|
Marilyn Strathern* |
Preâmbulo
Originalmente
o ensaio ora analisado foi apresentado na famosa palestra Frazer, instituída
inicialmente em 1922, em Universidades Britânicas. (p.9). Na época de sua
apresentação, Strathern afirma que o pós-moderno estava sendo gestado no
período de Malinowski, em oposição a Frazer. A fase de Frazer, por sua vez, era
o moderno que estava a ser gestado (p. 10).
O que
interessa a Strathern, nesse contexto, é demonstrar que "a redação não se
exime das relações extralinguísticas e, portanto, constitui uma forma
propriamente política de expressão do sujeito da antropologia..." (p. 11).
Ainda na
apresentação (15) se fala da noção de jogo
livre - o jogo em que os contextos são misturados como se não houvesse
diferença entre eles; e jogo estruturado
- cujo poder reflexivo se encontra precisamente na capacidade de diferenciar
contextos. O jogo livre só existiria retoricamente; o segundo ocorre a partir
de uma escrita comum à época, década de 1980, na qual a antropologia vivia um
momento celebrado por alguns, criticado por outros, como de reflexividade antropológica ou de ênfase
sobre o fazer antropológico em geral.
Tal reflexividade, e para antecipar o
primeiro eixo analítico, é preciso dizer que a escrita e a relação entre
autor/escritor, nativo/a e leitor/a vêm para o primeiro plano, sendo, portanto,
a preocupação central de Strathern; o segundo eixo, que fica mais claro a
partir da leitura do pósfacil de Renato Sztutman (USP), é o deslocamento da
representação/cultural em Strathern, para uma abordagem ontológica. Sztutman
define a virada ontológica da
seguinte maneira, e a partir de Viveiros de Castro e Márcio Goldman: [...] a
criação de novos conceitos a partir de etnografias interessadas em descrever
outros modos de descrição do mundo. (p. 149)
I – Início
Strathern
inicia sua apresentação com uma interessante provocação: em que medida o
propósito da antropologia pós-moderna de dar voz ao "outro" não serve
antes a sua autolegitimação?
Anacronismo
Falando
sobre James Frazer, Strathern enfatiza o "anacronismo" presente em
imputar visões de um agora tornado visível sobre um passado que se entendia em
seus próprios termos. Aqui podemos sugerir que se trata da modalidade de jogo livre. Ou seja: os contextos do
nosso presente são misturados com os do passado. Para a autora, isso é que nos
dá a sensação de que "houve uma história". (p. 34).
Escrita e contextos
A autora
levanta uma questão a cerca da legibilidade de Frazer em um momento e sua
inelegibilidade em outro. Vejamos:
"A questão interessante é
como antropólogos modernos [Malinoswki e companhia] conseguiram construir Frazer como uma figura que
não cabia no tempo deles e como de fato a escrita,
que para tantos outros era eminentemente legível, para eles se tornou ilegível.
(p. 35).
Para
Strathern, Malinowski foi fundamental para esse efeito gerado sobre a obra de
Frazer. Javier, Strather diz que a revolução promovida por Malinowski foi de:
1) substituir a antropologia de gabinete pela experiência de campo; 2)
substituir, nos estudos da religião e da magia, as crenças em prol da ação
social (o rito); 3) substituir falsas sequências evolucionárias por uma
compreensão da sociedade contemporânea (sincronismo). Mas vejamos ainda como o
eixo que chamamos de escrita, aparece nessa leitura: "Embora ainda haja
algum debate mais ou menos frequente em torno dos argumentos do próprio Frazer,
o que se condena é seu estilo [de escrita]" (p. 38).
Escrita e método
Strathern
diz que Malinoswki procedeu com uma escrita
diferente da de Frazer. Ela fala do impacto do escritor sobre a imaginação, no
relacionamento entre escritor, leitor e assunto/campo. Aqui as relações se dão
de modo interno ao texto, no modo como o escritor arranja suas ideias. Com
isso, o método comparativo mudou... (p.
42).
Ficções persuasivas
Strathern diz que "Uma
vez que qualquer obra escrita busca um certo efeito, isso só pode ser uma
produção literária" (p. 42). Desse modo, a escrita de Frazer impactou seus
leitores devido a sua familiaridade com eles. Diferente do que viria a
acontecer com a Antropologia posterior (p. 47). Isso demonstra que a escrita em Frazer vinculava autor e leitores. Seria apenas com o
modernismo que surgiria a ideia de distância entre leitores e autores. Ou seja:
do gabinete, Frazer selecionava material para escrever para seus leitores.
Porém, quando a ideia de campo surge, com ela vem a sensação de deslocamento: o
antropólogo agora sai do ambiente familiar e se dirige para um lugar distante,
inserindo na relação entre autor e leitor, os informantes e seu contexto. Com isso, "O trabalho de
campo tornou um novo tipo de ficção persuasiva possível" (p. 52).
Dá-se
ênfase a Malinowski e sua colocação do "outro-objeto" dentro da
"moldura" de seu "contexto", afastando o primitivo do
historicismo etnocêntrico. O etnocentrismo torna-se recurso para a escrita, pois descentra o eu, ou tenta,
colocando pragmaticamente o entendimento observado
em seu contexto. Diferente de Frazer, que os extraía de seus contextos para
poder realizar comparações entre culturas e, assim, “as colocaria em degraus de
evolução diferentes” (p. 54).
Notar
a ênfase recorrente de Strathern na escrita,
em como Malinowski cria um texto que separa o nós e o eles e, assim,
articula um texto em que utiliza modelos para traduzir o sentido ou senso comum do outro e os contrasta com o
nosso sem, contudo, hierarquizá-los. Desse modo, não se fala apenas entre nós e
eles, etnógrafo e campo, mas entre ambos e o leitor. Portanto, caberia ao
etnógrafo criar textualmente, escrever,
essa relação. Mais tarde, será justamente essa escrita sobre o outro que será
denominada de autoridade etnográfica (ver
nota 47, p. 66/67). Já Frazer, antes, estabelecia uma autoridade com referência
a uma moldura extrínseca aos nativos - no sentido de história que ele e seus
leitores compartilhavam (p. 61).
Os jogos e a escrita
Diz
que se poderia de modo pós-moderno, aprovar Frazer ao retirá-lo do seu
contexto. Isso ocorre porque o leitor poderia interpretar o texto etnográfico
ao seu bel prazer, sem os contextos (jogo livre). Caso queiramos embaralhar
contextos, então teríamos um guia histórico no próprio Frazer (p. 71).
Em
suma: Frazer pode ser um pré-cursor do pós-modernismo, mas não um pós-moderno
tal como se poderia pensar. Isso devido à sua escrita, claramente não
reflexiva. Já Malinowski, ao falar de etnocentrismo e contextos deslocados,
utiliza isso não apenas como uma crítica, argumento, mas como uma emolduração
que deveria ser substituída metodologicamente por uma escrita sobre os informantes lidos em seus contextos e, claro, sustentada
pela autoridade do antropólogo que carrega a tradução entre as culturas ao
deslocar o contexto do campo para os leitores.
A antropologia
pós-moderna, então, ao brincar, jogar com contextos e múltiplas vozes, em
alguma medida não faz algo tão distante do que o próprio Frazer o fez no
passado. A questão é que no contexto pós-moderno, existe a relação com o leitor
e o posicionamento do etnógrafo como autor explicita e reflexiamente, além de
que o texto se torna também polifônico em sua relação com os informantes, que
deixam de ser meros objetos da antropologia.
Parece que Frazer
"fazia", sem perceber, o jogo de contextos, levando em conta,
todavia, apenas sua "moldura"; não a dos informantes, nem a dos
leitores, apenas aquela comum a ele e leitores médios.
Parte II – Em contexto
Após
os comentários ao capítulo escrito por Strathern, ela inicia sua réplica se
dirigindo claramente ao Javier, que a atacou de forma mais dura. Diz Strathern:
"talvez o que salve a não ficção (por
definição, nunca ‘a coisa real’) da transcendência
sejam os próprios limites em sua capacidade de estabilização" (p. 123).
Esta
frase beira o esoterismo. Mas vejamos: primeiro ‘não-ficção’ é uma definição,
uma escolha, um sentido dado ao invés de outro, a saber, ‘à coisa real’.
Segundo: ‘não-ficção’, pensado então como análogo à ‘coisa real’ seria salva da
transcendência devido aos limites na capacidade de estabilização. Em outras
palavras: conseguimos estabilizar determinados sentidos da realidade de modo
mais duradouro do que outros. Parece que podemos responder certas coisas de uma
maneira quase intuitiva; já outras,
não. Isso nos dá a impressão de que existe uma realidade além de nossas
ficções. Anteriormente, Strathern usou esse tipo de reflexão para falar sobre a
nossa impressão de que “existe uma história”. Portanto, não se trata de uma
coisa diferente.
Lembremos:
os eixos são a escrita e ontologia. Javier “provocou” Strathern,
preocupando-se com a verdade e, por conseguinte, com a separação da ficção da
ciência; ela o respondeu: "verdade sobre o quê?". Nesse sentido, ela
diz que o que importava para ela, diferente de uma busca pela verdade, era
outra coisa, a saber: “"a forma pela qual ideias são comunicadas e [qual
seria] seu decorrente efeito para a estruturação das relações interpessoais"
(p. 124).
A
escrita, portanto, se produz como um efeito de realidade, ou gerando efeitos
sobre a realidade. Tal efeito se dá em uma relação. Neste caso, Strathern está
se referindo à escrita etnográfica como produtora de uma realidade. Eis sua
divergência com Jarvier: enquanto ele reivindica uma verdade extra-discurso,
apartada da linguagem, do signo e, finalmente, da ficção; Strathern está
dizendo que a escrita gera um efeito de verdade em uma comunicação que, claro,
só pode ocorrer numa relação. Não está em questão o estatuto de verdade, mas a
descrição de uma realidade enquanto, por ser literária, não deixaria de ser uma
ficção persuasiva.
Strathern
prossegue. Ela menciona E. Tonkien, dizendo que quando a autora fala em
ideologia e política, por exemplo, contrastando a relação com ficção e
contextos, ela muda sua "moldura" para uma "semântica" que
considera algo como ficção, externalizando uma coisa em relação à outra. Isso,
supomos, significa dizer que o próprio ato de Tonkien opera uma distinção que
privilegia um "texto" (político-ideológico) e, portanto, parece se
esquecer de estar inserida na escrita. Em outras palavras: tal como a verdade
em Jarvier, Tonkien traz elementos externos à ficção como se eles não
constituíssem uma realidade agenciável e agenciada pela própria escrita da
autora.
Strathern
diz que Tyler e Marcus a descontextualizam. Prossegue dizendo que eles a
questionam por "acreditar" no que seria moderno e pós-moderno, mas ao
fazê-lo, acabam entrando numa discussão que insere uma visão teórica sobre se,
de fato, "a" modernidade e "a" pós-modernidade seriam o que
realmente, de fato, são. Em outras palavras: Tyler e Marcus querem uma história
certa. Não fazem a inversão que ela fez com Malinowski e Frazer (como se o
primeiro fosse o precursor de um certo Frazer – aquele que poderia ser a fonte
do jogo livre, pós-moderno). Ela diz que eles alegam que todo texto possui uma
autorreferência (selvagem/civilizado). Porém, ela diz que uma inversão
particular e concreta pode não ser autorreferente (p. 127). Para Strathern,
essa particularidade cria um contexto. Isso seria possível porque “estaríamos
de fora”: por exemplo, sua inversão de Malinowski e Frazer (moderno,
pós-moderno) pode ser visto como um jogo livre; mas ela ao mesmo tempo produz
essa particularidade num jogo estruturado, produzindo um contexto a partir da
reflexividade sobre sua escrita. Algo que não existia do mesmo modo, se é que
existia, com os dois antropólogos mencionados.
Conclusão
Falamos
que Fora de contexto é posfaciado por
Renato Sztutman. Ele sintetiza o texto de Strathern da seguinte maneira: "o
que chamamos de teoria deixaria o campo da transcendência, e a relação entre
esta e a etnografia, entre o fazer da antropologia e sua história ou epistemologia,
poderia se renovar” (p. 143). Com isso, ele associa Strathern à virada
ontológica (p. 149).
Como
dissemos no início deste seminário, Strathern coloca em primeiro plano o papel
da escrita. Ao fazê-lo, ela afirma
que se a escrita antropológica é uma forma de escrita literária, então ela se
torna uma ficção persuasiva. O
segundo eixo, que pode ser associado à ideia de jogo estruturado, na qual a reflexividade do fazer antropológico se
torna uma preocupação para a prática antropológica, tem em vista que o texto,
um artefato construído pela relação entre etnógrafo/a, leitor/a e, diferente da
antropologia moderna (Malinoswki) e pré-moderna (Frazer), o/a leitor/a, produz
um efeito sobre a relação de comunicação entre as partes. O que significa que o
texto, finalmente, torna-se parte da realidade, criando um novo contexto,
diferente daquele presente no jogo livre, que estaria, em suas inversões e
autorreferências, nas particularidades não esgotantes em si. Em outras
palavras: escrever sobre algo é conceber um novo contexto sobre o que se
escreve. Derrida jamais deixou de nos lembrar do caráter performativo da
escrita.