quinta-feira, 24 de outubro de 2019

Fora de Contexto - texto apresentado em uma aula de Teoria e História da Antropologia na UFPE

Marilyn Strathern*


Preâmbulo
            Originalmente o ensaio ora analisado foi apresentado na famosa palestra Frazer, instituída inicialmente em 1922, em Universidades Britânicas. (p.9). Na época de sua apresentação, Strathern afirma que o pós-moderno estava sendo gestado no período de Malinowski, em oposição a Frazer. A fase de Frazer, por sua vez, era o moderno que estava a ser gestado (p. 10).

O que interessa a Strathern, nesse contexto, é demonstrar que "a redação não se exime das relações extralinguísticas e, portanto, constitui uma forma propriamente política de expressão do sujeito da antropologia..." (p. 11).

Ainda na apresentação (15) se fala da noção de jogo livre - o jogo em que os contextos são misturados como se não houvesse diferença entre eles; e jogo estruturado - cujo poder reflexivo se encontra precisamente na capacidade de diferenciar contextos. O jogo livre só existiria retoricamente; o segundo ocorre a partir de uma escrita comum à época, década de 1980, na qual a antropologia vivia um momento celebrado por alguns, criticado por outros, como de reflexividade antropológica ou de ênfase sobre o fazer antropológico em geral.
Tal reflexividade, e para antecipar o primeiro eixo analítico, é preciso dizer que a escrita e a relação entre autor/escritor, nativo/a e leitor/a vêm para o primeiro plano, sendo, portanto, a preocupação central de Strathern; o segundo eixo, que fica mais claro a partir da leitura do pósfacil de Renato Sztutman (USP), é o deslocamento da representação/cultural em Strathern, para uma abordagem ontológica. Sztutman define a virada ontológica da seguinte maneira, e a partir de Viveiros de Castro e Márcio Goldman: [...] a criação de novos conceitos a partir de etnografias interessadas em descrever outros modos de descrição do mundo. (p. 149)

I – Início
            Strathern inicia sua apresentação com uma interessante provocação: em que medida o propósito da antropologia pós-moderna de dar voz ao "outro" não serve antes a sua autolegitimação?

Anacronismo
            Falando sobre James Frazer, Strathern enfatiza o "anacronismo" presente em imputar visões de um agora tornado visível sobre um passado que se entendia em seus próprios termos. Aqui podemos sugerir que se trata da modalidade de jogo livre. Ou seja: os contextos do nosso presente são misturados com os do passado. Para a autora, isso é que nos dá a sensação de que "houve uma história". (p. 34).

Escrita e contextos
A autora levanta uma questão a cerca da legibilidade de Frazer em um momento e sua inelegibilidade em outro. Vejamos:

"A questão interessante é como antropólogos modernos [Malinoswki e companhia] conseguiram construir Frazer como uma figura que não cabia no tempo deles e como de fato a escrita, que para tantos outros era eminentemente legível, para eles se tornou ilegível. (p. 35).

            Para Strathern, Malinowski foi fundamental para esse efeito gerado sobre a obra de Frazer. Javier, Strather diz que a revolução promovida por Malinowski foi de: 1) substituir a antropologia de gabinete pela experiência de campo; 2) substituir, nos estudos da religião e da magia, as crenças em prol da ação social (o rito); 3) substituir falsas sequências evolucionárias por uma compreensão da sociedade contemporânea (sincronismo). Mas vejamos ainda como o eixo que chamamos de escrita, aparece nessa leitura: "Embora ainda haja algum debate mais ou menos frequente em torno dos argumentos do próprio Frazer, o que se condena é seu estilo [de escrita]" (p. 38).


Escrita e método
            Strathern diz que Malinoswki procedeu com uma escrita diferente da de Frazer. Ela fala do impacto do escritor sobre a imaginação, no relacionamento entre escritor, leitor e assunto/campo. Aqui as relações se dão de modo interno ao texto, no modo como o escritor arranja suas ideias. Com isso, o método comparativo mudou... (p. 42).

Ficções persuasivas
            Strathern diz que "Uma vez que qualquer obra escrita busca um certo efeito, isso só pode ser uma produção literária" (p. 42). Desse modo, a escrita de Frazer impactou seus leitores devido a sua familiaridade com eles. Diferente do que viria a acontecer com a Antropologia posterior (p. 47). Isso demonstra que a escrita em Frazer vinculava autor e leitores. Seria apenas com o modernismo que surgiria a ideia de distância entre leitores e autores. Ou seja: do gabinete, Frazer selecionava material para escrever para seus leitores. Porém, quando a ideia de campo surge, com ela vem a sensação de deslocamento: o antropólogo agora sai do ambiente familiar e se dirige para um lugar distante, inserindo na relação entre autor e leitor, os informantes e seu contexto. Com isso, "O trabalho de campo tornou um novo tipo de ficção persuasiva possível" (p. 52).
            Dá-se ênfase a Malinowski e sua colocação do "outro-objeto" dentro da "moldura" de seu "contexto", afastando o primitivo do historicismo etnocêntrico. O etnocentrismo torna-se recurso para a escrita, pois descentra o eu, ou tenta, colocando pragmaticamente o entendimento observado em seu contexto. Diferente de Frazer, que os extraía de seus contextos para poder realizar comparações entre culturas e, assim, “as colocaria em degraus de evolução diferentes” (p. 54).
            Notar a ênfase recorrente de Strathern na escrita, em como Malinowski cria um texto que separa o nós e o eles e, assim, articula um texto em que utiliza modelos para traduzir o sentido ou senso comum do outro e os contrasta com o nosso sem, contudo, hierarquizá-los. Desse modo, não se fala apenas entre nós e eles, etnógrafo e campo, mas entre ambos e o leitor. Portanto, caberia ao etnógrafo criar textualmente, escrever, essa relação. Mais tarde, será justamente essa escrita sobre o outro que será denominada de autoridade etnográfica (ver nota 47, p. 66/67). Já Frazer, antes, estabelecia uma autoridade com referência a uma moldura extrínseca aos nativos - no sentido de história que ele e seus leitores compartilhavam (p. 61).


Os jogos e a escrita
            Diz que se poderia de modo pós-moderno, aprovar Frazer ao retirá-lo do seu contexto. Isso ocorre porque o leitor poderia interpretar o texto etnográfico ao seu bel prazer, sem os contextos (jogo livre). Caso queiramos embaralhar contextos, então teríamos um guia histórico no próprio Frazer (p. 71).
            Em suma: Frazer pode ser um pré-cursor do pós-modernismo, mas não um pós-moderno tal como se poderia pensar. Isso devido à sua escrita, claramente não reflexiva. Já Malinowski, ao falar de etnocentrismo e contextos deslocados, utiliza isso não apenas como uma crítica, argumento, mas como uma emolduração que deveria ser substituída metodologicamente por uma escrita sobre os informantes lidos em seus contextos e, claro, sustentada pela autoridade do antropólogo que carrega a tradução entre as culturas ao deslocar o contexto do campo para os leitores.
A antropologia pós-moderna, então, ao brincar, jogar com contextos e múltiplas vozes, em alguma medida não faz algo tão distante do que o próprio Frazer o fez no passado. A questão é que no contexto pós-moderno, existe a relação com o leitor e o posicionamento do etnógrafo como autor explicita e reflexiamente, além de que o texto se torna também polifônico em sua relação com os informantes, que deixam de ser meros objetos da antropologia.

Parece que Frazer "fazia", sem perceber, o jogo de contextos, levando em conta, todavia, apenas sua "moldura"; não a dos informantes, nem a dos leitores, apenas aquela comum a ele e leitores médios.

Parte II – Em contexto

            Após os comentários ao capítulo escrito por Strathern, ela inicia sua réplica se dirigindo claramente ao Javier, que a atacou de forma mais dura. Diz Strathern: "talvez o que salve a não ficção (por definição, nunca ‘a coisa real’) da transcendência sejam os próprios limites em sua capacidade de estabilização" (p. 123).
            Esta frase beira o esoterismo. Mas vejamos: primeiro ‘não-ficção’ é uma definição, uma escolha, um sentido dado ao invés de outro, a saber, ‘à coisa real’. Segundo: ‘não-ficção’, pensado então como análogo à ‘coisa real’ seria salva da transcendência devido aos limites na capacidade de estabilização. Em outras palavras: conseguimos estabilizar determinados sentidos da realidade de modo mais duradouro do que outros. Parece que podemos responder certas coisas de uma maneira quase intuitiva; já outras, não. Isso nos dá a impressão de que existe uma realidade além de nossas ficções. Anteriormente, Strathern usou esse tipo de reflexão para falar sobre a nossa impressão de que “existe uma história”. Portanto, não se trata de uma coisa diferente.
            Lembremos: os eixos são a escrita e ontologia. Javier “provocou” Strathern, preocupando-se com a verdade e, por conseguinte, com a separação da ficção da ciência; ela o respondeu: "verdade sobre o quê?". Nesse sentido, ela diz que o que importava para ela, diferente de uma busca pela verdade, era outra coisa, a saber: “"a forma pela qual ideias são comunicadas e [qual seria] seu decorrente efeito para a estruturação das relações interpessoais" (p. 124).
            A escrita, portanto, se produz como um efeito de realidade, ou gerando efeitos sobre a realidade. Tal efeito se dá em uma relação. Neste caso, Strathern está se referindo à escrita etnográfica como produtora de uma realidade. Eis sua divergência com Jarvier: enquanto ele reivindica uma verdade extra-discurso, apartada da linguagem, do signo e, finalmente, da ficção; Strathern está dizendo que a escrita gera um efeito de verdade em uma comunicação que, claro, só pode ocorrer numa relação. Não está em questão o estatuto de verdade, mas a descrição de uma realidade enquanto, por ser literária, não deixaria de ser uma ficção persuasiva.
            Strathern prossegue. Ela menciona E. Tonkien, dizendo que quando a autora fala em ideologia e política, por exemplo, contrastando a relação com ficção e contextos, ela muda sua "moldura" para uma "semântica" que considera algo como ficção, externalizando uma coisa em relação à outra. Isso, supomos, significa dizer que o próprio ato de Tonkien opera uma distinção que privilegia um "texto" (político-ideológico) e, portanto, parece se esquecer de estar inserida na escrita. Em outras palavras: tal como a verdade em Jarvier, Tonkien traz elementos externos à ficção como se eles não constituíssem uma realidade agenciável e agenciada pela própria escrita da autora.
            Strathern diz que Tyler e Marcus a descontextualizam. Prossegue dizendo que eles a questionam por "acreditar" no que seria moderno e pós-moderno, mas ao fazê-lo, acabam entrando numa discussão que insere uma visão teórica sobre se, de fato, "a" modernidade e "a" pós-modernidade seriam o que realmente, de fato, são. Em outras palavras: Tyler e Marcus querem uma história certa. Não fazem a inversão que ela fez com Malinowski e Frazer (como se o primeiro fosse o precursor de um certo Frazer – aquele que poderia ser a fonte do jogo livre, pós-moderno). Ela diz que eles alegam que todo texto possui uma autorreferência (selvagem/civilizado). Porém, ela diz que uma inversão particular e concreta pode não ser autorreferente (p. 127). Para Strathern, essa particularidade cria um contexto. Isso seria possível porque “estaríamos de fora”: por exemplo, sua inversão de Malinowski e Frazer (moderno, pós-moderno) pode ser visto como um jogo livre; mas ela ao mesmo tempo produz essa particularidade num jogo estruturado, produzindo um contexto a partir da reflexividade sobre sua escrita. Algo que não existia do mesmo modo, se é que existia, com os dois antropólogos mencionados.

Conclusão
            Falamos que Fora de contexto é posfaciado por Renato Sztutman. Ele sintetiza o texto de Strathern da seguinte maneira: "o que chamamos de teoria deixaria o campo da transcendência, e a relação entre esta e a etnografia, entre o fazer da antropologia e sua história ou epistemologia, poderia se renovar” (p. 143). Com isso, ele associa Strathern à virada ontológica (p. 149).
            Como dissemos no início deste seminário, Strathern coloca em primeiro plano o papel da escrita. Ao fazê-lo, ela afirma que se a escrita antropológica é uma forma de escrita literária, então ela se torna uma ficção persuasiva. O segundo eixo, que pode ser associado à ideia de jogo estruturado, na qual a reflexividade do fazer antropológico se torna uma preocupação para a prática antropológica, tem em vista que o texto, um artefato construído pela relação entre etnógrafo/a, leitor/a e, diferente da antropologia moderna (Malinoswki) e pré-moderna (Frazer), o/a leitor/a, produz um efeito sobre a relação de comunicação entre as partes. O que significa que o texto, finalmente, torna-se parte da realidade, criando um novo contexto, diferente daquele presente no jogo livre, que estaria, em suas inversões e autorreferências, nas particularidades não esgotantes em si. Em outras palavras: escrever sobre algo é conceber um novo contexto sobre o que se escreve. Derrida jamais deixou de nos lembrar do caráter performativo da escrita.


sábado, 19 de outubro de 2019

COMO ENTENDER OS OUTROS? Da cultura para ontologia na antropologia (Virada Ontológica III)


Marcelo Camargo. Agência Brasil.*
Não é que não “exista” cultura. A questão é que seu uso como conceito pode tornar compreensíveis ações que vinculam pessoas, ambientes e coisas de um modo que parece explicar - para nós - o sentido por trás destas ações. A cultura, mais ainda, é normalmente compreendida como um tipo de média comportamental esperada em uma escala ampla e difusa (falamos de cultura alemã ou ameríndia; cultura de terreiros; cultura muçulmana etc.).

O problema é que quando desejamos compreender a cultura dos outros, diferentes de nós em relação a esse média comportamental suposta - como se todo muçulmano fosse um "terrorista", todo estadunidense fosse patriota, e todo brasileiro amasse futebol ou carnaval etc.), ou para que possamos esclarecer a razão ou os sentidos das ações que não nos parecem claras, recorremos à interpretação das representações culturais dos outros em nossos próprios termos ou "repertórios" culturais – nossos próprios modos de entender algo ou, de modo geral, "nossa própria visão de mundo" [Na área da história, por comparação, temos o anacronismo, que ocorre quando avaliamos o passado a partir de nossos próprios termos "presentes"]. Mas isso nunca permite “extrair” fielmente a experiência vivenciada por essas outras culturas, o que significa sempre uma perda de sentidos que, por outro lado, nos garante, pelo menos, uma representação mínima de outrem, de outras culturas [daí a importância da antropologia, pois ela pretender com o trabalho de campo conhecer mais profundamente essa "outra cultura", sem ficar apenas com impressões e pré-conceitos]. O que é um custo muito caro e não poucas vezes infrutífero (muitas vezes insustentável eticamente - bastante evidente na questão indígena). Aliás, é por isso que antropólogos/as são ótimos para entender a "cultura" de terraplanistas ou bolsonaristas, sem ficar brigando a priori e chamando o terraplanista de irracional, ou o bolsonarista de "apenas" fascista, cínico ou ignorante (o buraco é mais em baixo...) 


         Neste sentido, optar pela ontologia nos promete um tipo de mudança metodológica: como desejamos observar os outros? Como faremos isso? Se com o conceito de cultura olhávamos para representações dos outros e tentávamos transportar tais representações para "dentro" do nosso sistema de compreensão e nossa própria "visão de mundo", para tornar inteligível o que nos parecia irracional; com a nova abordagem nos concentramos nas ações (performance) que podem ser observadas  enquanto formas de lidar com o mundo diferentes, constituindo, assim, uma realidade local (nenhuma realidade é universal, ela é construída e difundida, reterritorializada, deslocada, transformada de um canto a outro). Observar desse jeito evita o problema da “colisão” da "nossa cultura" com a dos "outros". Isto é: não faz mais sentido fazer nossa representação cultural se chocar com a representação de outros, até porque cultura já faz parte de nosso sistema de signos, podendo não ser um conceito traduzível para outros povos. Tal como dois aviões que colidiriam no céu, talvez deixando poucos passageiros/as para explicarem “de onde vêm, quem são e como deveriam se ajudar”,  culturas levam a esse problema quando "colidem". 

Quando optamos por ontologias, seríamos como torres de observação monitorando e descrevendo quais sãos as rotas que os aviões (culturas) estão fazendo, sem que se chocassem e, possivelmente, fazendo-os se comunicarem em prol de ajuda. Politicamente poderíamos dizer que tais ajudas seriam ou pontuais, com objetivos em curto prazo, ou duradouras, como a constituição de um bem comum que se estenda politicamente.

Quem sabe, finalmente, se nossa compreensão chegue a um ponto de não observar a fotografia de Marcelo Camargo (acima) como se fosse uma diferença entre "povos primitivos" e "civilização moderna". Essa interpretação é, para nós antropólogos, apenas sinal de ignorância, quando não apenas etnocentrismo ou, pior, o cinismo comum ao governo que só enxerga a realidade como refém da circulação econômica de capital, como um fim em si mesmo.
             

Fonte da Imagem: Jornal da USP. Link: https://jornal.usp.br/atualidades/os-indigenas-e-os-impactos-da-colonizacao-europeia/

segunda-feira, 14 de outubro de 2019

Ontologia e GÊNERO - Virada Ontológica II


Sexo/biologia a priori
            Quando um feto está sendo gerado, precisamos esperar algumas semanas pra saber seu sexo. Certo? Pois bem, para pensar em sexo (macho/fêmea) de um feto, devemos esperar exames de ultrassom pra saber. Certo? Isso é natural, né? Ficamos com a afirmativa: sim, é natural.
           
Gênero/cultura a priori
            Quando um feto é gerado, tornando-se uma criança, um bebê ou uma bebê, sabemos de antemão, que será um “menino” ou uma “menina”, já que fizemos ultrassom ou, como no passado, a criança nascia com um pênis ou vagina. Mas desde o desenvolvimento das ciências humanas e sociais, descobrimos que “não se nasce mulher, tornamo-nos mulheres” (ou “homens”).
            Com essa interpretação, começamos a entender que não bastava nascer com um “sexo biológico”, a “cultura” ou a socialização é que construía ser “mulher” ou “homem”. Então tá' certo: você pode nascer com um pênis ou com uma vagina, mas como você se tornará isso ou aquilo varia de acordo com a cultura na qual você nasceu. Assim, por exemplo, ser mulher ou homem em Recife é diferente de ser indianos, islâmicos, xucurus etc. Resultado: ser homem ou mulher varia de lugar para lugar; de época para época.
            Neste sentido, a cultura é que “constrói” sobre nossos corpos o que significa ser homem ou mulher. Mas significar isso ou aquilo pressupõe que nosso sexo é algo inquestionável. E seria diferente? Pois bem. Então vamos pensar que “gênero” é apenas um conceito.
            Quando falamos em gênero estamos falando numa “construção cultural”, numa construção “social”. O que significa dizer, como já dito, que cada sociedade ou cultura tem um jeito particular de lidar com o nascimento de corpos com pênis e com vaginas. Então feminilidade e masculinidade vão variar conforme “visitamos” diferentes sociedades. Por exemplo, se o futebol é uma coisa bastante associada a "cultura masculina", quando visitamos os Xucurú de Pesqueira, vemos que são as mulheres de lá que “dominam” o futebol (essa notícia saiu numa matéria do Globo Esporte).
            Em certo sentido, estamos acostumados/as a entender a “cultura” como variável, não o sexo biológico. Até aí tudo bem?
              
Ontologia/performance
            Nas últimas décadas do século XX, as ciências sociais e humanas começaram a se perguntar sobre em que medida nossa visão de cultura era “relativa”. Isto é: se te pergunto como é “ser mulher” ou como é “ser homem”, como você responderia? Conforme viajamos para outros lugares, os comportamentos e hábitos masculinos e femininos variam. Assim, parece que confirmávamos que o “gênero” era uma coisa de cultura – como se fosse os comportamentos e hábitos variados em cada lugar e tempo, conforme gênero em questão (masculino e feminino). Isso nos fazia perceber que existiriam diferentes formas “culturais” de ser homem ou mulher. Porém, surgiu um “movimento” que começou a pensar assim, “ora, se o gênero é cultura, porque nossa concepção sobre sexo não é?”. Por acaso o significado que damos para corpos com pênis e vagina é inquestionável, ou eles são resultado de nossa, por que não, construção cultural? Em outras palavras: se gênero é uma construção cultural, por que nossa milenar concepção de “sexo” também não seria? Acaso não são todas essas interpretações, produtoras de significados e sentidos que definem como homens e mulheres deveriam ser?
            Cultura/gênero é produto das ciências e movimentos sociais. Mais ainda, é algo recente. Antes, por exemplo, no início do século XX, no Brasil, os comportamentos não eram analisados com o termo “gênero”, mas com o termo “sexo” (masculino/feminino). Neste contexto, determinados comportamentos eram associados ao masculino, outros ao feminino; assim como acontecia com o termo “raça”, que associava coisas “boas” aos brancos e coisas “ruins” aos negros. O que estava aceito, por outro lado, era que da biologia, viria alguma influência sobre o comportamento de homens e mulheres, brancos e negros. O que resulta numa questão: se as relações sociais ou culturais se baseavam na biologia, existiria alguma diferença entre “sexo” (biologia) e “gênero” (cultura)?
            Com esse raciocínio, podemos nos perguntar, afinal, qual a diferença de lidar com sexo biológico e gênero cultural? Se ontologia é sobre a natureza do ser, da natureza da realidade, então gênero talvez sempre tenha sido sexo e vice versa*, pois seria a construção do sentido e significados sobre corpos que definiriam como entendemos o que uma coisa (macho/homem) é e o que é outra (fêmea/mulher)**.
            Num exercício prático, cultura está para representação daquilo que “consideramos” ser construído, como o gênero feminino e o masculino a partir de dados biológicos; enquanto a ontologia está para como corpos podem ser diferenciados e como eles produzem uma realidade a partir de suas práticas. Neste sentido, com ontologia podemos observar as construções (discursivas) que geram efeitos sobre o que entendemos por masculino e feminino, independente se falamos de sexo ou de gênero, pois ambos termos produzem práticas observáveis.
            O “truque” é “como” ou “pra onde olhar”. Quando usamos cultura, é como se olhássemos para representação/imagem que figura algo (homem, mulher); quando usamos ontologia, olhamos pra junção das práticas de pessoas produzindo seu modo de ser, independente das figuras que pressupomos. Assim, ser homem ou ser mulher é algo que precisa ser descrito, não algo explicado a partir de nosso próprio entendimento do que seja “gênero”, por exemplo. Sempre que uma pesquisadora mobiliza o conceito de gênero para realizar uma pesquisa, produzir um artigo etc., ela está mobilizando sua própria realidade para dar sentido à realidade por ela observada e, por conseguinte, para os atores ou informantes que ela estuda (tenha ou não consciência disso).
           

O gênero na imagem. GB 2019

* A socióloga Cynthia Lins Hamlin descreve como o gênero “coloniza” o sexo na obra de Judith Butler (Cf. Corpos-Texto: a Colonização do Sexo pelo Gênero na obra de Judith Butler.
** Faça um teste: tente imaginar um corpo, um feto, sem conceber uma identidade masculina ou feminina para ele/a. Agora se pergunte se em nossa “cultura” e sociedade, se esse corpo é ou não associado a uma identidade desde o momento em que passa a existir. É um “sujeito de direito”; é “menino” ou “menina”; é “filho de alguém”; é “parente de outrem”; é “estatística de natalidade” etc. Para Butler não existe algo que seja pré-linguístico, anterior as práticas discursivas.

quarta-feira, 9 de outubro de 2019

Sobre epistemologia e ontologia (em Antropologia) - Virada Ontológica I



            Já existe literatura especializada em língua portuguesa, atualizada, para se compreender o que tem se chamado de “virada ontológica” na Antropologia durante as últimas décadas. Aqui, busco apenas introduzir o assunto.
            Segundo o antropólogo Roy Dilley (2010), James Frederick Ferrier () foi o “pai do termo “epistemologia” (epistemology) – e também agnoiology. Basicamente, epistemologia significa a ciência do conhecer e como conhecer (o que contrasta com seu oposto, a agnoiology, que seria uma teoria da ignorância).
            Podemos entender a epistemologia então como um “modo de conhecer” ou “o estudo dos modos de conhecer”. Noutra acepção, poderíamos pensar na epistemologia como a pergunta “como o conhecimento é possível?”. Por isso, não há “semelhança” com a palavra “ontologia”, a não ser pelo sufixo derivado do “logos” (como estudo de algo, como bio-logia, sócio-logia, antropo-logia etc.).
            O termo episteme, sem o sufixo, foi empregado por Michel Foucaul de As palavras e as coisas e A arqueologia do saber para compreender os diferentes modos de conhecer que se desenvolveram da escolástica medieval até o desenvolvimento da ciência moderna (e além...). Deixemo-lo falar:

[...] Por episteme entende-se, na verdade, o conjunto das relações que podem unir, em uma dada época, as práticas discursivas que dão lugar a figuras epistemológicas, a ciências, eventualmente a sistemas formalizados; o modo segundo o qual, em cada uma dessas formações discursivas, se situam e se realizam as passagens à epistemologização, à cientificidade, à formalização; a repartição desses limiares que podem coincidir, ser subordinados uns aos outros, ou estar defasados no tempo; as relações laterais que podem existir entre figuras epistemológicas ou ciências, na medida em que se prendam a práticas discursivas vizinhas mas distintas. A episteme não é uma forma de conhecimento, ou um tipo de racionalidade que, atravessando as ciências mais diversas, manifestaria a unidade soberana de um sujeito, de um espírito ou de uma época; é o conjunto das relações que podem ser descobertas, para uma época dada, entre as ciências, quando estas são analisadas no nível das regularidades discursivas. (2008, p. 214).

            “Práticas discursivas” que dão lugar a “figuras epistemológicas”. Lembrar que discurso para Foucault é mais amplo que “falar ou argumentar”, mas compreende um conjunto de práticas que produzem, por exemplo, efeitos de verdade. Assim, quando falamos em episteme, estamos falando de epistemologias que se desenvolvem local e historicamente. Antecipando uma grande contribuição da Antropologia, é com tal área que “descobrimos” que essas epistemologias são locais e situadas e, portanto, a Ciência Moderna é um modo de conhecer, com suas características, propriedades e convencionalismos próprios, distintos de outras epistemologias ou saberes. Ainda assim, é uma epistemologia – ou ao menos tentou ser uma, universal...
            Ontologia, por sua vez, remete a um logos do ser, sobre uma ciência ou estudo sobre o ser das “coisas”. Dito de outro modo: é um estudo que se pergunta sobre a natureza da realidade. Um exemplo pertinente pode ser extraído de um marxista húngaro, György Lukacs (). Em sua concepção geral, existiriam três esferas de realidade: uma inorgânica, outra orgânica e, por último, uma social. Vê-se que sua abordagem compreenderia, basicamente, matéria químico-física, matéria biológico-químico-física e, relações sociais entre as matérias mediadas pela mente humana. Seguindo sua explicação, durante o curso da evolução, ocorreram “saltos” do inorgânico para o orgânico e do deste para o social, permitindo o desenvolvimento da consciência humana e sua vida social.
            Mas o caso de Lukacs é só um exemplo de um brother que concebeu uma leitura ontológica para explicar a realidade das coisas. Na verdade, a ontologia é “apenas” um ramo da filosofia grega, clássica, originada ao menos desde Aristóteles. Em algum sentido, portanto, a ontologia é também metafísica, pois está se propondo ao estudo do “além”(meta) da “matéria” (física). É sobre o “ser das coisas” (ou dos entes, como dizia Heidegger de O ser e o tempo). Então esse tipo de abordagem está interessado em estudar a “natureza da realidade”, suas particularidades, características etc. Mas tal estudo, por sua vez, só é possível, digamos, dentro de um espaço-tempo (ou de uma cultura historicamente dada). Marx, por exemplo, é criticado neste sentido quando seu materialismo histórico parece estar fora do espaço-tempo, supostamente podendo explicar como a história “funciona” ou como ela “opera” suas transformações (como se ele tivesse descoberto os mecanismos “materiais” estruturantes e por trás das ações humanas).
            Se a epistemologia científica alcançou seu status pleno (limiar de cientificidade), então para uma área proto- ou pré-científica se tornar científica, ela tem que “ser aceita” “pela” episteme (não, não é uma pessoa ou instituto, são “as práticas discursivas de um momento particular que sancionam práticas relativas a diferentes epistemologias). Por exemplo: para Sociologia e Antropologia se tornarem ciência, elas precisaram compartilhar elementos que sustentam a epistemologia sancionada, a Ciência. Como bem sabemos, Sociologia e, principalmente, a Antropologia, vem lutando durante os últimos dois séculos para serem reconhecidas como Ciência.
           
            Se a epistemologia é esse estudo das possibilidades e como conhecer, tendo a Ciência o reconhecimento convencionalizado como mais “eficiente” e “eficaz”, e a ontologia ser um estudo “metafísico” sobre a natureza da realidade, então por que na Antropologia nos confundimos tanto? Por que a “virada ontológica” assusta tanta gente? Por que largar a “cultura” e ficar com a “ontologia”?
            Uma dica que me pareceu útil – depois de assistir uma aula sobre o assunto nesta semana, com ênfase em Tim Ingold e Perig Pitrou – foi a seguinte: cultura está para representação assim como a ontologia está para a ação/performance/construção. Vai ficar claro...
            Quando a Antropologia se propôs a ser uma ciência, ela precisou compartilhar da epistemologia comum às práticas científicas. Com sua epistemologia num livro de bolso, nossa querida Antropologia se deparou com “nativos” de outras terras. Assim, conforme estudava essas terras e seus nativos, ela percebia que eles tinham uma “cultura/representação” diferente da dela própria. Então caberia à Antropologia interpretar essas culturas/representações e explicar as razões que faziam com que esses “estranhos” nativos pensassem e agissem como agiam (irracionalmente). Com isso, a epistemologia científica estaria, como queria o positivismo francês de August Comte, num grau superior aos dos “primitivos e selvagens nativos”. Estes estariam presos a crenças, mitos e, no máximo, religiões (esse pensamento etnocêntrico e arrogante é invocado toda vez que um ateu “blasfema” contra a religião de alguém – sim, você está sendo positivista com sua crença científica!).
            Mas com o chamado “movimento” da “virada antropológica” pós anos 1980, nossa querida amiga passava por uma “crise de representatividade”, pois percebera que a “cultura/representação” era Uma versão epistemológica da realidade, e existiam tantas outras quanto existiriam outros povos e terras “estranhas”. Em sua crise existencial, ela se perdeu, concordamos, mas com a ontologia sendo extraída da filosofia, e focando-se no estudo das práticas e da ação, nossa desolada amiga começou a ter esperança novamente. Ela percebeu que se você substitui “cultura/representação” por “ontologia/performance/construção”; e explicação/interpretação por descrição, então você pode passar a observar a construção da realidade que é levada a cabo por cada “nativo/pessoa-povo” que era tido como “selvagem/primitivo/irracional”.
            É neste sentido geral, sobre ontologia, que são observadas coisas como “agência não humana”. Ou seja: se percebemos que não é mais a representação cultural de um povo que deve ser explicada para “nosso povo” em nossas monografias e artigos, então podemos substituir esse comportamento pela observação, aprendizado e descrição de como um povo constitui ou produz sua realidade, e como essa realidade gera efeitos no mundo-local em que esse povo vive. O engano ocorre quando tentamos observar a ontologia como uma representação de um povo. Aí sim, voltamos “sem querer” à cultura/representação, restaurando toda a estrutura anterior da Antropologia quando tentamos ir além dela. Daí algumas críticas surgirem dizendo que “ontologia” é só mais outro nome para “cultura”.  
                       

Nos próximos textos tentarei falar sobre como essa diferença entre cultura e ontologia incide sobre o conceito de gênero. Também pretendo falar sobre o que aconteceria se a ontologia fosse abordada pragmaticamente (não que ela já não esteja caminhando dessa forma, mas digo radicalmente).            

Duas religiões econômicas no comércio

 - Terminei. Vamos? - Diz minha pequena. - Posso ir ao banheiro? - Diz minha segunda pequena. Alguns minutos depois, caminhamos sobre o asfa...