sexta-feira, 10 de abril de 2020

Pragmática e entendimento, e uso de conceitos (Ontologia e Cultura)




Em experiências pessoais, tenho encontrado pessoas que demonstram, e expressam, bastante dificuldade na compreensão do conceito de ontologia. Por isso, decidi escrever sobre o assunto a partir de um entendimento pragmático. Por pragmático, aqui, refiro-me ao “uso”, “função” ou “utilidade” de algo em detrimento de sua conceituação abstrata. Portanto, se penso em ontologia, não estou preocupado com o que “é” ontologia, assim como no pragmatismo não nos perguntamos “o que é a verdade?”.
É pertinente, contudo, lembrar da assertiva de David Graeber sobre ontologia e antropologia. Para ele, a ontologia foi “ressignificada” e “reusada” na antropologia, deixando de ser o que era para o campo que a originou, a saber, a filosofia. É salutar, inclusive, a aceitação de Graeber em relação ao uso que a antropologia faz da ontologia, haja vista que se “preciosista” poder-se-ia dogmatizar o termo e defender com “unhas e dentes” o uso inicial que a filosofia fez dele.
Para Graeber, a antropologia utiliza ontologia de modo equivalente a “modo de ser”, “modo de existência”. Assim, um etnólogo que pesquisa determinada etnologia indígena estaria preocupado com a ontologia desta etnia na medida em que investigasse como eles e elas produzem ou constroem sua existência, ou seu modo particular de ser no mundo. Desse modo, tal antropólogo estaria “respeitando” a ontologia do outro, não impondo a sua própria sobre àqueles.
A ontologia, portanto, substitui a cultura – o conceito clássico da antropologia. Com a cultura, um antropólogo classificaria antes de fazer qualquer pesquisa, ou antes conhecer qualquer etnia indígena, neste caso, como “tendo uma cultura em relação ao mundo ou à Natureza”. O que é o mesmo que dizer que aquele povo possui um ponto de vista sobre a natureza como nós, apesar de diferente do nosso próprio ponto de vista. Por isso, investigaríamos qual a representação “mental” que aquele povo tem da natureza.
No entanto, toda vez que um antropólogo pensa como se disse a pouco, ele ou ela está assumindo que existe uma natureza universal e representações sobre ela diferentes. Assim, um índio da etnia fulniô teria uma representação da natureza, enquanto o antropólogo inglês teria outra. O ponto em comum entre diversos antropólogos seria que cientistas em geral, assim como outras ocupações e pessoas familiarizadas com a ciência e que convivem com ela, seja utilizando-a diretamente, seja apenas fazendo parte de Estados-Nação em que a ciência é predominante ou, no mínimo, participa da agenda pública, compartilham desse pensamento segundo o qual a natureza existe como tal e nós temos diferentes representações sobre ela. Por isso, podemos pensar que o Deus cristão criou a natureza e a vida, dando-nos livre-arbítrio, contudo; mas mesmo assim a nossa representação/visão sobre a natureza não muda, podendo ser ela criada ou não por tal Deus. O mesmo vale, por exemplo, para a biologia: somos homens e mulheres, com um sexo natural/biológico, tendo sido ou não criados por Deus (como nas ciências sociais o conceito de Social explica os fatores não biológicos da nossa vida em sociedade, então mesmo que Deus exista, seria a biologia que nos geraria; enquanto a vida em sociedade é que nos modelaria, definindo o feminino e o masculino).
Entendido o uso da natureza pela antropologia e pela ciência, precisamos agora compreender que tal maneira de pensar “é nossa”, “é da ciência” e não é de “todos os povos e etnias existentes”. Então quando falamos em “representação ou ponto de vista da natureza” já estamos dentro de um discurso que entende que a realidade se divide em “a natureza de um lado e nós, pensantes, do outro lado”. Com a ontologia, no entanto, é como se parássemos de fazer essa divisão entre pensamento e representação humana de um lado, e a natureza ou a realidade do outro lado. Com a ontologia nós não exportamos mais nosso ponto de vista para os outros. Na verdade, são esses outros que exportarão o seu modo de ser para o antropólogo, que, assim, descobre como a realidade alheia se constitui. A tarefa da antropologia passa a ser a de traduzir o máximo possível essa outra realidade para a nossa. Na prática, o antropólogo escreverá em nossa linguagem familiar, o que ele ou ela aprendeu sobre a forma como quem ele ou ela pesquisou cria sua própria realidade e como tal criação difere ou se assemelha à nossa.
Pragmaticamente pensemos em um antropólogo pesquisando entomologistas (estudam insetos, vírus, doenças etc.) em seus laboratórios… Ele passa um semestre inteiro assistindo como entomologistas produzem fatos e descobertas sobre mosquitos e epidemias. Depois entrevista seus informantes para compreender o que eles e elas pensam sobre o que fazem. Ele então consegue perceber que a ciência do laboratório se “conecta” à “mídia” e, assim, chega às casas e residências fora do laboratório. Ele também percebe que o laboratório está “conectado” com o Estado, pois o dinheiro das pesquisas e do salário de pesquisadores/as vem do Estado. Neste sentido, ele percebe que existe uma totalidade “social” e a ciência é parte dela. Seus entrevistados, por sua vez, informam os valores – o que é bom ou mal cientificamente: eles e elas dizem que uma ciência “boa” é uma ciência objetiva, matemática; uma ciência “fraca” é uma ciência “subjetiva”, sem matemática, com métodos toscos, não passível de replicação (como a antropologia); eles e elas, inclusive, acham que o antropólogo que os e as estudou não passa de um tipo de “Big Brother”, “filmando” o trabalho e as fofocas do grupo (“seria um auditor disfarçado?”).
O antropólogo conclui que seus informantes são como uma “tribo” de jalecos azuis que acredita que a ciência não é “política”, nem “contaminada” por pessoas e por sua subjetividade, valores ou emoções. Porém, o antropólogo viu exatamente como as coisas estão “conectadas” e como elas são mantidas e produzidas, ao mesmo tempo em que elas parecem sustentar a fé das pessoas de fora do laboratório na ciência. Por exemplo: se um cientista diz que você deve ficar em casa durante uma pandemia e seu presidente diz o contrário, você deve acreditar no cientista, não no presidente. O cientista é verdadeiro; o presidente é “político!” Ora, vimos que a prática científica é realmente uma prática diferente da prática política, porém, a ciência não sobrevive sem a política e o dinheiro (ou impostos), e a política, atualmente, também parece não sobreviver sem a ciência.
O que o exemplo acima nos ensina sobre ontologia? Ora, podemos dizer que a divisão ciência de um lado, política do outro é uma produção de uma sociedade que divide suas atividades como se as coisas não estivessem relacionadas. Em segundo lugar, diríamos que cientistas acreditam na objetividade como se ela não fosse produzida por eles e elas, mas sim pela própria ciência (como se a ciência fosse uma inteligência artificial que não precisasse de seres humanos para existir – a Skynet de O exterminador ou os AI-5, de Eu, Robô). Comparando com uma etnia indígena qualquer, poderíamos dizer que cientistas são um povo que acredita que as coisas existem em “domínios” distintos e que uma coisa nada tem a ver com a outra, o que deixa um velho xamã indígena surpreso e estupefato com… ou ingenuidade d cientistas, ou seu mau caráter.
Por último, cabe então enfatizar que, na prática, usar “ontologia” ao invés de “cultura” numa pesquisa permite notar e registrar como os e as cientistas constroem seu mundo, povoando-o de fatos objetivos, conectados com a política, mas sempre dizendo que a ciência é ciência e política é política. O antropólogo que os e as estudou diz o mesmo, afinal, a antropologia não é mais colonial! Ele respeita, leva a sério, o que seus informantes dizem! O mundo deles, seu modo de ser, é científico, com redes de cadeias de fatos sustentando outras ações, neste caso, políticas e “sociais”. Mas a pergunta que fica é: será que usar ontologia ao invés de cultura realmente faria diferença? Dois filósofos de diferentes países diriam que o “uso” é que faria diferente, não o termo. Um é austríaco; o outro, norte americano, e ambos já estão mortos (quem são?).


Duas religiões econômicas no comércio

 - Terminei. Vamos? - Diz minha pequena. - Posso ir ao banheiro? - Diz minha segunda pequena. Alguns minutos depois, caminhamos sobre o asfa...