domingo, 31 de maio de 2020

Com quem você fala quando tá postando?

 

Um

            Eu falo, agora, com as pessoas que postam indignação e lembro de Gaby Amarantos perguntando ao Mario Sergio Cortella sobre o assunto (“as pessoas falam e se indignam nas redes, mostram, mas não fazem nada pra mudar a realidade”). Sergio disse que é o hábito de hoje, fazer questão de mostrar sua indignação, mas nada fazer pra mudar isso.

 

Dois

            Eu não preciso tá postando texto pra mostrar pra “seu” ninguém (pessoas que cobram posicionamento) pra dizer que estou indignado. Acho que admiro mais as pessoas que “pegam as rédeas da sua vida “, como se pega um cavalo que descontrolado ou um carro desgovernado, e os colocam na pista, sob controle, do que as revoltadas pessoas. [Sartre, filósofo, diria: "o que você faz com o que a sociedade fez de vocês"; Simone de Beaouvir diria "não nascemos mulher, nos tornamos", e acrescentaria: "o sentido de ser mulher é uma coisa "da mulher", não um "destino" ditado pelos "homens"].

 

Três

            Você não precisa concordar comigo (você, a pessoa que lê, que pode ser revoltada). E esse é o ponto. Mas quem são as pessoas indignadas mesmo? São, no caso ao qual me refiro, pessoas que dizem ser de esquerda ou de direita, mas também do “centrão” (e eleitores/as de Ciro – que normalmente tão nesse “centrão” e odeiam o PT tanto ou mais que quem elegeu Bolsonaro).

 

Conclusão

            Estou seguindo um conselho de uma namorada: só “tô” sendo, no uso de redes sociais, eu mesmo. Por isso, não tô querendo te criticar, bença, tô querendo dizer que “eu mesmo” decidi mudar a mim mesmo e parar de tá falando "bobagem"[tirei "merda", então indiretamente dialoguei com a Monja Coen] quando me perguntam: "o que tu acha disso" e eu respondia, "acho que a galera que assistiu isso tá fazendo alvoroço demais" ["O poço" e "Bacurau", por exemplo] (eu não perguntei a tu o q “a galera” achou; perguntei o que “você achou do filme”, diria meu amigo imaginário). Quis parar de “falar duzôto'”, mas sempre que falamos estamos falando “indiretamente” com alguém [ou com Deus, ou eu interior, ou os astros, ou com a Natureza, ou com o "coração" - pra quem tem essas "conversas"]; porém, não significa que precisamos mostrar “indignação” pra “seu ninguém” se não quisermos e, ao contrário, quisermos apenas decidir “o rumo da nossa vida” (um sogro diria “dôa a quem doer”; um amigo poeta, autor de O Apogeu da Insignificância e Manicomicidade, o Acionildo Silva, diria: “dane-se”. [Kkkk]

 

PS.: Esse texto explica, como exemplo, o que Deleuze e Gatarri (filosofia e psicanálise) querem dizer com a ideia de que, linguisticamente, todo discurso é indireto (fui claro, Pitwill?)


quarta-feira, 27 de maio de 2020

Coca-cola cura ressaca? Ou como separar negacionismo/cinismo bolsonarista da crítica à colonialidade “por trás” da Ciência


Crônica: após uma conversa sobre se coca-cola cura ressaca ou não, pude responder uma questão que me inquieta desde o ano passado, após uma aula de teoria antropológica. Qual a questão? Como podemos confiar na ciência mesmo quando estamos criticando-a sem cair no outro lado, a saber, duvidar da instituição científica ou dos fatos científicos como um todo (postura de muitos bolsonaristas)?

 

Um: experiência/testemunho pessoal versus provas científicas

            “Coca-cola tira ressaca?” Segundo ao menos cinco testemunhas, sim, a coca-cola cura ressaca. Uma pesquisa rápida na Internet e encontro uma matéria que foi publicada na revista Veja. Ela diz, “Mito. Coca-cola não cura ressaca”. Mas diversos blogs dizem que a coca-cola, ao menos no início, tinha ingredientes que pessoas escravizadas por serem negras, utilizavam esses tais ingredientes  para lidar com cansaço e, nota, com a ressaca.

            Esses dois passos: testemunhos pessoais + pesquisas na internet não são conclusivos. É preciso encontrar artigos científicos que falem sobre o assunto, para termos certeza (certo?). Então as respostas são inconclusivas. Porém, a ciência funciona assim mesmo: questões são levantadas e pesquisas são feitas para verificar se a informação procede ou se é falsa. Não existindo nenhuma resposta, lascou. Temos que esperar que elas surjam. Não é o mesmo com a Covid-19?

 

Dois: das provas científicas para o negacionismo

            Agora falando da Covid-19, não da coca-cola, como funciona o negacionismo? Basicamente diria: as provas científicas são ignoradas ou negadas por muitos bolsonaristas. Assim, eles e elas podem manter sua opinião política. Ou seja: você descredibiliza a ciência assim para poder denunciar os interesses políticos (ideológicos) por trás dela. Nota: historicamente a ciência produzida fora da teoria marxista era considerada por muitas pessoas (acadêmicas ou não) como “ideologia burguesa”, “interesses capitalistas” (ser “neutro” seria ser “a favor do opressor”) etc. O que quer dizer que o discurso contra ciência não é exclusivo aos tempos de hoje, nem aos/às bolsonaristas.

 

Três: a confiança na ciência e a crítica dos interesses colonialistas “por trás” da instituição científica

             Confio na ciência. Como pessoa, como antropólogo e sociólogo. Mas aprendi em sala de aula que a ciência serviu, historicamente, ao colonialismo e à dominação europeia no resto do mundo, inclusive a antropologia teve um importante papel no assunto (defendendo a ideia de que existia uma raça superior, civilizada, e os outros, não europeus, deviam ser estudados e classificados nessa escala que iria do primitivo, selvagem ao civilizado, branco europeu). E agora, José? Como defender a antropologia e a ciência?

            Bom, eu fui pra um laboratório de entomologia (estuda doenças em insetos) acompanhar cientistas fazendo experiências com mosquitos (ninguém tem pena deles!). Aí pude perceber que existia uma diferença sobre falar (mal) da ciência e “fazer ciência na prática”. Enquanto uma pessoa queria desenvolver pesticidas para acabar com mosquitos; outros/as queriam usar radiação para esteriliza-los; já outras queriam descobrir quais espécies de mosquitos transmitiam Zika vírus. Tá, mas cadê a “colonialidade” por trás da ciência?

            Numa entrevista, um cientista dizia que somente o que foi experimentado pela “comunidade científica” que deveria ser utilizado. Ou seja: nada de repelentes naturais, por exemplo. Ora, a colonialidade não está dentro do laboratório, mas “fora” dele: a fala do cientista desqualifica tudo que não for cientificamente comprovado. Ora, mas se as experiências e testemunhos, por exemplo, indígenas no uso de “saberes milenares” (que nem aquela chamada “medicina tradicional chinesa”), são jogadas fora sem nenhuma cerimônia ou respeito, então temos uma colonialidade operante.

            O mesmo vale para quando “conectamos” as pesquisas que falei, sobre mosquitos, com os interesses políticos e de financiadores “por trás” da ciência. Correto? Não necessariamente. A ciência não “deixa de ser ciência”, ela apenas “serve” ou não para interesses variados. O mesmo pode ser dito historicamente, com a antropologia: a ciência era colonialista exatamente porque justificava, cientificamente, o discurso racista dos europeus. Porém, os avanços na biologia e na antropologia demonstraram que tais teorias científicas estavam, obviamente, erradas.

           

Conclusão:  coca-cola cura ressaca?

            A diferença do negacionismo para a crítica colonialista à ciência é que a instituição científica é descredibilizada sem cerimônia toda vez que ela não serve aos "nossos" interesses. O ministro do meio ambiente é um exemplo: ele sempre usa a palavra “ideologia” quando quer questionar fatos científicos (“filho de peixe”, “bom garoto é”).

            Já a crítica à colonialidade tem dois lados. No primeiro, ela acaba descredibilizando toda a ciência quando ela não serve à “emancipação”, o que é um problema tão grave quanto o negacionismo. O outro lado, “positivo”, é que uma crítica equilibrada é salutar, faz bem, pois nos ajuda a melhorar a instituição científica e pode servir para colocar diferentes saberes em diálogo (iguais eles jamais serão, mas isso é positivo, não negativo).

            E a coca-cola, cura ou não ressaca? Eu tomo só pra tirar ressaca, porque sim, sabemos que faz um mal arretado. Mas e você? Diz aí bença.

 

Fonte da imagem           


segunda-feira, 25 de maio de 2020

COVID-19: Qual a diferença de um “duplo click", suposição ou "teoria de conspiração" para uma pesquisa científica?


 

            Sabemos que ao clicar duas vezes em um “botão” da internet, ou em um arquivo no

Fonte: Internet.
nosso computador, ele nos levará de uma página para outra, como se saltássemos de um lugar para outro em um instante (como no filme Jump, ou nas “aparatadas” de Harry Potter – traduzindo: teletransporte). Mas como é que podemos pensar do mesmo modo ao falar em suposições ou teorias diante da Covid-19?

            Comecemos por dois casos: o da hidroxicloroquina e o da ivermectina. Diante da Covid-19, o Ministério da Saúde indicou o uso da hidroxicloroquina e da ivermectina. Conversando com uma especialista da área de Biomedicina do Instituto Oswaldo Cruz, ela me falou sobre a ivermectina ter sido testada apenas em laboratórios, não em pessoas. Mais testes precisariam ser feitos. Porém, os efeitos colaterais registrados não eram danosos para as pessoas que a utilizassem.

            No caso da hidroxicloroquina, diversos especialistas em Saúde, como minha fonte, têm dado entrevistas, dizendo que os efeitos colaterais da cloroquina são nocivos e podem levar ao óbito ou complicações graves, inclusive respiratórias. Qual a diferença entre os dois medicamentos, do ponto de vista cientifico? Ambos não possuem uma cadeia de provas e evidências que confirmem que eles são eficazes no combate à Covid-19 ou no tratamento, ou prevenção, de pessoas com sintomas da doença. Porém, a cloroquina é mais perigosa.

            Ok! Mas o que é um “duplo click” aqui? E o que isso tem de teoria? Cloroquina e ivermectina são indicados como “tratamento” no combate à covid-19, porém, ambos ainda são “teorias”. O duplo click é o raciocínio que nos leva a acreditar que uma teoria é válida sem que tenhamos provas ou evidências sobre o assunto. Então, daí nascem as teorias – que a cloroquina faz parte dos interesses farmacêuticos; que é o medicamento “da Direita” – o próprio presidente “fez piada” com isso.

            Há um “duplo click” que, agora, gostaria de demonstrar, pois é com ele que posso, finalmente, esclarecer por que as Ciências Sociais, a Antropologia e a Sociologia não são “duplos clicks” ou “meras teorias” (sem provas e evidências) – mas podem ser sim, e com frequência o são. Então começo com o exemplo contrário: o papel do cientista social que tem uma “teoria” pra explicar um conjunto de acontecimentos e, em segundo lugar, tem um julgamento moral sobre o que é bom e o que é mau, e, daí, conclui que o problema da descrença na ciência é resultado prejudicial do avanço de certas teorias sociais nas universidades. Ou seja: se não forem teorias de esquerda (como o marxismo), ou teorias críticas (como o(s) feminismo(s) ou “epistemologias não coloniais”) então as teorias estão gerando impactos sociais políticos que explicam porque a sociedade, agora, duvida da ciência e se tornou “reacionária”, “fundamentalista” ou “fascista”. Esse é um primeiro efeito duplo click: você salta de um lugar (salas de aula na universidade e de livros do século XIX e XX) para explicar o que está acontecendo no Brasil, em 2020, diante da pandemia de Covid-19. Não há ciência, aqui, apenas “duplo click”.

            O segundo exemplo vem de fora dos muros das universidades: converso com pessoas que me esclarecem o que acontece com a atual crise política (eu me pergunto: qual?): i) o problema é que são feitos testes com medicamentos em pobres e os ricos é que se darão bem no final das contas; ii) o problema da pandemia não é o isolamento social, mas sim a alimentação, as pessoas só comem “besteira”, por isso sua imunidade não está boa – a mídia está errada e o governo estadual também! Ora, esses dois exemplos, contrários em certa medida, são ótimos exemplos de “duplo click” e, melhor, teorias de conspiração – finalmente lhe demos o nome apropriado. Não há ciência, aqui, apenas teoria (de conspiração).

            O problema comum às Ciências Sociais, ao Ministério da Saúde (após a substituição de dois ministros da saúde em tempo de pandemia) com sua hidroxicloroquina, aos dois casos que explicariam “o que está acontecendo” e por que a mídia e o governo “mentem”, é que o duplo click foi “ligado”. Ou seja: vocês estão deduzindo, não estão fazendo pesquisa!

            Enquanto nós não separarmos “duplo clique” e “teorias” de “pesquisa científica”, ficaremos constantemente produzindo “narrativas” que, inclusive, podem até se tornar científicas, afinal, uma pesquisa nasce de uma “suposição” para um problema (pergunta investigativa dentro da ciência) e supõe uma reposta (hipótese científica) para confirmar (com provas e evidências e com metodologia apropriada) se nossa “teoria” corresponde aos fatos ou se ela é apenas isso, “nossa opinião”; mas, por outro lado, se não se tornam pesquisa, serão apenas “narrativas”.

            Se você me acompanhou até aqui, agora vejamos o exemplo contrário à especulação. Em um artigo recentemente publicado, duas pesquisadoras da Itália sugerem que a ivermectina e a hidroxicloroquina sejam estudadas em conjunto, pois ambas possuíam bons resultados em laboratórios (não em pessoas!), na prevenção e inibição da reprodução viral (replicação de vírus), incluindo o da Covid-19. As autoras dizem que isso é apenas sua “opinião” (hipótese), e indicam novas pesquisas. Qual a diferença delas duas para nossos duplos clicks? Elas não receitam ou indicam o seu uso, pois ainda não há comprovação sobre seus efeitos positivos e nem os colaterais. Quem usa, ou estimula o uso, está ou assumindo os riscos para si, ou colocando outras pessoas em risco**.

Por outro lado, é bom lembrar que a antropologia tem demonstrado que a ciência também tem seus desentendimentos. No caso da epidemia de Zika e microcefalia (SCZ), a “ciência de beira de leito” (clínica) e a “ciência de bancada” (laboratórios) nem sempre concordavam quanto aos diagnósticos e conclusões sobre o assunto: a questão é que com o tempo a tendência pode ser de consenso. A diferença, portanto, é que no caso da Covid-19, “tudo é muito novo”.***

            Posicionamento pessoal enquanto antropólogo: pelo acúmulo de dados (artigos da área de biomedicina) e informações de pesquisa de campo (conversando com pessoas que já tiveram Covid-19), assim como comparando os discursos políticos (da Globo e outros canais com o do Ministério da Saúde e o governo atual), acredito que é cedo para “dar remédios” cuja eficácia ainda não foi comprovada (incluindo o risco de efeitos colaterais). Ao mesmo tempo, posiciono-me em favor de outros “saberes”, mais “tradicionais”, como receitas caseiras e que não tenham um potencial nocivo conhecido (falo isso, mas desconheço qualquer uma dessas receitas). Ou seja: enquanto AS ciências não têm evidências ou provas suficientes, prefiro manter uma boa alimentação (como disse um informante da minha pesquisa) e hábitos saudáveis e, porventura, optaria por não usar medicamentos farmacêuticos não confirmados (e olhe que até cheguei a fazê-lo! Mas não recomendo).

                        Isso é tudo, bença!

 

*: o termo “duplo click” é um “conceito” criado pelo filósofo e antropólogo Bruno Latour. Ver Modos de existência: uma antropologia dos modernos, que saiu pela Vozes, em 2019. No presente texto, eu apenas “aplico” o conceito em minha análise.

**: ver o artigo mencionado na página do PubMed (em inglês): https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/32283237/?from_term=ivermectin+covid-19&from_pos=1. Acesso: 25 mai 2020.

***: Indico a leitura de um artigo meu, “Como fatos científicos (não) se tornam fatos sociais: uma pesquisa sobre a participação da Fiocruz no combate à epidemia de vírus Zika no Brasil”, no livro:  PRÁTICAS SOCIAIS NO EPICENTRO DA EPIDEMIA DO ZIKA, publicado pela editora da UFPE, em 2020 (link: https://onedrive.live.com/?authkey=%21AEM3ULMJHCnP%5FoE&cid=B0566265C9AAC3F8&id=B0566265C9AAC3F8%2117272&parId=B0566265C9AAC3F8%21453&o=OneUp); e do livro da  antropóloga Débora Diniz: Zika vírus: do Sertão Nordestino à Ameaça Global, publicado pela Civilização Brasileira, em 2016.

 

Outras fontes:

Cloroquina (bula): https://www.bulario.com/cloroquina/

Ivermectina (bula): https://consultaremedios.com.br/ivermectina/bula

 


sábado, 23 de maio de 2020

APROPRIAÇÃO CULTURAL DA IDEOLOGIA?

Neste breve texto, falo um pouco sobre um entendimento não muito popular sobre a linguagem, antropologicamente falando, e de como podemos compreender a razão de termos como gênero e ideologia serem tão “difamados”. Parto da reflexão proposta por Richard Bauman (folclorista e antropólogo) e Charles L. Briggs (antropólogo), a respeito de estudos linguísticos.

Um ponto inicial para estas perguntas é a distinção entre discurso e texto. No cerne do processo de descentrar o discurso está o processo mais fundamental – a entextualização. Em termos simples, apesar disto estar longe de ser simples, é o processo de tornar o discurso passível de extração, de transformar um trecho de produção lingüística em uma unidade – um texto – que pode ser extraído de seu cenário interacional. Um texto, então, nesta perspectiva, é discurso tornado passível de descontextualização. Entextualização pode muito bem incorporar aspectos do contexto, de tal forma que o texto resultante carregue elementos da história de seu uso consigo. (p.206/pf. 23)¹.

 

            Esta passagem, acima, nos faz pensar na relação entre o uso da linguagem e a constante mudança que se coloca em curso, em ação, toda vez que “usamos” a linguagem. Vejamos um exemplo atual. Leio uma manchete que me fala sobre “ideologia de gênero”. Na mesma matéria, um deputado propõe uma lei semelhante à “escola sem partido”, no intuito de impedir que “ideologia de gênero” seja ensinada nas escolas, para crianças e adolescentes.

            Ora, a montagem, entre aspas “ideologia” + “gênero” é, exatamente, uma novidade que extraiu um discurso de seu cenário, acadêmico e historicamente ligado ao feminismo, mas não somente, e o reconfigurou. Academicamente o termo “gênero” refere-se a um conjunto de estudos e teorias baseadas no uso do termo “gênero” aos campos do “social”, “histórico” e/ou “cultural”. “Teoria de gênero” se apresenta como um cenário em que são investigadas as possibilidades, tendências e exceções de relações entre pessoas de diferentes lugares e períodos lidando consigo mesmas quanto a aspectos afetivo/sexuais, conjugais, “público-privadamente”, geracionais, educacionais, etc. Assim, relações de gênero, portanto, mudariam “historicamente”, “cultural” e “socialmente”. Daí não podemos falar em “Ser humano”, “O homem”, “A mulher”, mas sim falar sobre homens e mulheres em um contexto social, histórico e cultura específico, nunca universal.

            Por fim, quando “gênero” é deslocado para outro cenário, ou “contexto”, ele é acoplado à “ideologia”. O efeito desejado, aparentemente, é tornar moralmente negativo o seu uso e, por conseguinte, impedir que seja um tema de estudo em escolas da rede pública e privada no Brasil.

 

A ideologia como a fronteira da compreensão

            Agora, vejamos o que aconteceu, historicamente, em paralelo ao desenvolvimento dos estudos de gênero na segunda metade do século XX. Segundo a filósofa brasileira Marilena Chauí, ideologia foi proposta como uma ciência das ideias por um filósofo e soldado francês, Destutt de Tracy (1754-1836), na época da Revolução Francesa. A filosofia marxista, contudo, operou o que chamo, aqui, de “primeira mudança”: ideologia tornou-se “falsa consciência”. Isso ocorreu na primeira metade do século XIX, mas na antiga Prússia.

            Já na primeira metade do século XX, ideologia era ainda um “carro chefe” do marxismo, incluindo na França de meados daquele século, quando se desenvolvem teorias acadêmicas conhecidas como estruturalistas (Louise Althusser) e de análise de discurso (Michel Pêcheux), mas não somente. Nas décadas seguintes, na França, a ideologia passa a ser bastante criticada enquanto conceito e em seu uso (ver Michel Foucault, Gilles Deleuze e Félix Guatarri). Mas e o Brasil?

            Em 1985, a nível de exemplo, um documento confidencial do serviço de inteligência² policial alertava para a criação de escolas em um bairro da cidade de Olinda, PE, que estava ainda em construção, Ouro Preto. O documento alertara os órgãos e aparelhos de Estado, que caminhava para o fim do período de Ditadura Militar Brasileira (1964-1985), para o ensino da pedagogia de Paulo Freire e sobre luta de classes. Ora, “luta de classes” é o que se “institui”, a partir marxismo alemão no século XIX, na antiga Prússia (Alemanha atual), a crítica à “falsa consciência” (ideologia), da classe dominante, burguesa, contra a classe trabalhadora (proletariado). O que quer dizer que, até então, ideologia era uma “mentira contada pela classe dominante para manter as pessoas na ignorância sobre suas condições de existência e de seu papel político”. Daí o “perigo”, em um período de Ditadura Militar, de se falar em “luta de classes”.

            Pois bem, e hoje? O que aconteceu com a ideologia? De algum modo, como no caso de ideologia de gênero, e nos discursos do presidente Jair Bolsonaro, “ideologia” continua sendo uma coisa “ruim”, um mal. Porém, agora ela não é uma “coisa” da “classe dominante”, mas da esquerda-comunista, com seu Paulo Freire e sua luta de classes. O que aconteceu hoje, suponho, é que estamos diante de um novo uso ou emprego da palavra “ideologia”. É como se tivesse ocorrido uma “apropriação cultural” e, por isso, estamos diante de uma nova utilidade da “ideologia”, uma nova maneira de utilizá-la. A grande questão, em minha opinião, não é mais discutir sobre “o uso correto” do termo ideologia, porque isso nos faz pensar que existe uma verdade a ser resgatada historicamente, sobre a interpretação correta da “palavra” (“igual que nem” com “A palavra” das tribos judaico-cristãs que utilizam livros religiosos para dar sentido a suas existências). O que importa é observar essa “mudança” e atualizar o histórico, o arquivo do conceito, como diria o filósofo francês Jacques Derrida. Quanto antes abandonarmos nossos velhos hábitos sobre “direitos de uso” dos “conceitos”, como ciência, razão, ideologia e gênero, tanto mais rápido poderemos reagir de maneira mais apropriadas aos “tempos atuais”. Chega de monopólio da verdade! É hora de pluralismo e democracia, inclusive sobre como podemos conhecer (epistemologia) o mundo e entender os diferentes modos (ou discursos) de ser no mundo (ontologia).

            Isso é tudo, bença.

 

1: Richard Bauman e Charles L. Briggs (1990) A poética e performance como perspectivas críticas sobre a linguagem a vida social. no Annual Review of Anthropology, 19:59-88.

 

2: ver foto.

             


sexta-feira, 22 de maio de 2020

1985: SOCIÓLOGA ANA C. de MELO cria 13 escolas em Olinda. (arquivo de inteligência: confidencial).



“Ana Cristina Diogo Gomes de Melo, socióloga [...]” criou 13 escolas, Alto da Mina, Ouro Preto.

 

“[...] vem sendo adotado o ‘método PAULO FREIRE’ [...] o qual busca desenvolver um pensamento político nos próprios alunos, o qual busca desenvolver um pensamento político nos próprios alunos, alfabetizando-os e conscientizando-os para a luta de classes...”

 

O texto acima, de 11 de novembro de 1985, era confidencial, do Serviço Nacional de Informações, Agência Central.

 

Entende, com isso, que o governo enamorado não de militares, diga-se de passagem, mas da Ditadura Militar, o atual governo daquele que não mencionamos, é acusado, por cientistas sociais, de desinformar, via fake News, seus seguidores e seguidoras. O que nos faz acreditar, erroneamente, que quem o defende é “ignorante”.

 

Ontem participei de um “debate” na UFBA sobre ciências sociais diante da pandemia. Foi dito que, atualmente, um “movimento” histórico, cultural e teórico, acadêmico, foi considerado “responsável” pela atual “postura” de descrença ou mesmo negação da ciência em prol de posicionamentos políticos. Ora, o documento que trago, de 1985, traz um exemplo de que o governo estava preocupado com uma questão muito direta: luta de classes e comunismo. O governo atual não mudou isso! A crítica é à “ideologia” e ao comunismo!

 

Agora faça uma enquete: pergunte pra alguém próximo/a, de preferência, que não frequentou universidades, e se sim, que não seja das ciências humanas, você já ouviu falar de comunismo? E de pós-modernidade?

 

Pois é: a luta pelo monopólio intelectual (epistemológico) dentre dos cursos de ciências sociais superestima seu papel “na sociedade”. Muito mais eficiente, a meu ver, foi o papel da socióloga citada, Ana Cristina Diogo Gomes de Melo. Criando escolas para alfabetizar pessoas da periferia de Olinda, baseada em um pensador que, aliás, não se considerava comunista, diga-se de passagem. “Ficadica”, bença. 😉


segunda-feira, 4 de maio de 2020

Como um antropólogo pesquisa Covid-19 e o que isso tem de útil pra sociedade?

Lara Albuquerque


               Decidi escrever esse pequeno texto introdutório à, especificamente, Antropologia, por dois motivos. Em primeiro lugar, esclarecer pessoas que "toparam" participar da minha pesquisa (então como elas podem ajudar um antropólogo?). Em segundo lugar, para desfazer um mal entendido sobre “utilidade das ciências sociais” diante de uma pandemia que causa tanta dor e sofrimento.
       Minha pesquisa atual (que será minha tese de doutorado), é sobre os impactos causados pela pandemia no dia a dia de famílias de um bairro X. Na Antropologia (que faz parte das ciências sociais, junto à Sociologia e a Ciência Política), minha pesquisa pode ser considerada uma “etnografia” da doença e do consumo. Ou seja, gente: estou preocupado em estudar a mudança de hábitos de consumo e de cuidados diante da Covid-19.
          Certo! Mas qual a utilidade disso para a população? Não, esta pesquisa não produz uma vacina; assim como ela não trará benefícios econômicos; menos ainda afetará politicamente nossa sociedade. Por outro lado, ela é ainda pior: não servirá como serve, atualmente, a arte e a cultura para aliviar a dor do isolamento; nem reduzirá a ansiedade, a depressão ou qualquer outra coisa (afinal, a nobre psicologia existe pra isso).
            Então, pra que serve a antropologia, especificamente? Ousadamente, diria que ela contribuirá para todas as áreas científicas mencionadas acima, pois ela está preocupada em compreender os modos pelos quais um conjunto de famílias viveu a experiência de lidar com uma pandemia como a de Covid-19. Como minha “amostra” (as famílias selecionadas para o estudo) é composta por famílias variadas, de geração, idade, profissão, classe, gênero, raça, religião, formação, produzirei um conhecimento sobre os meses que acompanharei essas famílias, sistematizando suas diferentes formas de lidar com a pandemia no formato de um relato textual (minha tese de doutorado, artigos, seminários, debates...).
              Além das famílias que acompanharei (com estratégias tecnológicas, já que também estou em isolamento), estou registrando meu dia a dia como um antropólogo profissional costuma fazer quando, por exemplo, estuda o cotidiano de etnias indígenas ou de “tribos urbanas”. Com isso, descreverei o máximo possível todos os aspectos que eu puder registrar sobre a pandemia de Covid-19 no bairro que investigo. Assim, pretendo produzir conhecimento sobre o modo pelo qual a Covid-19 gerou mudanças de hábitos e práticas no cotidiano do bairro e das pessoas que nele vivem (mas diferente da grande mídia, não estou aqui para julgar quem estudo ou "educá-los").
               É arriscado? Sim! Bem o sei: estou fazendo o máximo para evitar o contágio, mas aproveito toda vez que preciso sair pra registrar em um caderno as coisas que pude observar pessoalmente em ambientes públicos e comerciais.
               Bom, agora é com vocês. Se acredita que isso tem utilidade ou não é com você. Se quer saber se acho que tem, eu diria que sim, mas que utilidade é relativa aos interesses e pontos de vista de cada instituição, grupo político ou indivíduo. Acredito que a contribuição desse tipo de conhecimento seja de produzir um registro e uma perspectiva que torne mais claro como as pessoas de hoje – a partir do estudo de caso que estou fazendo – estão se posicionamento politicamente, como isso pode ter relação com isolamento social, uso de máscara, consumo de bebida alcoólica e outras substâncias, trabalho, convivência, relação entre gênero e espaço público (quem continua nos bares e nas ruas...), comércio de máscaras, a moda a partir da Covid-19 e a estetização das máscaras, as mudanças de cumprimentos entre pessoas; a relação entre consumo de mídia (você se informa como?) e hábitos (já viu a diferença entre a Globo e a Band na cobertura política e da Covid-19? Pois é...); a relação entre entretenimento e isolamento (tu tás curtindo as lives mais que antes?); a confiança nas instituições em tempos de pandemia de “fakenews” (será que não estamos conseguindo compreender o que, de fato, aconteceu para que a ciência tenha se tornado tão criticável ou duvidosa para certas pessoas a ponto de um ministro da Saúde ter que defender a Ciência? Terra plana? Doença é conspiração? Será que a ideia de que “tudo é político” ou “ideologia” que nasceu em movimentos de esquerda não se tornou, ao invés de remédio, um veneno que, agora, está comprometendo todo esse organismo chamado terra, já que chegamos a "pós-verdade"?).
               Bom, é isso. A utilidade desse tipo de pesquisa, como eu disse, é relativa: você tem seus critérios pra dizer isso. Espero que haja algum consenso, mesmo que momentâneo, que precisamos responder as questões levantadas acima sem “especulação”, mas sim, por que não, com a velha e boa coleta de evidências e provas científicas? ^^


Duas religiões econômicas no comércio

 - Terminei. Vamos? - Diz minha pequena. - Posso ir ao banheiro? - Diz minha segunda pequena. Alguns minutos depois, caminhamos sobre o asfa...