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Lara Albuquerque, 2019. |
Alteridades
A
antropologia pode ser considerada como uma ciência da alteridade. Começando com
uma definição acessível a qualquer pessoa conectada à rede mundial de internet,
podemos definir alteridade da seguinte maneira, conforme Google: natureza ou
condição do que é outro, do que é distinto.
Antropologia
também é a ciência que estuda “o homem” (anthropos = ser humano). Antropologia
então estuda a(s) alteridade(s) humana(s). Isto é: antropologia estuda “outros
humanos”, sendo esse outro, inicialmente, não europeus, “não modernos”, “não
civilizados”.
Na
história da teoria antropológica, o termo cultura foi utilizado para
desenvolver interpretações e explicações sobre as diferentes alteridades. Isto
é: as alteridades, ou os “outros”, “distintos”, foram colocados como “diferenças
culturais”. Assim, quando você queria estudar a alteridade “japonesa”, você
diria que estudaria a “cultura japonesa/nipônica”; ou a “religião mulçumana”; a
“cosmologia tupinambá”; os “rituais fúnebres católicos em Casa Amarela”; e por
aí vai. Com isso, você estudaria essas coisas/práticas/costumes como elementos
“culturais” do Brasil, do Japão, da Amazônia, do Oriente Médio etc.
Na
filosofia, contudo, a alteridade foi um elemento chave para desenvolver
diversas teorias com base nessa “condição do que é outro, do que é distinto”.
Por exemplo: a relação entre “senhor e escravo” poderia ser pensada como uma
forma de alteridade, de condição do que é esse outro (o escravo) e esse eu (o
senhor); na filosofia existencialista de Simone de Beauvoir, a alteridade
serviu para investigar a relação entre o homem (o Eu), e a mulher (o outro).
Diferente da antropologia, contudo, a filosofia - cuja tradição, poderíamos dizer, vem
principalmente da “cultura grega” – não investiga alteridades como a
antropologia o faz. A alteridade é estudada na antropologia com pesquisa de
campo, “na prática” – por isso a alteridade não é reduzida à “cultura” grega,
por exemplo. Além disso, na antropologia, principalmente as mais
contemporâneas, as alteridades falam por si. Ou seja: “a condição do que é
outro, do que é distinto” é, inclusive, uma questão feita pelas pessoas sobre
nós, antropólogos/as. Por exemplo: uma antropóloga que estuda “comunidades
quilombolas” pode ser objeto de estudo das próprias pessoas que investiga: “por
que você quer nos estudar, quem são vocês, antropólogos/as, o que fazem e o que
farão com nossas informações?”, há quem diga, inclusive, que “antropólogos/as
‘roubam’ os saberes dos lugares que pesquisam”... Portanto, antropologia é bem
diferente da filosofia. Um grande antropólogo inglês, Tim Ingold, diz que a
antropologia é uma “filosofia viva”...
O que quero então com esse papo? Refletir
sobre alteridades e nos perguntar [1] qual a diferença entre estudar
alteridades entre “culturas” e estudar alteridades “entre nós” para, por fim,
concluir com outra questão: [2] se estudamos alteridade na filosofia e culturas
na antropologia, em que medida nós já não estávamos desde a filosofia mais
elementar estudando alteridades como ontologias e [3] qual a função da cultura
para a ontologia na filosofia?
Hipótese
1: A diferença entre estudar “nós” e
“outros” é que conosco usávamos “alteridade” (homem/mulher; senhor/escravo;
burgueses/proletários; brancos/negros); enquanto que com “outros” a alteridade
era filtrada como uma diferença cultural “do outro”, “diferente de nós”. Assim,
por exemplo, estudar rituais fúnebres nos permitia acessar a “cultura” do
outro, para explicar a nossa alteridade, ou seja: nossa diferença “deles”.
Enquanto estudávamos entre nós o termo cultura não precisava
aparecer como alteridade, ele aparecia mais como uma distinção de “graus” de determinadas
coisas. Por exemplo: cultura era ligada a grau de Educação; à erudição e
“estudos”; música “‘clássica’ germânica’, ‘instrumental’” etc. Também podíamos
encontrar cultura como “grau de desenvolvimento” entre classes: um pobre não
teria e nem faria cultura; somente o rico ou a rica teria desenvolvido
elementos “superiores” (visão elitista e excludente).
Hipótese
2: Na filosofia estávamos estudando ontologias “desde o começo” e “sempre”.
Tudo era uma questão de “ser” e sobre a “nossa realidade”. Assim, lembrando de
Beauvoir novamente, “ponto de vista da mulher” era contraposto a “ponto de
vista do homem”. Então o “ponto de vista” era meu; minha “realidade” – portanto
minha ontologia – ou meu ser é que podia me permitir definir minha própria
existência e ponto de vista. Portanto, já estava colocado na filosofia pensar
sobre a alteridade (homem/mulher) nos termos ontológicos (sobre o ser das
coisas, da realidade, das pessoas). Culturas, portanto, ainda estavam
associadas “aos outros”, “distantes”, “exóticos”; ou, em segundo caso, estava
relacionada, como na hipótese 1, a questões de “graus de desenvolvimento humano
e costumes diferentes em uma mesma comunidade/região/país”.
Hipótese
3: relacionada a hipótese 2, podemos dizer que a função da cultura na filosofia
se desenvolveu para acentuar a relatividade “dos pontos de vista”, sejam eles
“internos”, como a filosofia estudava, seja com a “alteridade distante”, dos
“pontos de vistas ou condição do que é outro, do que é distinto”. Desse modo,
os pontos de vista de filósofas francesas poderiam ver no termo cultura, um bom
uso pra dizer que as culturas influenciariam os pontos de vistas das acadêmicas
brancas francesas do maio de 1968; ao mesmo tempo em que um sociólogo como
Pierre Bourdieu faria o mesmo para falar da “cultura francesa da década de
1970”, da qual ele poderia investigar, justamente, a “distinção” (alteridade)
dos gostos (daí ele dizer que sua teoria só explicar “a realidade” de uma
“cultura” específica: a francesa na década de 1970 [a década pode estar errada,
aqui].
Planos: transcendências e imanências
Apelando
novamente ao que é (senso) comum, encontro no Google a seguinte definição de
transcendência e imanência no site Brasil Escola: a imanência está ligada ao
material, ao que está relacionado aos nossos sentidos; já a transcendência está
ligada à realidade imaterial, como algo puramente teórico, abstrato. Assim, se
incluímos agora a alteridade, então pensamos que a “cultura” de outros,
diferentes de nós, distintos, são manifestações abstratas sobre como as pessoas
vivem a materialidade de suas vidas, sua imanência. Por exemplo: se falamos da
religião ou de Deus, então estamos falando da transcendência; enquanto que a
imanência seria, por exemplo, o ato de rezar, de ir a igreja etc. Em outras
palavras: tudo ocorre como se nosso pensamento fosse transcendente, enquanto
que o que fazemos com nossas ideias fosse imanente.
No
caso da filosofia, voltemos à Beauvoir. A filósofa diz que a transcendência é
como a justificação de nossa existência. Caímos na imanência quando essa
capacidade de justificação da nossa existência é “paralisante”, quando
definimos, por exemplo, a mulher como fêmea (biologia) e reduzimos a existência
da mulher a uma condição biológica, neste caso, do seu ser. Quando ela diz que
a mulher é “o outro sexo” é porque a
liberdade necessária para justificar a existência das mulheres está determinado
pelo “ser do homem” que se coloca como universal – o homem é sinônimo de
humanidade (exemplo: antropologia como estudo “do homem”).
É
preciso ter em mente que “transcendência e imanência” estão sendo usadas como
substantivos, não como advérbio ou mesmo verbo (transcender, por exemplo, que
significaria passar de um estado para outro). Por isso, quando estamos falando
desses termos, estamos falando de “dois planos” da realidade: um que vai “ao
além”, ao “abstrato”, às “ideias” (transcendência); e outro que vai “à
realidade material” (imanência).
Finalmente,
na filosofia que lida com alteridade, estamos falando em transcendência como
essa capacidade de justificar nossa existência indo ao “plano” das ideias (como
ocorre com a filosofia de Platão) para “voltar” ao plano material, dos
sentidos, da imanência. Já na antropologia, as alteridades, esses outros,
distintos, são filtrados por uma “cultura” que o antropólogo ou antropóloga tem
por obrigação que “desvendar”, acessando então a partir da imanência
(materialidade) o “plano da transcendência”, “dos pontos de vista” que estes
“outros” têm sobre si mesmos. Falando de um modo bem elementar e grosseiro, é
como se a filosofia estudasse sempre “a gente”, e a antropologia “os outros”.
Na filosofia pensamos “quem somos nós?”; na antropologia “quem são eles?”,
“como eles pensam sobre eles mesmos?”.
Comparando
filosofia e antropologia, principalmente no exemplo do caso de Beauvoir, é como
se pudéssemos ter acesso aos pontos de vista (transcendências) que homens e
mulheres teriam em nossa sociedade, ou no estado atual de nossa “cultura” – o
que pode significar que o “feminino” e o “masculino” são coisas que podem
pertencer a nossa cultura, mas também pode ter elementos que extrapolam nossa
“alteridade”, indo para “outras culturas”. Por exemplo: a ideia de patriarcado
é exatamente o tipo de uso feito pela filosofia e também pela antropologia para
falar de um tipo de “sistema” em que homens dominaram mulheres historicamente
durante milênios e em diversas “culturas” espalhadas pelo mundo.
Na
antropologia, a cultura, no entanto, acaba questionando essa “alteridade” entre
homens e mulheres “no patriarcado”, pois concebe a “cultura” como variável e,
portanto, assume que não existe um “sistema universal” que esteja presente em
“todas as culturas”. A alteridade patriarcal entre “homens e mulheres”,
portanto, é questionada. O que não significa que diferentes “sistemas” de
dominação de homens sobre mulheres não possa existir em “todas as culturas”; o
que não existiria seria um “sistema universal” cujos elementos seriam comuns a
todos os povos durante “a” história “da” humanidade.
De ontologias aos
planos de existências
Planos
de existência são como transcendências. E “acessar” transcendências são como
refletir e conceber “pontos de vista” diferentes sobre nossa realidade. A
pergunta que deve ser feita por filósofos/as e antropólogos/as é se isso não
seria “redutivismo” e “simplismo”. Ou seja: transcendência e ontologia não se
resumem a “pontos de vista”. De fato, concordaria dizendo que não. Afinal,
“termos” como alteridade, cultura e ontologia são “conceitos” que se
desenvolveram em diversas áreas acadêmicas e, também, foram responsáveis por
desenvolver conhecimentos e teorias complexas sobre as “humanidades”. Contudo,
diria: sim, é tudo verdade, mas tais estudos e desenvolvimento tiveram como
base a simples questão sobre “pontos de vista”.
O
problema de hoje, por exemplo, na antropologia, é que se fala que no final do
século XX, o termo cultura já não era suficiente para lidar com tantas
“realidades diferentes” e se passou a falar em “ontologias” (realidades
também!) diferentes que, agora, deveriam ser encaradas não apenas como
“representações” (oras, não seriam pontos de vista tais representações?), mas
sim como “realidades em construção”. Era como se antes, com cultura,
estudássemos a alteridade “dos outros” e conseguíssemos observar a
representação de um povo sobre “seu plano imanente” (“por que alguém como
cachorro na China ou Escorpiões na Tailândia?”, resposta: “é da cultura deles
comer cachorros ou escorpiões, nós evitamos porcos no pós-parto do Brasil, mas
sabia que na Alemanha eles são servidos nos Hospitais nas mesmas circunstâncias?!”,
cultura então “explicaria porque as pessoas fazem as coisas que fazem de modos
diferentes – “são alteridades, são outros, distintos, afinal”).
Com
a ontologia, na antropologia, cultura deixou de “explicar” o porquê das coisas;
agora, com ontologia, devemos investigar não o porquê, mas o “como eles e elas
estão construindo sua realidade e como eles a concebem?”. O filósofo Bruno
Latour, em sua abordagem antropológica, defendeu uma “Antropologia dos
Modernos” (por uns 25 anos). Aí podemos perguntar: “quem são os modernos? Qual
sua cultura?”. Mas Latour fala de “ontologias”, pois não quer mais estudar como
um clássico antropólogo estudaria: ao contrário, ele quer investigar como a
“realidade está sendo construída pelos Modernos”, assim como a totalidade das
experiências de povos “exóticos” eram estudadas por “nós, cientistas modernos”.
Numa
filosofia bastante influente nos dias atuais (e que também tem fundamentado
diferentes abordagens ontológicas desde as últimas décadas do século XX), a de
Gilles Deleuze e Félix Guatarri, o transcendente, esse “plano das ideias”, é
negado, e critica-se essa separação entre “dois planos de realidade”,
“transcendente e imanente”, pois se coloca que na “prática”, nós estamos sempre
produzindo/fazendo a realidade ao ligarmos linguagens e coisas, transformando
essas mesmas coisas, sem que elas estejam em “planos diferentes”, daí eles
falarem em “rizomas”, como as raízes de árvores se espalhando pelo mundo em
fluxos incertos.
Para
finalizar, vale lembrar que a ontologia sempre foi tema de interesse para
filosofia. A Beauvoir, acredito eu, não separava os planos de “transcendência e
imanência” de modo “platônico”, tão “metafísico”. Ela dizia que com a
liberdade, o que se poderia fazer era encontrar uma justificação existencial
que estaria sempre aberta para sua construção e, portanto, não para a imanência
em seu sentido mais próximo à inércia. Ou seja: não caberia ao homem em sua
alteridade, em sua diferença, distinção, estabelecer a definição do que é ser
mulher nem, muito menos, ter a pretensão de reduzir à mulher a - por que não
dizer – ao ponto de vista masculino?