quinta-feira, 14 de julho de 2022

Duas religiões econômicas no comércio

 - Terminei. Vamos? - Diz minha pequena.

- Posso ir ao banheiro? - Diz minha segunda pequena.

Alguns minutos depois, caminhamos sobre o asfalto, buscando sombras em um dia ensolarado, mas cuja brisa refresca, lembrando-nos que agosto está por vir, com seus fortes ventos. A festa híbrida dos católicos, São João, e seu mês, nesse mesmo calendário, greco-romano, cheio de feriados da religião predominante no Ocidente, já passou, deixando suas chuvas, e as dezenas de pessoas aterradas em sua passagem.


- Socialismo nunca deu certo. - Diz o pequeno comerciante, com ar de pequeno-burguês; com fervor religioso, com convicção histórica impressionante.

Dobramos a esquina, eu e minhas pequenas. A tarde será lúdica, para elas. Eu, ao deixá-las, caminho a passos lentos, sem pensar em outra coisa se não no trabalho cotidiano que me espera. Eis que leio:

Para designar essa subversão que torna invisíveis os scripts da organização e automático o cálculo do ótimo, começou a ser usada a palavra CAPITALISMO. Um termo cuja potência crítica infelizmente se desgasta muito rapidamente se for usada apenas para mudar o nome do metadistribuidor, aquele que "tem em sua mão" o destino de todos aqueles que se consideravam com prazer como escravos de forças imensas a serviço das quais se dedicariam inteiramente. A atroz ironia dessa religião é ser constantemente reforçada por aqueles mesmos que gostariam que não voltássemos nunca mais nossos olhos para o Céu..."(Latour, Modos de existênca., p. 379).

O pequeno comerciante, porque não "tem em sua mão" o nosso destino, adora aquele que tem: o capitalismo. Porém, percebo que a citação acima só se aplica à religião contrária: "Socialismo nunca deu certo", disse o pequeno comerciante.

Volto ao trabalho que me espera, dia e noite.

O comerciante, pequeno, retorna para seu script: "estarei lá, das 8h às 18h, de segunda à sábado; de 9h ao meio dia, no domingo"; dia e noite.

domingo, 26 de junho de 2022

Notas sobre o livro Modos de Existência

 

O livro Modos de existência: uma antropologia dos modernos, de Bruno Latour, filósofo, sociólogo e  antropólogo, foi publicado pela editora Vozes em 2019. O original foi publicado em francês pela Éditions La Découverte, em 2012.

Para a teoria antropológica, e filosofia, destaca-se o problema com o pensamento ontológico moderno. Nisso, ele se aproxima de correntes teóricas relacionadas ao realismo especulativo e à virada ontológica na antropologia.

No tocante à antropologia, mais especificamente, Latour é considerado um autor bastante inovador e crítico das "escolas" antropológicas mais tradicionais, como a antropologia estrutural, a social e a cultural. Algo que o afasta dos conceitos clássicos de "cultura" e "sociedade", assim como da ideia de uma Natureza universal e "Representações Culturais" diferentes.

A proposta do MDE segue em consonância com a virada ontológica que o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro defende (v. Metafísicas Caninbais: elementos para uma antropologia pós-estrutural). O que significa o deslocamento teórico de problemas relacionados à epistemologia - saberes, conhecimento, representações culturais etc., - na antropologia, para questões referentes aos seres.

Sendo uma proposta baseada numa investigação ontológica, o MDE parte do pressuposto que a modernidade fundada pelo pensamento europeu e "exportada" via colonização de outros povos resumiu problemas a respeito da pluralidade do ser, e do real, a questões de conhecimento (epistemologia) - dualismo ontológico: sujeito/objeto, natureza/cultura, mente/matéria, símbolo/objeto, linguagem/mundo, representação/real etc.

Ao invés de investigar os "conhecimentos e representações de uma realidade/Natureza", e da Razão, o MDE busca identificar como a experiência concreta possui uma pluralidade de modalidades do/de ser que podem apontar para diferentes ontologias.

Ontologia, então, passa a categorizar as diferentes modalidades da experiência que podem ser, e foram, descobertas até então, por Latour, seguidores e seguidoras que desenvolveram o projeto que resultou no MDE.

Ao todo, foram quinze modos de existência, ou doze modos e três ferramentas de investigação. Cada um dos modos instaura/identifica seres particulares; e possui sua própria "racionalidade" ou critérios de considerar a experiência verdadeira ou falsa (também chamados de condições de felicidade e infelicidade). Além disso, estes seres deixam trajetórias particulares que são como pistas para sua identificação e classificação. A função investigativa é descobrir esses "rastros" deixados por essas trajetórias.

Outros pesquisadores e pesquisadoras têm descoberto (instaurado) outros modos de existência ao longo da última década; assim como há quem critique e reduza os modos de existência. Mas uma coisa é certa: o livro é seminal.  

Duas religiões econômicas no comércio

 - Terminei. Vamos? - Diz minha pequena. - Posso ir ao banheiro? - Diz minha segunda pequena. Alguns minutos depois, caminhamos sobre o asfa...