Sabemos
que ao clicar duas vezes em um “botão” da internet, ou em um arquivo no
nosso
computador, ele nos levará de uma página para outra, como se saltássemos de um
lugar para outro em um instante (como no filme
Jump, ou nas “aparatadas”
de Harry Potter – traduzindo: teletransporte). Mas como é que podemos pensar do
mesmo modo ao falar em suposições ou teorias diante da Covid-19?
Comecemos
por dois casos: o da hidroxicloroquina e o da ivermectina. Diante da Covid-19,
o Ministério da Saúde indicou o uso da hidroxicloroquina e da ivermectina.
Conversando com uma especialista da área de Biomedicina do Instituto Oswaldo
Cruz, ela me falou sobre a ivermectina ter sido testada apenas em laboratórios,
não em pessoas. Mais testes precisariam ser feitos. Porém, os efeitos
colaterais registrados não eram danosos para as pessoas que a utilizassem.
No
caso da hidroxicloroquina, diversos especialistas em Saúde, como minha fonte, têm
dado entrevistas, dizendo que os efeitos colaterais da cloroquina são nocivos e
podem levar ao óbito ou complicações graves, inclusive respiratórias. Qual a
diferença entre os dois medicamentos, do ponto de vista cientifico? Ambos não
possuem uma cadeia de provas e evidências que confirmem que eles são eficazes
no combate à Covid-19 ou no tratamento, ou prevenção, de pessoas com sintomas
da doença. Porém, a cloroquina é mais perigosa.
Ok!
Mas o que é um “duplo click” aqui? E o que isso tem de teoria? Cloroquina e
ivermectina são indicados como “tratamento” no combate à covid-19, porém, ambos
ainda são “teorias”. O duplo click é o raciocínio que nos leva a acreditar que
uma teoria é válida sem que tenhamos provas ou evidências sobre o assunto.
Então, daí nascem as teorias – que a cloroquina faz parte dos interesses
farmacêuticos; que é o medicamento “da Direita” – o próprio presidente “fez
piada” com isso.
Há
um “duplo click” que, agora, gostaria de demonstrar, pois é com ele que posso,
finalmente, esclarecer por que as Ciências Sociais, a Antropologia e a Sociologia
não são “duplos clicks” ou “meras teorias” (sem provas e evidências) – mas
podem ser sim, e com frequência o são. Então começo com o exemplo contrário: o
papel do cientista social que tem uma “teoria” pra explicar um conjunto de
acontecimentos e, em segundo lugar, tem um julgamento moral sobre o que é bom e
o que é mau, e, daí, conclui que o problema da descrença na ciência é resultado
prejudicial do avanço de certas teorias sociais nas universidades. Ou seja: se
não forem teorias de esquerda (como o marxismo), ou teorias críticas (como o(s)
feminismo(s) ou “epistemologias não coloniais”) então as teorias estão gerando
impactos sociais políticos que explicam porque a sociedade, agora, duvida da
ciência e se tornou “reacionária”, “fundamentalista” ou “fascista”. Esse é um
primeiro efeito duplo click: você salta de um lugar (salas de aula na
universidade e de livros do século XIX e XX) para explicar o que está
acontecendo no Brasil, em 2020, diante da pandemia de Covid-19. Não há ciência,
aqui, apenas “duplo click”.
O
segundo exemplo vem de fora dos muros das universidades: converso com pessoas
que me esclarecem o que acontece com a atual crise política (eu me pergunto:
qual?): i) o problema é que são feitos testes com medicamentos em pobres e os
ricos é que se darão bem no final das contas; ii) o problema da pandemia não é
o isolamento social, mas sim a alimentação, as pessoas só comem “besteira”, por
isso sua imunidade não está boa – a mídia está errada e o governo estadual
também! Ora, esses dois exemplos, contrários em certa medida, são ótimos
exemplos de “duplo click” e, melhor, teorias de conspiração – finalmente lhe
demos o nome apropriado. Não há ciência, aqui, apenas teoria (de conspiração).
O
problema comum às Ciências Sociais, ao Ministério da Saúde (após a substituição
de dois ministros da saúde em tempo de pandemia) com sua hidroxicloroquina, aos
dois casos que explicariam “o que está acontecendo” e por que a mídia e o
governo “mentem”, é que o duplo click foi “ligado”. Ou seja: vocês estão
deduzindo, não estão fazendo pesquisa!
Enquanto
nós não separarmos “duplo clique” e “teorias” de “pesquisa científica”, ficaremos
constantemente produzindo “narrativas” que, inclusive, podem até se tornar
científicas, afinal, uma pesquisa nasce de uma “suposição” para um problema
(pergunta investigativa dentro da ciência) e supõe uma reposta (hipótese
científica) para confirmar (com provas e evidências e com metodologia
apropriada) se nossa “teoria” corresponde aos fatos ou se ela é apenas isso,
“nossa opinião”; mas, por outro lado, se não se tornam pesquisa, serão apenas “narrativas”.
Se
você me acompanhou até aqui, agora vejamos o exemplo contrário à especulação. Em
um artigo recentemente publicado, duas pesquisadoras da Itália sugerem que a ivermectina
e a hidroxicloroquina sejam estudadas em conjunto, pois ambas possuíam bons
resultados em laboratórios (não em pessoas!), na prevenção e inibição da
reprodução viral (replicação de vírus), incluindo o da Covid-19. As autoras dizem
que isso é apenas sua “opinião” (hipótese), e indicam novas pesquisas. Qual a
diferença delas duas para nossos duplos clicks? Elas não receitam ou indicam o
seu uso, pois ainda não há comprovação sobre seus efeitos positivos e nem os
colaterais. Quem usa, ou estimula o uso, está ou assumindo os riscos para si,
ou colocando outras pessoas em risco**.
Por outro
lado, é bom lembrar que a antropologia tem demonstrado que a ciência também tem
seus desentendimentos. No caso da epidemia de Zika e microcefalia (SCZ), a “ciência
de beira de leito” (clínica) e a “ciência de bancada” (laboratórios) nem sempre
concordavam quanto aos diagnósticos e conclusões sobre o assunto: a questão é
que com o tempo a tendência pode ser de consenso. A diferença, portanto, é que
no caso da Covid-19, “tudo é muito novo”.***
Posicionamento
pessoal enquanto antropólogo: pelo acúmulo de dados (artigos da área de
biomedicina) e informações de pesquisa de campo (conversando com pessoas que já
tiveram Covid-19), assim como comparando os discursos políticos (da Globo e
outros canais com o do Ministério da Saúde e o governo atual), acredito que é
cedo para “dar remédios” cuja eficácia ainda não foi comprovada (incluindo o
risco de efeitos colaterais). Ao mesmo tempo, posiciono-me em favor de outros “saberes”,
mais “tradicionais”, como receitas caseiras e que não tenham um potencial
nocivo conhecido (falo isso, mas desconheço qualquer uma dessas receitas). Ou
seja: enquanto AS ciências não têm evidências ou provas suficientes, prefiro
manter uma boa alimentação (como disse um informante da minha pesquisa) e
hábitos saudáveis e, porventura, optaria por não usar medicamentos farmacêuticos
não confirmados (e olhe que até cheguei a fazê-lo! Mas não recomendo).
Isso é tudo, bença!
*: o termo “duplo click” é um “conceito” criado pelo
filósofo e antropólogo Bruno Latour. Ver Modos de existência: uma antropologia
dos modernos, que saiu pela Vozes, em 2019. No presente texto, eu apenas “aplico”
o conceito em minha análise.
**: ver o artigo mencionado na página do PubMed (em
inglês): https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/32283237/?from_term=ivermectin+covid-19&from_pos=1.
Acesso: 25 mai 2020.
***: Indico a leitura de um artigo meu, “Como fatos
científicos (não) se tornam fatos sociais: uma pesquisa sobre a participação da
Fiocruz no combate à epidemia de vírus Zika no Brasil”, no livro: PRÁTICAS SOCIAIS NO EPICENTRO DA EPIDEMIA DO
ZIKA, publicado pela editora da UFPE, em 2020 (link: https://onedrive.live.com/?authkey=%21AEM3ULMJHCnP%5FoE&cid=B0566265C9AAC3F8&id=B0566265C9AAC3F8%2117272&parId=B0566265C9AAC3F8%21453&o=OneUp);
e do livro da antropóloga Débora Diniz:
Zika vírus: do Sertão Nordestino à Ameaça Global, publicado pela Civilização
Brasileira, em 2016.
Outras fontes:
Cloroquina (bula): https://www.bulario.com/cloroquina/
Ivermectina (bula): https://consultaremedios.com.br/ivermectina/bula