quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

Conhecimento como cultura: quem se importa?

 

            Você tem dúvida sobre o que faz um ou uma cientista social? E você, estudante de graduação, pensa sobre o mercado de trabalho em Sociais? Essas são duas questões que podem ser respondidas de modo semelhante. Mas antes, será preciso entender o significado do termo conhecimento como cultura.

            Gosto da definição de Cultura dada pela antropologia cultural estadunidense, na acepção do antropólogo Roy Wagner, da Universidade da Virgínia (falecido em 2018). Para ele, o conhecimento de um povo se condensa no termo empregado para se referir a esse conteúdo: cultura. É por isso que se trata de um termo tão ambíguo, pois “tudo” pode ser entendido como cultura.

            Nas cidades e metrópoles do Ocidente, pensa-se normalmente na ciência e na tecnologia como coisas separadas da cultura. Assim, cultura fica associada a tradições e festas populares, a museus e acervos indígenas, música e manifestações artísticas diversas, entre outras. Mas quando você precisa diferenciar “nós” de outros, a cultura se torna o que explica essa diferença (por exemplo: o povo brasileiro tem uma cultura diferente da cultura alemã...).

            De modo geral, cultura então pode ser pensada como “o jeito que as pessoas agem, pensam e interagem umas com as outras, com outros seres (cães e gatos, Deus, fantasmas dos mortos etc.) e com o ambiente”. Assim, trabalho e tecnologia também podem ser considerados como elementos de uma cultura. O conhecimento também entra na lista, pois é resultado da ação humana. É por isso, aliás, que se fala tanto em saberes em teorias pós-colonialistas e em estudos ambientais.

            Finalmente, cultura pode ser o conhecimento produzido por pessoas de diferentes lugares. Por isso, o conhecimento acadêmico faz parte da produção cultural de um determinado país. Sendo assim, na universidade, tal como nas artes, existem conhecimentos produzidos para contribuir com esse grau de conhecimento sobre um assunto ou tema específico. Nem sempre um conhecimento tem uma aplicação prática. Por exemplo: no Brasil, mais especificamente em Recife Região Metropolitana, o termo zika não estava associado ao vírus da Zika até a epidemia de 2015-16. O termo era utilizado como uma expressão que significava dizer que algo “deu errado” ou como sinônimo de azar e falta de sorte (“que zika, hein?”). Após a epidemia, sabemos que Zika é também uma doença. No conhecimento biomédico, Zika está em manuais de virologia. Em artigos acadêmicos e livros sobre viroses emergentes, assim como em Sociais, principalmente na Antropologia, sabe-se que Zika é uma doença ligada ao país de Uganda e à década de 1940 (salvo engano). O que significa que o conhecimento sobre Zika não tinha utilidade prática para o povo brasileiro até que a epidemia ocorresse. Porém, isso invalida sua existência em manuais de virologia?

Mas vejamos um exemplo a partir das Ciências Sociais, em estudos sobre as diferentes expressões da identidade, da masculinidade, da feminilidade, da raça, da etnia etc. Esses conhecimentos são produzidos como aspectos culturais de um determinado povo. Portanto, são conhecimento. Sua utilidade prática é sempre relativa, indefinida e até “opcional”. Pode ser que você simplesmente não tenha nenhum interesse em ter conhecimento/cultura sobre determinado assunto. O trabalho de ONGs e de algumas pessoas é o de tentar “sensibilizar” as pessoas ao moralizar a relação entre o conhecimento sobre esses assuntos e às diferentes expressões de violência e opressão que determinadas pessoas sofrem. A diferença entre essa questão e a moral convencional de um povo, por exemplo: evangélicos ou católicos, está no caráter laico do conhecimento acadêmico. Entretanto, os usos desses valores morais, em sua versão laica, neste caso, tentam produzir diferenciações culturais sobre esses assuntos na tentativa de resolver problemas que a cultura religiosa não conseguiu ou não quis resolver, digamos, “sozinha”. Não é à toa, por exemplo, que o líder da instituição Católica, o Papa, é considerado “flexível” por algumas pessoas em relação aos assuntos como casamento gay.

Por outro lado, o “conhecimento prático” está associado, principalmente, às ciências da natureza, às engenharias e a ciências como a Economia, a Administração, a Psicologia, ao Serviço Social e ao Direito, entre outras. A Sociologia e a Antropologia possuem atuação modesta quando o assunto é “conhecimento prático”. A Sociologia ainda mantém uma relação forte com a estatística e a geografia e, por isso, é bastante requisitada para estudos socioeconômicos (ver o IBGE, por exemplo). Também em estudos ambientais é necessária a presenta de um profissional de Ciências Sociais e, principalmente, da Sociologia. Já a Antropologia, quando ligada ao conhecimento prático, participa de trabalhos ligados aos diferentes Patrimônios, além de também está ligada a processos que envolvam Comunidades Tradicionais (como Quilombolas e indígenas, por exemplo – daí a associação comum de antropólogos ou antropólogas a religiões de matrizes africanas e a estudos (etnologia) indígenas.

Roy Wagner no Amazonas. Fonte: Socioambiental.Org.

 

No ponto de vista financeiro [para estudantes de graduação], o salário médio de um sociólogo ou socióloga no Brasil, para o ano de 2020, é de R$ 4.689,65. Já na Antropologia o salário é de R$ 4.913,39. Um Engenheiro Civil, por exemplo, ganha em média R$ 7.312,30. O problema é que esses dados são de 61 profissionais, Sociologia, e 34, Antropologia, admitidos/as e desligados/as até setembro de 2020. O que significa que nos mais de 5000 municípios brasileiros, apenas 95 pessoas formadas em Sociais conseguiram trabalho ou foram demitidas.

  

Em conclusão, cabe destacar que as Ciências Sociais produzem cultura na medida em que produzem conhecimento. Isso a área tem em comum com outras áreas. Mas quando o assunto é conhecimento prático, não há regra: tanto ela pode produzir conhecimento prático quanto pode se concentrar em conhecimento como cultura. Exemplos de conhecimento aplicado ou prática das Ciências Sociais podem ser encontrados com as pesquisas de mercado, pesquisa eleitoral, censos do IBGE, licenciamentos ambientais, laudos culturais, avaliações de políticas públicas etc. Já no quesito “apenas” cultural você pode encontrar, principalmente, estudos de teoria social e teoria sociológica, o que inclui: estudos sobre raça, gênero, etnicidade, cultura e outros conceitos, assim como temas como feminismo, teorias queer. A grande questão, neste caso, é que a fronteira entre “conhecimento cultural” e “conhecimento prático” é muito tênue quando paramos para observar como as pessoas usam esse conhecimento. Mas isso já é assunto para outro post... 

 

Link: https://pib.socioambiental.org/en/Not%c3%adcias?id=105226

quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

Cultura do fim da privacidade e trabalho gratuito para Redes Sociais

Nos últimos meses, eu participei de alguns cursos e assisti palestras sobre, basicamente, internet, pesquisa online, algoritmos e redes sociais. Como esses assuntos foram abordados e qual são as contribuições de se pensar neles a partir das ciências sociais?

 

            Um primeiro ponto a ser pensado é sobre a cultura do fim da privacidade, tema que apareceu em um curso sobre Data Science. Tal tema pode ser pensado a partir de nosso uso de redes sociais e, além dele, da nossa relação com corporações “por trás da internet”. Toda relação que mantemos por tecnologias de internet coleta dados nossos. Assim, por exemplo, a Oi pede para você não desligar seu modem para eles saberem como está o comportamento da sua conexão para que, assim, possam melhorar seu serviço. Ou seja: até aqui você está produzindo dados ao não desligar seu modem. Outra forma é a mais óbvia: toda vez que você clica em um site vem logo a janelinha com os termos de uso e de cookies (Aceita?). No Facebook, para manter uma página com temas políticos, por exemplo, você tem que fornecer dados pessoais, como de identificação pessoal (você sabia?). Isso, claro, fora os dados que o navegador (browser) já coleta ou quando ativa seu novo telefone celular.

            Fora esse fluxo de dados “invisíveis” que conectam você ao mundo “conectado”, tem o nosso uso cotidiano de redes sociais. Para não cair no óbvio, insiro outro tema, o do trabalho não remunerado. Esse eu ouvi hoje de um professor que ministrou um seminário sobre máquinas “no meio da multidão” (ou vice-versa). Lembrando de Karl Marx, para o qual, antes de tudo, o valor é produto da atividade humana, nós trabalhamos “de graça” (nós, reles mortais) para as plataformas de redes sociais, como o Instagram, Twitter, Facebook, entre outras. Então todas suas ações retornam ao tema do “Data Science”, porque você está gerando dados com suas ações e, melhor, de graça, às suas custas.

            Resultado: você está dando seus dados para “o capitalismo” todo dia; está trabalhando pra ele quando dá likes, compartilha stories etc., seu uso não pago, como trabalho alienado (diria Marx).

Novidade? Não, tudo igual que nem. Por outro lado, o uso dessas redes sociais tem ajudado pessoas a se elegerem, pois elas sabem manusear as ferramentas, digamos, “politicamente”; há pessoas ampliando os resultados eleitorais, digamos, “eleitoralmente”; tem àquelas que estão, como eu, publicando suas ideias, digamos, “político criticamente”... Mas sabe o que é isso: duas formas de ter a ilusão de que estamos produzindo uma diferenciação cultural, fugindo da cultura “convencional”, digamos, “opressora”.

De uma maneira ou de outra você está tendo seus impulsos enquadrados em motivações que estão por aí, queira você ou não. Há duas maneiras teóricas de dizer isso, em uma você está dentro de relações culturais e, portanto, até sua individualidade é produto dela, apesar de particularidades; outra maneira, análoga, é dizer que existem ações ocorrendo em escalas complexas, mas, de algum modo, você foi agenciado, foi “cooptado”, é parte de uma agência “maquínica” (daí o título “máquinas” na multidão ser tão apropriado).

Se parece abstrato pensar nessas coisas, pense em algo que acontece diariamente em tempos de pandemia: a constante conduta de controle de uma cultura de saúde, digamos, politicamente global, de um lado; d’outro, a constante conduta de dar significado à “liberdade individual” e ou simples insubordinação a essa “cultura globalizante de saúde”. Ora, farinhas do mesmo saco, pois ambas recaem na dialética do diferenciar ou manter a convenção (ao menos em algumas cidades “mundiais”). Ora, novamente farinhas do mesmo saco, pois a produção de sentido para ações nos coletivos não deixa de ser uma atitude moral e moralizantes: como não seriam? Assim, ficamos com a ilusão da diferenciação no exato momento em que mantemos a cultura compulsivamente.

Mas por que a moral não é entendida como essencialmente elemento fundante da cultura? Mais ainda, por que distinguir tanto a “cultura do fim da privacidade” e o “trabalho não remunerado” em ambientes digitais de outras “épocas”? Não seria exatamente esse processo todo uma nova adaptação cultural, uma nova invenção, cotidiana das mesmas relações que já existiam antes dessas novas tecnologias? Pois é...

 

 

 

Duas religiões econômicas no comércio

 - Terminei. Vamos? - Diz minha pequena. - Posso ir ao banheiro? - Diz minha segunda pequena. Alguns minutos depois, caminhamos sobre o asfa...