sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Quem tem medo da ciência (e suas epistemologias)? II

Fonte: Internet.
No post de hoje comento dois livros de Bruno Latour que, a meu ver, podem ser utilizados em conjunto numa pesquisa social: “Reagregando o Social: uma introdução à teoria ator-rede (versão em português de 2012; em inglês de 2005)” e “Modos de existência: uma antropologia dos modernos (2019; 2012)”. A ideia é continuar demonstrando a utilidade da obra de Latour para pensar no debate ciência e política.



A chamada teoria “do” ator-rede (como se costuma dizer no Brasil) foi desenvolvida por várias pessoas, Latour é uma delas e talvez a mais conhecida no Brasil. O livro “Reagregando o social...”, como o título diz, tenta sintetizar os princípios teórico-metodológicos desta teoria. Eu utilizei esse livro na minha monografia (TCC) de conclusão de curso (2016) e no mestrado em sociologia (2019). O que acho importante nesse livro é que, basicamente, ele nos ensina a “rastrear associações”. Mas o que isso significa?


Basicamente, nós observamos as práticas cotidianas das pessoas onde quer que elas estejam e seja lá o que façam ou no que trabalhem. No meu TCC eu fiquei assistindo aulas de agronomia e de ciências sociais ligadas ao tema dos agrotóxicos/defensivos agrícolas. Além disso, entrevistei discentes e docentes dessas áreas e análisei fontes documentais (“e virtuais”) dos dois cursos. Minha intenção era compreender como os agrotóxicos participavam da realidade dos diferentes cursos e como as pessoas se posicionavam sobre o assunto. A aplicação da teoria ator-rede nesta pesquisa ajudava a guiar a atenção para as instituições, para o material didático utilizado nas aulas, incluindo aulas práticas de agronomia em hortas, e para as opiniões das pessoas sobre o assunto. Falar em “rastrear associações”, portanto, significava observar a conexão entre os elementos mencionados. Por exemplo: em Sociais a associação que formava o corpo discente estava ligada ao Ministério do Desenvolvimento Agrário e à Agroecologia (conforme ementa de uma disciplina) ligado ao tema dos, neste caso, combate aos agrotóxicos. Já no caso da agronomia, a relação era com a Associação Brasileira de Ação à Resistência de Plantas Daninhas (HRAC-BR), entre outras associações. Esta entidade, por seu turno, está ligada a empresas como a ADAMA, IHARA, Arysta LifeScience, ISK Bioscience do Brasil Defensivos Agrícolas, BASF: The Chemical Company, Monsanto, Syngenta entre outras.

Bom, com o TCC eu aprendi a mapear essas “associações” e, neste sentido, isso significou entender a conexão entre mercado, agronegócio e aulas de agronomia, de um lado; de outro, a conexão entre teoria crítica, movimento de trabalhadores/as e ciências sociais. O problema do meu TCC é que ele não fornecia acesso aos juízos de valor das pessoas que entrevistei, nem ao meu próprio. Sempre me cobravam, aliás, um “posicionamento” e eu normalmente dizia: “gente, meu posicionamento pessoal é uma coisa, e meu posicionamento enquanto sociólogo está na escolha do tema polêmico! Mas quem define o que é certo ou errado não sou eu, pesquisador, mas as pessoas do campo; o que não significa que eu precise concordar com nenhuma delas”. 

Já no mestrado eu fiz o mesmo: utilizei a teoria ator-rede. Mas escolhi outro campo: um laboratório de Entomologia para observar o cotidiano de cientistas fazendo descobertas sobre Zika. No final, descobri como se faz a conexão entre ciência e Estado “na prática”. Se no TCC eu percebi que existiam conexões entre agrotóxicos, aulas de agronomia e interesses de mercado, por exemplo, no mestrado descobri como ocorrem associações entre interesses políticos, científicos, “sociais” e mosquitos (sim, mosquitos: a teoria ator-rede presume que não humanos também são “atores sociais”). Isso me fez perceber que essas associações operam em “redes” e que elas resultam, no caso dos agrotóxicos, na formação de agrônomos/as competentes para o mercado de trabalho, enquanto cientistas sociais estão sendo formados para denunciar os perigos do uso de agrotóxicos e, portanto, não para o mercado de trabalho; e, no caso do mestrado, fez-me perceber que as associações entre ciência e política ajudavam a combater a epidemia de Zika vírus.

Por outro lado, eu continuava sem registrar “juízos de valor”. Descobri apenas em 2019 que esse era o problema que o próprio Latour reconheceu na teoria ator-rede. Aí que entra o “Modos de existência...”. Nele, Latour “corrige” a falha da teoria ator-rede e recomenda outra abordagem, na qual você deve descobrir qual é o sentido que as pessoas dão as coisas que fazem e no que acreditam. Ele chamou isso de “modo de existência das preposições” (as redes passaram a ser o “modo de existência das redes”). Com isso, você pega uma palavra ou ideia e registra o que ela inclui, o que ela exclui e sua lógica de funcionamento. Por exemplo: no caso dos agrotóxicos, cientistas sociais os consideravam tóxicos e nocivos e, portanto, excluíam seu uso com base em seus “juízos de valor”. Para eles/elas a “agroecologia” e a “sustentabilidade” eram alternativas ao uso dos agrotóxicos e para o combate ao “mercado”. Com isso, eles incluíam o “movimento dos trabalhadores” e os “orgânicos”, excluindo os agrotóxicos e seus fabricantes, como a Monsanto.

Podemos pegar um exemplo que gosto: lugar de fala. Se você pegar esse conceito e o considera como uma “preposição”, você para de definir o “sentido verdadeiro” ou “correto” e passa a observar seu uso nas Redes Sociais. Logo você vai perceber o que “entra” e o que “sai” quando o termo é utilizado. Isso nos indica os “juízos de valor” que as pessoas que utilizam ou que criticam o conceito possuem. Normalmente você vai encontrar pessoas autodeclaradas negras/pretas defendendo seu uso e pessoas brancas resmungando. Porém, há exceções, claro. O blogueiro Jones Manoel, por exemplo critica seu uso, partindo da ideia de uma perspectiva epistemológica marxista.

O conceito de gênero é outro termo interessante. Estudos indicam que a palavra-chave “ideologia de gênero” está em ascensão na América Latina em paralelo com a militância evangélica. Bolsonaro e Damaris não são exceções, são, na verdade, fruto dessa realidade: eles não “enganam o povo”, ele e ela representam uma fração desse povo, neste caso, no Brasil. Em outras palavras: gênero é uma teoria, ou conjunto de teorias baseado, incialmente, na ideia de que a biologia e o sexo biológico não definem nem a sexualidade, nem a identidade política e social de uma pessoa. Quer dizer: isso se você está seguindo associações que envolvem ciências humanas e sociais, assim como movimentos sociais como o feminismo. Mas se você perguntar para Bolsonaro e cia, você vai ver a exclusão do termo “teoria” e a inclusão do termo “ideologia”. Essa mudança nada sutil nos termos diz, basicamente, quais são os “juízos de valor” por trás do sentido de cada palavra. Em outras palavras: ou você é a favor do feminismo ou você é bolsonarista. Seguindo essa lógica, não dá pra ser os dois.

Conclusão: as obras de Latour ajudam a rastrear as conexões entre política e ciência; mercado e agronomia; agroecologia e ciências sociais; Bolsonaro e ideologia; feminismo e teoria de gênero; lugar de fala e pessoas negras (mas não somente); etc.  Isso possibilidade identificar as conexões. A única coisa que deve ser lembrada é que Latour é pragmático e, portanto, ele se baseia sempre na pesquisa empírica, de campo, como bom antropólogo que é. O que significa que as afirmações que eu tô levantando podem estar “ultrapassadas”, mas aí temos que ver isso com pesquisa de campo. E você, acha que elas são ultrapassadas?

Por fim, é importante lembrar de uma coisa que já falei num post anterior, no Soteroprosa, sobre Latour: ciência e política são diferentes e uma não se reduz à outra, mas ambas podem se conectar conforme as forças em jogo. Por exemplo: Bolsonaro se alia a hidroxicloroquina (mercado farmacêutico), mas não concorda com isolamento social (ciência-OMS). A globo, sua arqui-inimiga atual, concorda com o isolamento social (ciência-OMS), mas, até onde sei, não financia nenhuma pesquisa científica brasileira que busca a cura para a Covid-19 (posso estar enganado, mas vale a reflexão).


https://i2.wp.com/blogdolabemus.com/wp-content/uploads/2020/08/mag-Latour-image1-superJumbo-2.jpg?resize=725%2C967&ssl=1

 


quarta-feira, 21 de outubro de 2020

Dicas de etnografia online: da tag #covid-19 à #lugardefala

 Neste post, direcionado a estudantes de graduação das ciências sociais, apresento brevemente uma conexão teórico-metodológica útil para pesquisa online: uso da Pragmática (análise de discurso) e da teoria ator-rede em etnografia online.

 

Implicaturas e máximas de qualidade

Os termos acima são da análise de discurso da linguagem pragmática ou, apenas, da Pragmática. Seu criador foi Herbert Paul Grice (1913-1988). O primeiro termo se refere à inferência feita por um participante em uma comunicação. O segundo, ligado ao “princípio de cooperação”, refere-se à credibilidade e à confiabilidade daquilo sobre o qual se faz alguma implicatura. No caso da minha pesquisa, eu tenho notado no meu campo de pesquisa, mas também no meu próprio dia a dia conforme assisto noticiários e acompanho notícias em mídias digitais, bem como nas interações em ambientes virtuais, que cada pessoa estabelece uma implicatura com base na máxima de qualidade das interações em que toma parte.

Vejamos um exemplo: conversei com uma comerciante que duvidava dos números da Covid-19 informados pela Prefeitura de Olinda, os quais mencionei considerando-os, justamente, confiáveis. Já um interlocutor mais próximo e participante de minha pesquisa utilizou como implicatura a “gripezinha” e, a partir disso, considerou os números nacionais da Covid-19. Neste caso, a credibilidade foi dada aos números oficiais. Porém, não foram os números locais, do município em que ele vive. Apesar desta disparidade entre o primeiro e o segundo exemplo, há em comum entre eles um mesmo ato: a implicatura.

Redes ou cadeia genética? Fonte: internet.
Na etnografia de Covid-19 esse assunto é especialmente interessante porque aponta para uma realidade complexa “por
demais!” Na verdade, essas diferentes implicaturas podem ser descritas apelando para dois elementos: 1) o contexto; 2) e a "entextuaização". No primeiro, pode ser descrito “onde” e “como” acontece a implicatura. No segundo, trata-se de analisar o modo pelo qual a fala traz um assunto; o modo pelo qual traz o assunto; e o que comunica além do que fala. Essa parte pode ficar um tanto confusa. Mas se pensarmos no segundo exemplo citado, a implicatura foi feita por meu informante a partir do enunciado “gripezinha” e, ao mesmo tempo, ele o comparou com os números nacionais da Covid-19. Essa é a entextualização. Já no primeiro exemplo, fui eu quem realizou o ato de trazer a referência aos números, neste caso, municipais. Porém, na ocasião, diferente do segundo exemplo, a comerciante questionou a qualidade da informação.

Teoria ator-rede

O interessante para se pensar, por outro lado, neste “onde” e no “como” as implicaturas acontecem é que você pode considerar os dois tipos de ambientes em que eles acontecem. Por exemplo: o primeiro aconteceu num ambiente físico; o segundo em um ambiente virtual. As implicaturas decorrentes dessas conversas são especialmente interessantes para se adicionar um segundo elemento analítico: seguir os sentidos que estão sendo mais ou menos utilizados, principalmente, nos ambientes digitais. Saindo dos dois exemplos, podemos então associar duas abordagens: a etnografia em ambientes virtuais – especialmente no sentido de seguir “perambulando” etnograficamente alguma hashtag (neste caso seria #gripezinha); e a teoria ator-rede “atualizada” por Bruno Latour para seguir esse fluxo de sentidos (“modo de existência das preposições”).


Hashtags

  Ao realizar o movimento teórico-metodológico mencionado acima, podemos captar os diferentes usos da tag, tendo-a como um termo chave de pesquisa (preposição) que circula ou viaja pelo ambiente virtual. Esse tipo de análise permite identificar os diferentes sentidos e, por conseguinte, as diferentes implicaturas neles contidas. É o que se tem chamado atenção quando o assunto é terrorismo, por exemplo. Foi o que fez Simon Lindgren ao seguir a tag #terrorism no Twitter.

Uma dica para quem gosta de debates em redes sociais e, também, é da área de ciências sociais, seria seguir a tag #lugardefala. A relevância do assunto é evidente. As implicaturas, contudo, não foram, a meu ver, “levadas a sério” satisfatoriamente. Ao invés de simplesmente “cair no debate”, por que cientistas sociais não “abaixam a bola” acreditando, implicitamente, que sua linguagem lhes garante um status social mais elevado que o “senso comum” e estudam as implicações da atualização (entextualização) conforme as pessoas vão realizando novas inferências a partir da tag #lugardefala?

Enfim, esse foi um post “meio fichamento” para experimentar a relação entre Pragmática, etnografia online e teoria ator-rede. A intenção, todavia, foi dar dicas de abordagens de pesquisa para cientistas sociais. Ao mesmo tempo, este post é também um tipo de relato ou feedback da minha pesquisa que cumpre a função que acredito, a saber, que visibilizar trajetórias de pesquisa social, a partir de redes sociais, permite que a “opinião pública” julgue a pertinência ou não das ciências sociais, tendo em vista que a nossa profissão sempre foi, historicamente, alvo da crítica conservadora e do utilitarismo econômico para o qual apenas o que entra na lógica do sistema socioeconômico capitalista é que interessa.


Link da imagem: https://scitechdaily.com/images/Remdesivir-COVID-19-Coronavirus.jpg


terça-feira, 20 de outubro de 2020

Como não se tornar um “negacionista de esquerda”?

Existem mal-entendidos entre ciências sociais e ciências da natureza (“exatas”). O primeiro deles é “histórico”. Ele se refere à questão de método. Ou seja: se as ciências sociais deveriam usar os mesmos métodos das suas primas antigas: as ciências da natureza; ou não.

Um segundo mal-entendido é mais recente: ele se refere ao debate sobre a crítica pós-moderna (1980) e às demais críticas sobre o projeto moderno e ao projeto iluminista europeu. Neste caso, as críticas denunciam o contexto por trás da ciência. Isto é: crítica ao etnocentrismo ocidental, ao racismo, ao sexismo, ao patriarcado, ao capitalismo etc., por trás da ciência.

Tentarei refletir sobre esses debates no intuito de destacar os problemas ou efeitos/consequências negativas para a própria ciência e, por tabela, para cientistas sociais.

Durkheim, Weber e Marx. Internet.
Há alguns anos que eu não só leio sobre pós-colonialidade e decolonialidade, mas também pesquiso o uso dessas teorias por cientistas sociais de Recife-PE. Também fiz o mesmo com teorias de gênero. Já com marxismo, não pesquisei, apenas convivi com marxistas durante minha graduação e li bastante Karl Marx (1818-1883), Friedrich Engels (1820-1895), György Lukács (1885-1971), István Meszáros (1930-2017) e marxistas brasileiros de diferentes escolas, como Sérgio Lessa, Ivo Tonet, Cristina Paniago, Ricardo Antunes etc. O que há, portanto, em comum nessas teorias?

Bom, o primeiro argumento é simples: ninguém, aí, salvo raras exceções, fizeram pesquisas de campo com cientistas das áreas “da natureza”. O que há em comum, além disso, é que esse debate remete a dois elementos. No primeiro vem a questão inicial: se as ciências sociais devem compartilhar um mesmo método. No segundo a questão é sobre a denúncia aos “contextos” (etnocentrismo ocidental, racismo, sexismo, patriarcado, ao capitalismo etc.).

Depois de ter me dedicado nos últimos anos, principalmente de 2016 para cá, à sociologia da ciência e aos chamados estudos sociais sobre ciência e tecnologia (STS), além de ter “ido a campo” durante o meu mestrado em sociologia, tendo pesquisado a área de biomedicina (como já disse noutras ocasiões), eu cheguei a algumas conclusões que, hoje, tornaram-me mais seguro para defender opiniões sobre esses assuntos.

Em primeiro lugar, defendo a separação metodológica entre ciências sociais e ciências da natureza. Para quem vem de Sociais, é comum lembrar que Max Weber (1864-1920) defendia essa separação; já Émile Durkheim (1858-1917), não. O mencionado Marx e seu amigo Engels, também não, basta lembrar que eles diziam que aplicavam o método científico à análise do capitalismo e, por conseguinte, podiam demonstrar como se passaria do mesmo para o socialismo para, depois, o comunismo (um sistema socioeconômico sem estratificação social em classes – lembrar que no feminismo, Simone de Beauvoir dizia que isso não era sinônimo de acabar com a estratificação “sexual”, o patriarcado e a dominação “masculina”).

Em segundo lugar, tendo feito a separação metodológica entre as ciências sociais e suas “primas” da natureza – e eu não estou dizendo que não se deve usar métodos semelhantes, como a estatística e a matemática na sociologia, na ciência política ou na antropologia -, eu acredito que os debates subsequentes e críticos à “Ciência” (com C maiúsculo) não deveriam “generalizar” e “universalizar” suas críticas a “toda ciência” e sua “epistemologia”. Na verdade, e aqui sendo defensor do método pragmático, acredito que ao invés dessas generalizações, deveriam ser feitas análises a cada caso, empiricamente. Assim seria possível dizer quando a ciência está sendo utilizada para determinados interesses político e ideológicos (os quais combatemos, como o racismo, por exemplo). Mas me deixa dar um exemplo.

No livro Lugar de fala, a Djamila Ribeiro denuncia a ciência (e sua epistemologia) por ser “racista”, pois feita por pessoas brancas. No entanto, no mesmo livro, a autora usa dados estatísticos para reforçar seu argumento de que vivemos em uma realidade estruturalmente racista. Lembremos: estatística é um método de pesquisa que, inclusive, está por trás da classificação da sociologia como, de fato, uma ciência (ver O suicídio, livro de Durkheim que usa estatística para analisar socialmente o que leva pessoas a cometerem suicídio). Ou seja: com uma mão você ataca a “epistemologia racista”, com a outra você se vale dela para reforçar seu argumento. O que significa que, mesmo criticando, tal forma de conhecimento é útil, afinal.

Foi diante desse tipo situação que eu comecei a me questionar sobre os limites da crítica “pós- e decolonial”. No caso da Djamila, obviamente que ela não é uma racista! Então o uso que ela está fazendo da ciência “branca” não pode ser considerado racista. O mesmo vale para outras áreas. Dizer que, por exemplo, a biomedicina é “colonial” porque é feita por “brancos” e “europeus” é uma coisa até arriscada, pois ela esquece que essa mesma ciência está produzindo vacinas contra a Covid-19, a febre amarela... etc. O mesmo vale, no caso da minha pesquisa, para o vírus Zika. Existia uma maioria branca no laboratório que pesquisei, mas existiam negros também (brasileiras e um cabo-verdense). Isso não alterava em nada os famosos testes de PCR que eles e elas realizavam para identificar contaminação por vírus Zika em suas amostras.

Por outro lado, entender que essa área faz parte de um contexto mais amplo que, obviamente é ligado a fatores sociais, culturais e históricos não reduz a ciência a esses fatores. Aliás, e aqui levo ao limite meus argumentos sobre o debate sobre métodos e ciências diferentes, acredito que o trabalho das ciências sociais, inclusive da teoria crítica, é identificar essa realidade que “entra” e que “sai” do laboratório. Por exemplo: falei que a maioria das pessoas no laboratório que pesquisei eram brancas. Isso é um caso explícito de legado histórico racista. Por outro lado, a maioria dos e das cientistas eram mulheres. O que significa que, no quesito gênero (binário), o laboratório de entomologia tem uma representatividade maior de mulheres, incluindo nos cargos de liderança. Mas se continuarmos com nossa análise do que “entra”, ou quem entra, e o que “sai” do laboratório, podemos perguntar sobre representatividade indígena, sobre transgênero etc. O que resulta em um estudo de caso que aponta para alguns fatores sociais “por trás” dos fatos científicos que, inclusive, devem ser destacados caso se deseje pensar em questões éticas para além da “metodologia cientifica”, como o combate às desigualdades sociais.

Por fim, ao trazer minha experiência de pesquisa e meu repertório acadêmico da sociologia da ciência, tentei apontar para certos cuidados quando criticamos a Ciência. Há certos limites quanto ao alcance das críticas, mas também há pertinência nessas críticas. Porém, é preciso muito cuidado para não se tornar um tipo de “negacionista de esquerda”, pois se na nossa crítica tudo que for feito pela ciência “branca” não prestar, então não deveríamos usar estatística, nem deveríamos aceitar as vacinas “europeias”, por exemplo.


domingo, 18 de outubro de 2020

BOLSONARO OU FATOS CIENTÍFICOS? LIMITES DA CRÍTICA AO CONHECIMENTO CIENTÍFICO

 

1.     

Bairro de Ouro Preto-PE. Fonte de Internet.

A pandemia torna visível os hábitos e práticas de cada região.

 

Costumo dizer que a antropologia tem o papel de dar sentido, para nós, ao ponto de vista alheio. No caso da pandemia, a ideia pode ser dar sentido ao ponto de vista dos outros sobre a pandemia.

Por outro lado, também se torna possível ligar esse ponto de vista aos hábitos e práticas das pessoas. É por isso, por exemplo, que é interessante notar como, em um mesmo bairro, encontramos tantas diferenças, mas também semelhanças no comportamento e nas opiniões das pessoas sobre a pandemia.

Com esse rastro podemos desenhar redes diferentes em que os discursos são conectados com práticas e saberes diferentes

 

2.      Existem redes de saberes estabilizadas e, fora delas, crises de saberes.

 

Quando ligamos a antropologia ao seu desenvolvimento teórico a partir de pesquisas realizadas no mundo todo há mais de um século, podemos identificar como outras pesquisas e teorias ajudam a interpretar a realidade atual.

No caso da minha pesquisa atual, eu costumo buscar quais hábitos e práticas estão se assemelhando e desassemelhando em cada espaço. Por exemplo: quando o assunto é lidar com a doença, existe um sentimento comum: medo de ir a um hospital, mesmo estando com sintomas, para não aumentar o risco de contaminação.

            Por outro lado, nas redes hospitalares e laboratoriais, a Ciência prospera em seu consenso metodológico sobre diagnósticos de Covid-19 (clínicos, laboratoriais, PCRs...). Mas fora dela, as pessoas compartilham sentimentos e, também, saberes, no processo de autodiagnóstico e “receitas”. Isso faz surtir um hábito de cruzar experiências pessoais com saberes que estão acessíveis, seja no Google, seja com amigos, seja nos noticiários.

            Por outro lado, quando os corpos que entram em possível contato com a Covid-19 e manifestam sintomas, as práticas e saberes diferentes são “negociados” entre as pessoas

 

3.      Limite de teorias sobre falar sobre nossa própria experiência

            Em relação a saúde, mesmo se autodiagnosticando e compartilhando experiências, e saberes, o critério do ato de conhecer ou saber sobre sintomas extrapola nossa “experiência pessoal”.

Diante da crise, o hábito de autodiagnóstico e de duvidar do que sentimos, os sintomas, desautoriza nosso critério epistemológico (de como é possível ter conhecimento sobre nossa saúde) baseado apenas na nossa própria experiência. Essa é só outra forma de dizer que o saber compartilhado (Ciência) sobre a saúde extrapola o critério de saber baseado apenas na experiência (individual), nas vivências ou nos diferentes “saberes” (outras epistemologias). Sem ciência biomédica, aqui, sem vacinas, sem tratamento ao micro-organismo transmissor da Covid-19.

Se, ao contrário, validarmos o critério da experiência como critério de verdade, fato ou objetividade, então teremos que aceitar argumentos de Bolsonaro sobre a hidroxicloroquina... Pragmaticamente, portanto, é preciso colocar uma fronteira entre o critério científico e o critério da experiência pessoal. É aqui, inclusive, que a nossa capacidade de apreender, perceber e transformar a realidade são prepotentes, querendo negar fatos científicos com base na crítica à objetividade científica por ela ser enviesada ou distorcida conforme os interesses de quem está por trás da ciência.

Dito de outra maneira: a pandemia da Covid-19 está gerando um efeito sobre as instituições científicas e nos debates acadêmicos sobre objetividade, subjetividade e utilidade científica. Um dos pontos que percebi até o momento foi que ao recolocar a importância da ciência para alcançar uma cura contra a Covid-19, ela coloca em questão ou demonstra os limites da fronteira entre ciências humanas e ciências naturais, pois os critérios científicos iniciais, por mais que tenham os vieses denunciados pelas ciências humanas e sociais, ainda são válidos para alcançar resultados tão urgentes como a cura para Covid-19. Portanto, os limites da crítica à ciência e à objetividade demonstram que as últimas quatro décadas, pelo menos, com toda crítica pós-moderna à ciência, é limitada ao seu campo de atuação. Por isso, falar em outras epistemologias é um modo de criar outra ciência, como um novo ramo, cujo limite, finalmente, começa a se delinear. Não se trata, portanto, de criticar a separação entre o método das ciências sociais e o das ciências da natureza, mas de reforçar suas fronteiras, demonstrando mais claramente, a que alvos se aplicam as ciências humanas e sociais...


Fonte da imagem: Ouro Preto

 

segunda-feira, 12 de outubro de 2020

Legado da pandemia: crise da ciência?

 Neste mês eu enviei um artigo para um periódico acadêmico sobre pessoas que suspeitaram de terem se contaminado com a Covid-19. Foram algumas entrevistas e conversas que eu analisei. O resultado foi falar em “crise” ou “desestabilização” da sintomatologia em tempos de pandemia. Mas o que isso quer dizer? O que isso traz de útil para entender a realidade das pessoas que vivem a Covid-19?

 

Ver post em: ouropretohomenagens.wordpress.com/2020/10/12/legado-da-pandemia-crise-da-ciencia/

quarta-feira, 7 de outubro de 2020

Da antropologia para as eleições municipais de 2020

 


            “Vou votar em Fulano porque ele é do meu bairro”. Já ouvisse isso?

            Pois bem, é uma opinião que se ouve na boca de pessoas com alto ou baixo nível de instrução; de analfabetos e letradas; de pequenos comerciantes a funcionárias públicas ou donas de casa.

            Fazendo uma pesquisa antropológica sobre os impactos sociais da Covid-19 em um dos trinta e três bairros do município daquela que é um patrimônio histórico e cultural da humanidade, a saber, a cidade de Olinda, descobri que existem apenas dezessete vagas para o cargo de vereador/a da cidade.

            Oxe! Se temos mais de 30 bairros e apenas 17 cargos de vereador, então só 17 bairros serão contemplados nos próximos 4 anos. Ou seja: se um candidato vencer porque prometeu ajudar seu bairro, então somente 17 bairros serão auxiliados.

            Mas e se tivermos eleitos candidatos de um mesmo bairro (três do bairro de Ouro Preto, por exemplo)? Ora, 17 – 3 = 14. Serão 3 bairros a mais desamparados nos próximos 4 anos.

            Tudo bem, esse papo todo parece um saco e pretensioso, talvez até arrogante: o pesquisador dizendo o que devem fazer as pessoas que ele estuda. Mas quando o pesquisador é também eleitor?

            Bom, da antropologia podemos extrair a lição de que é preciso compreender “o ponto de vista” do outro (do eleitorado), no momento. Como morador, contudo, sei que meu voto não partirá do mesmo discurso.

            Ainda com a lição da antropologia, andei pensando que “o ponto de vista” do outro é plural, não singular. Neste sentido, vejo que esses diferentes pontos de vista estão em grande medida relacionados à realidade vivida por cada pessoa, por sua trajetória, por suas experiências e, consequentemente, por suas percepções; com a capacidade do candidato de mobilizar recursos e aliados em jogos de influência que utilizam, na maioria dos casos, mas não em todos, os equipamentos públicos como mercadoria para negociação de votos com o eleitorado (daí as pessoas dizerem: “voto no candidato que vai ajudar nosso bairro”).

            Oxe, oxe, oxe! mas como é possível “mudar a realidade de nosso bairro” se a cada quatro anos, o eleitorado só vota em pessoas “do seu próprio bairro” e, portanto, sempre sobram bairros desamparados que, consequentemente, serão alvo de campanhas que restauram precariamente espaços públicos no intento de ganhar votos (chamo de gambiarra esse processo, baseando-me na antropologia de Fernanda Bruno que, por sua vez, inspira-se na obra do filósofo da técnica, Gilbert Simondon)?


As gambiarras encontradas, atualmente, no bairro de Ouro Preto demonstram que candidatos vivem dessa prática enraizada no cotidiano eleitoral local.


Já o eleitorado, vivendo diferentes demandas e necessidades, chega a se engajar nesse período, como cabos políticos puxando votos para àquele que conseguir tapar o buraco da sua rua; tirar o lixo acumulado da esquina; colocar uma mão de cimento nos buracos do campinho onde nossos jovens jogam bola... sem falar dos paisagismos...


Desta relação, que bem podemos chamar de agência na teoria antropológica, as pessoas "fazem política" e disputam com outras pessoas, de outros bairros, para eleger seus próprios candidatos. 

Eis uma faceta da política eleitoral olindense.

 

 

Duas religiões econômicas no comércio

 - Terminei. Vamos? - Diz minha pequena. - Posso ir ao banheiro? - Diz minha segunda pequena. Alguns minutos depois, caminhamos sobre o asfa...