caminho do meio, como dito: é pelo pragmatismo utilitário, que abandona
a especulação e se atém aos efeitos que podem ser pesquisados por cientistas
sociais!
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