domingo, 26 de julho de 2020

MANIFESTO PRAGMÁTICO E PÓS-ONTOLÓGICO

Manifesto pragmático

 

            Minha hipótese de trabalho é que a divisão do trabalho dentro da instituição científica é, na verdade, muito simples. Primeiro você produz, historicamente, a episteme por consensos e delega as especialidades. Assim, a filosofia de origem grega dá o norte sobre questões metafísicas. Segundo: na modernidade, diante do acumulo institucional e, antes, privado, dos saberes, então você, finalmente, pode delegar as especialidades, enquanto a filosofia continua com a “metafísica da ciência”.

            No século XX, contudo, algo muda. Mas, antes, desde o XIX, as ciências sociais se desenvolvem dentro dessa especialidades separadas, mas prossegue montando seu campo a partir da metafísica da ciência. No entanto, quando um de seus subcampos passa a tentar “retirar da filosofia” sua metafísica da ciência, então as coisas começam a mudar. Primeiro você pensa na metafísica da sociedade e da historicidade do conhecimento, mesmo o nosso, de dentro da episteme. Segundo, você passa a desrespeitar as fronteiras que separam o alicerce sagrado que monta o conhecimento científico – a matemática, a física, a química e a biologia (Ciências da Natureza).

            Na segunda metade do século XX, já não há mais privilégio da “epistemologia” enquanto metafísica da ciência. Cientistas sociais desafiam os alicerces e se dividem entre defensores da tradição, da divisão do trabalho clássica: ciência objetiva de um lado - com filosofia ou metafísica da ciência de outro – ciência e especulação metafísica como ingrediente da prática de pesquisa científico-social do outro – com o lugar da especulação metafísica alinhada a prática científica (em certa medida, isso pode ser chamado de reflexividade “ontológica”).

            Dos anos 80, principalmente, em diante, com ênfase na primeira década de 2000, a metafísica da ciência se junta a uma metafísica da sociedade aliada à produção de pesquisas em ciências sociais. Na antropologia a cultura, e a epistemologia tradicional que respeita a divisão do trabalho clássica, é sacudida e passa a ser vista por seus críticos e suas críticas como deslegitima, colonial e incapaz de alcançar seus objetivos iniciais. A antropologia tem seu ápice científico com Lévi-Strauss e o estruturalismo, mas sua “idade de ouro” não dura mais que trinta anos na França, onde nasceu. Na sociologia, também francesa, é Bourdieu o ápice da sociologia, com seu respeito a divisão do trabalho entre a ciência prática de um lado, e a metafísica da ciência de outro. Tão logo ele sintetiza a tradição crítica da sociologia (Marx e Engels) com a sociologia científica de um lado (Durkheim) e suas dimensões humanas de outro (Weber), tão logo seu reinado começa a ceder no final dos oitenta.

            Enquanto isso, as ciências da natureza seguem firmes e fortes, sem preocupações com o que acontece com as “fábricas” concorrentes de ciências humanas. A união entre, por exemplo, biologia e medicina alcançam seu ápice com a Organização Mundial da Saúde, fundada em 1948, três anos depois da fundação da Organização das Nações Unidas. Posteriormente, a segunda metade do século XX reúne a biomedicina e a tecnologia com questões de Segurança Nacional, como, em alguma medida, já existia no passado, com os Estados Nacionais.

            Já nas Ciências Sociais, assistimos nas últimas décadas do século XX e nas duas primeiras do XXI, a uma nova divisão do trabalho que, na verdade, é uma fusão, não uma separação, entre antropologia e sociologia com a metafísica da ciência e da realidade (ontologia). Esse movimento pode ser rastreado até a fenomenologia, no final do XIX e início do XX. Depois foi aplicada à sociologia. Porém, enquanto a separação entre “mundo da vida” de um lado e “divisão do trabalho científico clássico” continuasse, não havia problema.

            No entanto, na segunda metade do século XX, a divisão do trabalho científico, como já dito, foi alterada por cientistas sociais. Não é coincidência que o trabalho tenha sido feito por sociólogos do conhecimento (de Mannheim e Merton a Bloor), um filósofo e antropólogo (Latour), sociólogas (Knor-Cetina,) sociólogos (Law e Callon) e médicas/os e filósofas/os da medicina (Mol e Fleck). Ou seja:  estamos diante de uma fusão entre Ciências da Natureza, Ciências Sociais e metafísica da Ciência e da realidade (Ontologia).

            Conclusão: o novo formato das Ciências Sociais, hoje, não vem de agora. Ele vem se modificando, como foi visto, há pouco mais de um século. Atualmente, podemos dizer que Ciências Sociais estão incorporando a metafísica “especulativa” e da realidade (ontologia) com as pesquisas e práticas da área. Portanto, sempre que um artigo ou uma monografia forem publicados, haverá uma dimensão sobre a metafísica e outra sobre as práticas de pesquisa (metodologia e análise de dados). Quando não, normalmente os artigos serão de metodologia quantitativa. Mas, via de regra, sempre que haja espaço para análise qualitativa, é bem provável encontrar uma discussão metafísica por trás.

 

Quais corpos fazem ciência?

            Essa é a questão mais importante para as ciências sociais do século XX. Foi por meio dela que toda a teoria crítica e, depois, as diferentes vertentes críticas (feminismos, teorias pós-coloniais, estudos subalternos, estudos culturais, “pós-modernos”, “pós-estruturalistas”) conseguiram seu “lugar de fala” e, assim, passaram e remodelar as ciências sociais. A grande questão é saber se isso modificou as ciências da natureza. E a resposta mais óbvia é que “não, não surtiu efeito nenhum” e jamais surtirá.

            Os efeitos que ocorrerão e que vem ocorrendo, são muito mais “sociais” do que “científico-sociais” ou “metafísicos”. Ou seja: são efeitos pragmáticos de mudanças históricas. Com generosidade ao trabalho das ciências sociais, podemos dizer que tais efeitos ocorrem apenas indiretamente por causa desta área, e não produzem nenhum resultado sobre o “conteúdo do conhecimento científico-natural” (como queria Bloor). A únida mudança substantiva que ocorre, será sempre de ordem institucional. O que pode ser chamado de mobilidade de corpos (como corpos negros ocupando espaços antes apenas ocupados por espaços apenas brancos).

            A alternativa, por outro lado, para produzir uma mudança, é ou seguir pragmaticamente com as ciências sociais – deixando, assim, a metafísica da ciência e da sociedade ou da cultura (ontologia) “de fora” das práticas -; ou se prossegue produzindo sempre mais do mesmo nas ciências sociais, acreditando que questões de conhecimento produzido em ciências sociais com esta “reflexividade metafísica” irá, por milagre, reconciliar os valores das ciências sociais, com os valores das ciências da natureza. Isso jamais acontecerá.

            A outra alternativa é, em continuidade com a segunda mencionada, manter dois nichos: o de praticantes da divisão do trabalho científico clássica (com o social e a cultura) de um lado e praticantes da nova divisão do trabalho científico dentro das ciências sociais, do outro (com suas viradas e ontologias). O caminho do meio, como dito: é pelo pragmatismo utilitário, que abandona a especulação e se atém aos efeitos que podem ser pesquisados por cientistas sociais!

 

 

 


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