sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

Por que ser do contra? Hábitos como fábrica de sociedades




- vai ter a primeira festa no Big-Brother.
Fonte: imagem de internet*
- Sim!
- E Amor de mãe?
- todo episódio Regina Casé lacra! Hoje foi: “a cada vida que você escolhe, você deixa outra pra trás...
- Meme na certa!

                Pois é: sábias palavras. Mas “por que assistir Big Brother? Por que a novela? Por que esse canal? Por que postar, compartilhar memes da Regina?”


- mas por que você não faria essas coisas? Por que ser do contra em tudo?

                Verdade. Fábrica da costumes. Pessoas diferentes. Eis a sociedade no tempo e em diferentes lugares. Agora é 22:30h, numa sexta-feira. Mas ontem?
               
                Mulheres numa mesa, homens em grupo, um na churrasqueira. Pessoas ligadas a essa divisão entre homens e mulheres. Uma caneca com buzina “acabou a cerveja, fulana”.

- eee, assistindo a novela! Ninguém diz... – brinca alguém ao ver um rapaz saindo de perto do churrasco e entrando na sala para assistir Amor de Mãe.

                Pois é: fábrica de costumes. O jovem “desviou” o costume. Mas esse “jovem” retoma a fábrica com novos produtos, novos conceitos – ele vê o que a fábrica social produz, mas sugere novas ações; eles veem mulheres e homens – natureza animal, "normal"; o jovem vê masculino e feminino – relações humanas. Então você percebe que transitamos nas ruas do discurso da religião, no da ciência biológica e, depois, para as ciências humanas.

- Você sabe que Deus é um só e que outras religiões são erradas, afinal.

                Verdade? Fábrica de costumes. Pessoas diferentes. Eis as divindades/religiões no tempo e em diferentes lugares.

                O jovem apaga um cigarro e pensa “fábrica de costumes”. Ele “desviou o costume”.  Mas esse “jovem” retoma a fábrica com novos produtos, novos conceitos – ele vê o que a fábrica social produz, mas vê novas produções. As mulheres e homens agora percebem suas vidas a partir de livros e de experiências religiosas: no livro as regras; em sua pele, seu corpo, em seus sentidos, Deus vive. Mas o jovem não percebe em seus sentidos nada, nem lê o tal livro religioso, nem acredita somente na existência de realidades/divindades/religiões únicas. Ele não acredita no texto e por isso não julga outras religiões como erradas.
                Nosso jovem lê filosofia e ciências. Essas coisas o fazem entender apenas que relações humanas podem ser entendidas/percebidas de acordo com os livros escolhidos e as experiências sentidas pelas pessoas.

- Por que ser do contra (religiões, costumes, hábitos alheios)?
- Faz o teu bença.

                Pois é: estamos aqui assistindo a novela, assistindo Big Brother, 22:48h. Estamos escrevendo e pensando nas nossas experiências e traduzindo-as a partir de nossos próprios textos. Porém: estou pensando na tolerância. Na democracia. No respeito. Na não violência. Numa cultura de paz.
Ser do contra é hábito também. Hábitos, no entanto, podem mudar. Tudo que é chamado natural é “hábito” e “hábitos” são feitos no automático: inclusive ser crítico e chato (ou recalcado, miga). A fábrica de sociedade é uma fábrica de hábitos. Reflita sobre seus hábitos, se conseguir: é um desafio em tanto!

               

quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

Pontos de vista diferentes: homens e mulheres, alteridade e cultura, filosofia e antropologia para iniciantes

Lara Albuquerque, 2019.

Alteridades
            A antropologia pode ser considerada como uma ciência da alteridade. Começando com uma definição acessível a qualquer pessoa conectada à rede mundial de internet, podemos definir alteridade da seguinte maneira, conforme Google: natureza ou condição do que é outro, do que é distinto.
            Antropologia também é a ciência que estuda “o homem” (anthropos = ser humano). Antropologia então estuda a(s) alteridade(s) humana(s). Isto é: antropologia estuda “outros humanos”, sendo esse outro, inicialmente, não europeus, “não modernos”, “não civilizados”.
            Na história da teoria antropológica, o termo cultura foi utilizado para desenvolver interpretações e explicações sobre as diferentes alteridades. Isto é: as alteridades, ou os “outros”, “distintos”, foram colocados como “diferenças culturais”. Assim, quando você queria estudar a alteridade “japonesa”, você diria que estudaria a “cultura japonesa/nipônica”; ou a “religião mulçumana”; a “cosmologia tupinambá”; os “rituais fúnebres católicos em Casa Amarela”; e por aí vai. Com isso, você estudaria essas coisas/práticas/costumes como elementos “culturais” do Brasil, do Japão, da Amazônia, do Oriente Médio etc.
            Na filosofia, contudo, a alteridade foi um elemento chave para desenvolver diversas teorias com base nessa “condição do que é outro, do que é distinto”. Por exemplo: a relação entre “senhor e escravo” poderia ser pensada como uma forma de alteridade, de condição do que é esse outro (o escravo) e esse eu (o senhor); na filosofia existencialista de Simone de Beauvoir, a alteridade serviu para investigar a relação entre o homem (o Eu), e a mulher (o outro). Diferente da antropologia, contudo, a filosofia -  cuja tradição, poderíamos dizer, vem principalmente da “cultura grega” – não investiga alteridades como a antropologia o faz. A alteridade é estudada na antropologia com pesquisa de campo, “na prática” – por isso a alteridade não é reduzida à “cultura” grega, por exemplo. Além disso, na antropologia, principalmente as mais contemporâneas, as alteridades falam por si. Ou seja: “a condição do que é outro, do que é distinto” é, inclusive, uma questão feita pelas pessoas sobre nós, antropólogos/as. Por exemplo: uma antropóloga que estuda “comunidades quilombolas” pode ser objeto de estudo das próprias pessoas que investiga: “por que você quer nos estudar, quem são vocês, antropólogos/as, o que fazem e o que farão com nossas informações?”, há quem diga, inclusive, que “antropólogos/as ‘roubam’ os saberes dos lugares que pesquisam”... Portanto, antropologia é bem diferente da filosofia. Um grande antropólogo inglês, Tim Ingold, diz que a antropologia é uma “filosofia viva”...
             O que quero então com esse papo? Refletir sobre alteridades e nos perguntar [1] qual a diferença entre estudar alteridades entre “culturas” e estudar alteridades “entre nós” para, por fim, concluir com outra questão: [2] se estudamos alteridade na filosofia e culturas na antropologia, em que medida nós já não estávamos desde a filosofia mais elementar estudando alteridades como ontologias e [3] qual a função da cultura para a ontologia na filosofia?
            Hipótese 1:  A diferença entre estudar “nós” e “outros” é que conosco usávamos “alteridade” (homem/mulher; senhor/escravo; burgueses/proletários; brancos/negros); enquanto que com “outros” a alteridade era filtrada como uma diferença cultural “do outro”, “diferente de nós”. Assim, por exemplo, estudar rituais fúnebres nos permitia acessar a “cultura” do outro, para explicar a nossa alteridade, ou seja: nossa diferença “deles”. Enquanto estudávamos entre nós o termo cultura não precisava aparecer como alteridade, ele aparecia mais como uma distinção de “graus” de determinadas coisas. Por exemplo: cultura era ligada a grau de Educação; à erudição e “estudos”; música “‘clássica’ germânica’, ‘instrumental’” etc. Também podíamos encontrar cultura como “grau de desenvolvimento” entre classes: um pobre não teria e nem faria cultura; somente o rico ou a rica teria desenvolvido elementos “superiores” (visão elitista e excludente).
            Hipótese 2: Na filosofia estávamos estudando ontologias “desde o começo” e “sempre”. Tudo era uma questão de “ser” e sobre a “nossa realidade”. Assim, lembrando de Beauvoir novamente, “ponto de vista da mulher” era contraposto a “ponto de vista do homem”. Então o “ponto de vista” era meu; minha “realidade” – portanto minha ontologia – ou meu ser é que podia me permitir definir minha própria existência e ponto de vista. Portanto, já estava colocado na filosofia pensar sobre a alteridade (homem/mulher) nos termos ontológicos (sobre o ser das coisas, da realidade, das pessoas). Culturas, portanto, ainda estavam associadas “aos outros”, “distantes”, “exóticos”; ou, em segundo caso, estava relacionada, como na hipótese 1, a questões de “graus de desenvolvimento humano e costumes diferentes em uma mesma comunidade/região/país”.
            Hipótese 3: relacionada a hipótese 2, podemos dizer que a função da cultura na filosofia se desenvolveu para acentuar a relatividade “dos pontos de vista”, sejam eles “internos”, como a filosofia estudava, seja com a “alteridade distante”, dos “pontos de vistas ou condição do que é outro, do que é distinto”. Desse modo, os pontos de vista de filósofas francesas poderiam ver no termo cultura, um bom uso pra dizer que as culturas influenciariam os pontos de vistas das acadêmicas brancas francesas do maio de 1968; ao mesmo tempo em que um sociólogo como Pierre Bourdieu faria o mesmo para falar da “cultura francesa da década de 1970”, da qual ele poderia investigar, justamente, a “distinção” (alteridade) dos gostos (daí ele dizer que sua teoria só explicar “a realidade” de uma “cultura” específica: a francesa na década de 1970 [a década pode estar errada, aqui].

Planos: transcendências e imanências
            Apelando novamente ao que é (senso) comum, encontro no Google a seguinte definição de transcendência e imanência no site Brasil Escola: a imanência está ligada ao material, ao que está relacionado aos nossos sentidos; já a transcendência está ligada à realidade imaterial, como algo puramente teórico, abstrato. Assim, se incluímos agora a alteridade, então pensamos que a “cultura” de outros, diferentes de nós, distintos, são manifestações abstratas sobre como as pessoas vivem a materialidade de suas vidas, sua imanência. Por exemplo: se falamos da religião ou de Deus, então estamos falando da transcendência; enquanto que a imanência seria, por exemplo, o ato de rezar, de ir a igreja etc. Em outras palavras: tudo ocorre como se nosso pensamento fosse transcendente, enquanto que o que fazemos com nossas ideias fosse imanente.
            No caso da filosofia, voltemos à Beauvoir. A filósofa diz que a transcendência é como a justificação de nossa existência. Caímos na imanência quando essa capacidade de justificação da nossa existência é “paralisante”, quando definimos, por exemplo, a mulher como fêmea (biologia) e reduzimos a existência da mulher a uma condição biológica, neste caso, do seu ser. Quando ela diz que a mulher é “o outro sexo” é porque  a liberdade necessária para justificar a existência das mulheres está determinado pelo “ser do homem” que se coloca como universal – o homem é sinônimo de humanidade (exemplo: antropologia como estudo “do homem”).
            É preciso ter em mente que “transcendência e imanência” estão sendo usadas como substantivos, não como advérbio ou mesmo verbo (transcender, por exemplo, que significaria passar de um estado para outro). Por isso, quando estamos falando desses termos, estamos falando de “dois planos” da realidade: um que vai “ao além”, ao “abstrato”, às “ideias” (transcendência); e outro que vai “à realidade material” (imanência).
            Finalmente, na filosofia que lida com alteridade, estamos falando em transcendência como essa capacidade de justificar nossa existência indo ao “plano” das ideias (como ocorre com a filosofia de Platão) para “voltar” ao plano material, dos sentidos, da imanência. Já na antropologia, as alteridades, esses outros, distintos, são filtrados por uma “cultura” que o antropólogo ou antropóloga tem por obrigação que “desvendar”, acessando então a partir da imanência (materialidade) o “plano da transcendência”, “dos pontos de vista” que estes “outros” têm sobre si mesmos. Falando de um modo bem elementar e grosseiro, é como se a filosofia estudasse sempre “a gente”, e a antropologia “os outros”. Na filosofia pensamos “quem somos nós?”; na antropologia “quem são eles?”, “como eles pensam sobre eles mesmos?”.
Comparando filosofia e antropologia, principalmente no exemplo do caso de Beauvoir, é como se pudéssemos ter acesso aos pontos de vista (transcendências) que homens e mulheres teriam em nossa sociedade, ou no estado atual de nossa “cultura” – o que pode significar que o “feminino” e o “masculino” são coisas que podem pertencer a nossa cultura, mas também pode ter elementos que extrapolam nossa “alteridade”, indo para “outras culturas”. Por exemplo: a ideia de patriarcado é exatamente o tipo de uso feito pela filosofia e também pela antropologia para falar de um tipo de “sistema” em que homens dominaram mulheres historicamente durante milênios e em diversas “culturas” espalhadas pelo mundo.
            Na antropologia, a cultura, no entanto, acaba questionando essa “alteridade” entre homens e mulheres “no patriarcado”, pois concebe a “cultura” como variável e, portanto, assume que não existe um “sistema universal” que esteja presente em “todas as culturas”. A alteridade patriarcal entre “homens e mulheres”, portanto, é questionada. O que não significa que diferentes “sistemas” de dominação de homens sobre mulheres não possa existir em “todas as culturas”; o que não existiria seria um “sistema universal” cujos elementos seriam comuns a todos os povos durante “a” história “da” humanidade.
           
De ontologias aos planos de existências
            Planos de existência são como transcendências. E “acessar” transcendências são como refletir e conceber “pontos de vista” diferentes sobre nossa realidade. A pergunta que deve ser feita por filósofos/as e antropólogos/as é se isso não seria “redutivismo” e “simplismo”. Ou seja: transcendência e ontologia não se resumem a “pontos de vista”. De fato, concordaria dizendo que não. Afinal, “termos” como alteridade, cultura e ontologia são “conceitos” que se desenvolveram em diversas áreas acadêmicas e, também, foram responsáveis por desenvolver conhecimentos e teorias complexas sobre as “humanidades”. Contudo, diria: sim, é tudo verdade, mas tais estudos e desenvolvimento tiveram como base a simples questão sobre “pontos de vista”.
            O problema de hoje, por exemplo, na antropologia, é que se fala que no final do século XX, o termo cultura já não era suficiente para lidar com tantas “realidades diferentes” e se passou a falar em “ontologias” (realidades também!) diferentes que, agora, deveriam ser encaradas não apenas como “representações” (oras, não seriam pontos de vista tais representações?), mas sim como “realidades em construção”. Era como se antes, com cultura, estudássemos a alteridade “dos outros” e conseguíssemos observar a representação de um povo sobre “seu plano imanente” (“por que alguém como cachorro na China ou Escorpiões na Tailândia?”, resposta: “é da cultura deles comer cachorros ou escorpiões, nós evitamos porcos no pós-parto do Brasil, mas sabia que na Alemanha eles são servidos nos Hospitais nas mesmas circunstâncias?!”, cultura então “explicaria porque as pessoas fazem as coisas que fazem de modos diferentes – “são alteridades, são outros, distintos, afinal”).
            Com a ontologia, na antropologia, cultura deixou de “explicar” o porquê das coisas; agora, com ontologia, devemos investigar não o porquê, mas o “como eles e elas estão construindo sua realidade e como eles a concebem?”. O filósofo Bruno Latour, em sua abordagem antropológica, defendeu uma “Antropologia dos Modernos” (por uns 25 anos). Aí podemos perguntar: “quem são os modernos? Qual sua cultura?”. Mas Latour fala de “ontologias”, pois não quer mais estudar como um clássico antropólogo estudaria: ao contrário, ele quer investigar como a “realidade está sendo construída pelos Modernos”, assim como a totalidade das experiências de povos “exóticos” eram estudadas por “nós, cientistas modernos”.
            Numa filosofia bastante influente nos dias atuais (e que também tem fundamentado diferentes abordagens ontológicas desde as últimas décadas do século XX), a de Gilles Deleuze e Félix Guatarri, o transcendente, esse “plano das ideias”, é negado, e critica-se essa separação entre “dois planos de realidade”, “transcendente e imanente”, pois se coloca que na “prática”, nós estamos sempre produzindo/fazendo a realidade ao ligarmos linguagens e coisas, transformando essas mesmas coisas, sem que elas estejam em “planos diferentes”, daí eles falarem em “rizomas”, como as raízes de árvores se espalhando pelo mundo em fluxos incertos.
            Para finalizar, vale lembrar que a ontologia sempre foi tema de interesse para filosofia. A Beauvoir, acredito eu, não separava os planos de “transcendência e imanência” de modo “platônico”, tão “metafísico”. Ela dizia que com a liberdade, o que se poderia fazer era encontrar uma justificação existencial que estaria sempre aberta para sua construção e, portanto, não para a imanência em seu sentido mais próximo à inércia. Ou seja: não caberia ao homem em sua alteridade, em sua diferença, distinção, estabelecer a definição do que é ser mulher nem, muito menos, ter a pretensão de reduzir à mulher a - por que não dizer – ao ponto de vista masculino?

Duas religiões econômicas no comércio

 - Terminei. Vamos? - Diz minha pequena. - Posso ir ao banheiro? - Diz minha segunda pequena. Alguns minutos depois, caminhamos sobre o asfa...