Qual a melhor moldura para seu quadro: posicionamento ou ciência?*
Se me
perguntas o que é ideologia, tenho que te perguntar em resposta: de quem?
Se
respondes decepcionada: "não me respondestes", terei então que escolher,
indeciso, se narro a história do termo – a filosofia e a história fazem isso
melhor que minha área: a primeira poderia “pegar” o termo e discutir seus
significados, sua história em parte, como já fez Marilena Chauí; a história, o
que dizer? Ela poderá situar a ideologia em seus contextos históricos, dizendo
o que estava em jogo, quem a criou, como se difundiu, quais os elementos
inconscientes ou não tão evidentes que apenas a leitura das fontes históricas
não seriam suficientes, pois a historiadora faz parte da construção do conceito
assim que decide também fazer escolhas buscando a metodologia científica para
pesquisar o assunto.
Sociólogo
de formação, te diria então que a situaria na sociologia e como ela fez parte
desta área. Nascendo antes de Karl Marx, mas por ele apropriada, ela
significava inicialmente uma “ideia falsa” que ignoraria as relações sociais
reais entre a classe que extrai da natureza os bens materiais que mantém as
forças de produção de toda a sociedade. A classe dominante, na estrutura de
classes, que seria a proprietária dos recursos de trabalho e da produção da “riqueza
material” produzida pela classe trabalhadora produziria a ideologia a seu favor. Assim, a ideologia dominante
seria a da classe dominante, que precisaria inventar “ideias falsas” para
enganar a classe trabalhadora para que ela acreditasse que o sistema social era
justo. Não vou me alongar noutros significados desenvolvidos por Marx (e
mostrarei que essa escolha apaga outras).
Encaixando
essa imagem em minha “moldura”, em minha narrativa, eu continuaria e diria que,
se uma classe é dominante, então ela cria a ideologia (ideia falsa) que
sustenta a organização da sociedade e, portanto, que está por trás da ciência. Assim,
a ciência seria uma atividade mantida pela produção da classe trabalhadora, mas
na ideologia burguesa, dos patrões, que dominam a política com sua ideologia,
então a ciência estaria dominada pela ideologia burguesa. Essa conclusão não é
apenas “lógica”, ela foi utilizada por socialistas e pensadores/as de esquerda
para criticar toda a ciência produzida que não fosse voltada para a “luta de
classes”. Resultado: o que os EUA produzia, era criticado pela esquerda. Se
outros dois clássicos da sociologia “tradicional” criticavam Marx, então eles
estavam a favor da burguesia e contra a classe trabalhadora.
Nesta
linha de raciocínio, assistimos no Brasil o desenvolvimento da ciência e das
ciências sociais. Curiosamente, o governo atual taxa tudo que se opõe a sua
visão de mundo, seus valores e, em última instância, a ciência
que não faz parte dos ideais governistas, como ideologia. Ironicamente assistimos a
inversão na história de quem utiliza o termo ideologia para acusar seus
inimigos de terem “ideias falsas” (ideologias).
Marx,
como profeta, dizia que a história acontece duas vezes, uma como tragédia,
outra como farsa. Com o governo bolsonaro, acontece os dois: a tragédia e a
farsa de utilizar as ferramentas do marxismo, a concepção marxista de
ideologia, contra comunistas, e contra todos classificando-os de ideólogos. Não
se enganem, Marilena Chauí nos lembra que quem primeiro usou (“reza a lenda”) e quem primeiro “distorceu” o termo ideologia, que seria inicialmente uma
ciência das ideias, chamando seus opositores de ideólogos, foi Napoleão Bonaparte.
Metodologia
científica e posicionamento político
Já
vimos que no passado, o posicionamento político entre cientistas sociais estava
contra a sociologia clássica não marxista e a sociologia dos EUA. Elas seriam
ideológicas. Portanto, como certos sociólogos andam dizendo, não ler textos de
outros autores não é uma coisa pós 1964 e da nova geração de cientistas
sociais.
Agora, o que
está em questão é metodologia (mais à frente falo de posicionamento de novo).
Basicamente, como as ciências sociais vieram historicamente depois de ciências
como a física, a química e a biologia, por exemplo, que se baseavam na
matemática para suas práticas metodológicas, as ciências sociais não fizeram
diferente. Aliás, fizeram. Na França, onde oficialmente a sociologia se tornou
oficial, esse método baseado na matemática e, claro, em experiências, foi
utilizado pelas ciências sociais; na Alemanha, outra interpretação tentou
desenvolver um método próprio, e não baseado em Karl Marx, pois seu método
tinha uma mistura de filosofia com história e matemática (método dialético), às
vezes até chamado de antropologia filosófica, e esse método alternativo a Marx era
baseado numa sociologia que entendia que deveria tornar compreensíveis os
fenômenos humanos, pois pessoas não são como animais selvagens, florestas e
plantas, ou compostos químicos e ondas de magnetismo e eletricidade.
Historicamente,
no entanto, o primeiro método, mais “matemático” foi o que vingou no Brasil,
justamente na USP, que oficializou às ciência sociais no Brasil. No Nordeste,
existia Gilberto Freyre e outras pessoas tentando fazer uma ciência mais
próxima ao cenário brasileiro, defendendo uma metodologia mais “raiz” e menos “nutella”.
Mas, isso não aconteceu. Na segunda metade do século XX, porém, não foi apenas
no Brasil que o primeiro modelo, que podemos didaticamente classificar de
positivista, “deu errado” nas ciências sociais. O segundo método, defendido
pelos alemães, começou a ganhar a força.
Na mesma
época, o marxismo como um posicionamento político e científico, começou a declinar,
principalmente após a Queda do Muro de Berlim (1989). Ao mesmo tempo, novos
movimentos sociais, como o feminismo, o pós-colonialismo e movimentos
antirracismo estavam defendendo posicionamentos políticos contra a ciência “ideológica”,
pois o método matemático não garantia que a ciência, quando contextualizada
social, cultural e historicamente, não fizesse parte das dominações. Notar que
desde Marx que esse “mecanismo acusatório” já era empregado para denunciar a
ideologia burguesa por trás da ciência.
Então,
novamente, a pulsão, a repetição: a ciência era escrava da ideologia. O
posicionamento político definia qual ciência ler e qual ciência praticar. E
aqui, não estamos diante de nenhuma “inversão” ou “novidade”, estamos diante de
uma prática se repetindo, mesmo que, claro, não possa se reduzir a ser cópia do
passado. Apenas vemos as coisas acontecendo de maneiras semelhantes. Nosso erro foi se esconder como gatos, deixando a calda de fora. Não, não há novidade aqui.
A metodologia
científica varia. Varia conforme objetivos, dados que se devem colocar,
perguntas que se devam compartilhar, consensos que se devem manter ou substituir.
A ideia de uma unidade científica é um mito. A ciência varia entre áreas,
também. E aqui, vem uma coisa que julgo muito importante: nas ciências sociais,
e aqui me refiro apenas à sociologia e à antropologia, método e objetividade são
coisas quase que totalmente diferentes. Digo isso porque saí do mestrado em
sociologia e entrei no doutorado em antropologia jurando que era a mesma coisa
e levei uma tapa na cara. Portanto, culpar o Brasil e às ciências sociais por deixar
a sociologia perder seu método e cair na ideologia é um absurdo e, salvo os
posicionamentos, formações, e intenções, é falar com outras palavras o que o
bolsonarismo vem fazendo.
O
que precisa ser esclarecido é que ciência e objetividade são coisas relativas.
Principalmente nas ciências sociais. Buscar objetividade científica não é um
caminho errado, do contrário não se estaria fazendo ciência; mas existem formas
alternativas de se fazer isso. Por outro lado, reduzir a ciência não apenas à
ideologia, mas deixar de ler algo porque não vai de acordo com meu
posicionamento político é, sem sombra de dúvida, o mesmo que a religião fazia
no passado, dogmatismo (e hoje, assim como o bolsonarismo). E sim, isso é onde cientistas sociais e de humanas
perdem, pois sinalizam para o bolsonarismo que só se faz ciência ou com um
posicionamento ou com outro. Quem perde? A ciência. E a quem a ciência tem o
dever de beneficiar? A todos e todas. Combater os interesses políticos que
decidem quem financia, quem faz política social, quem se beneficia do
desenvolvimento tecnológico, por exemplo (agronegócio ou agroecologia e
orgânicos?), é só um de tantos interesses por trás da ciência. É por isso,
aliás, que as coisas precisam ficar claras: fazer ciência pode ser fazer
política com outros meios, mas ciência e política são práticas específicas,
apesar de interdependentes. Do contrário, não haveria diferença entre fazer um
carro ou uma estrada e fazer um decreto ou uma lei. Não, definitivamente não se
pode fazer o mesmo que o governo faz ao reduzir as ciências humanas e sociais à
“doutrina” e à “ideologia”.