Em
experiências pessoais, tenho encontrado pessoas que demonstram, e
expressam, bastante dificuldade na compreensão do conceito de
ontologia. Por isso, decidi escrever sobre o assunto a partir de um
entendimento pragmático. Por pragmático, aqui, refiro-me ao “uso”,
“função” ou “utilidade” de algo em detrimento de sua
conceituação abstrata. Portanto, se penso em ontologia, não estou
preocupado com o que “é” ontologia, assim como no pragmatismo
não nos perguntamos “o que é a verdade?”.
É
pertinente, contudo, lembrar da assertiva de David Graeber sobre
ontologia e antropologia. Para ele, a ontologia foi “ressignificada”
e “reusada” na antropologia, deixando de ser o que era para o
campo que a originou, a saber, a filosofia. É salutar, inclusive, a
aceitação de Graeber em relação ao uso que a antropologia faz da
ontologia, haja vista que se “preciosista” poder-se-ia dogmatizar
o termo e defender com “unhas e dentes” o uso inicial que a
filosofia fez dele.
Para
Graeber, a antropologia utiliza ontologia de modo equivalente a “modo
de ser”, “modo de existência”. Assim, um etnólogo que
pesquisa determinada etnologia indígena estaria preocupado com a
ontologia desta etnia na medida em que investigasse como eles e elas
produzem ou constroem sua existência, ou seu modo particular de ser
no mundo. Desse modo, tal antropólogo estaria “respeitando” a
ontologia do outro, não impondo a sua própria sobre àqueles.
A
ontologia, portanto, substitui a cultura – o conceito clássico da
antropologia. Com a cultura, um antropólogo classificaria antes de
fazer qualquer pesquisa, ou antes conhecer qualquer etnia indígena,
neste caso, como “tendo uma cultura em relação ao mundo ou à
Natureza”. O que é o mesmo que dizer que aquele povo possui um
ponto de vista sobre a natureza como nós, apesar de diferente do
nosso próprio ponto de vista. Por isso, investigaríamos qual a
representação “mental” que aquele povo tem da natureza.
No
entanto, toda vez que um antropólogo pensa como se disse a pouco,
ele ou ela está assumindo que existe uma natureza universal e
representações sobre ela diferentes. Assim, um índio da etnia
fulniô teria uma representação da natureza, enquanto o antropólogo
inglês teria outra. O ponto em comum entre diversos antropólogos
seria que cientistas em geral, assim como outras ocupações e
pessoas familiarizadas com a ciência e que convivem com ela, seja
utilizando-a diretamente, seja apenas fazendo parte de Estados-Nação
em que a ciência é predominante ou, no mínimo, participa da agenda
pública, compartilham desse pensamento segundo o qual a natureza
existe como tal e nós temos diferentes representações sobre ela.
Por isso, podemos pensar que o Deus cristão criou a natureza e a
vida, dando-nos livre-arbítrio, contudo; mas mesmo assim a nossa
representação/visão sobre a natureza não muda, podendo ser ela
criada ou não por tal Deus. O mesmo vale, por exemplo, para a
biologia: somos homens e mulheres, com um sexo natural/biológico,
tendo sido ou não criados por Deus (como nas ciências sociais o
conceito de Social explica os fatores não biológicos da nossa vida
em sociedade, então mesmo que Deus exista, seria a biologia que nos
geraria; enquanto a vida em sociedade é que nos modelaria, definindo
o feminino e o masculino).
Entendido
o uso da natureza pela antropologia e pela ciência, precisamos agora
compreender que tal maneira de pensar “é nossa”, “é da
ciência” e não é de “todos os povos e etnias existentes”.
Então quando falamos em “representação ou ponto de vista da
natureza” já estamos dentro de um discurso que entende que a
realidade se divide em “a natureza de um lado e nós, pensantes, do
outro lado”. Com a ontologia, no entanto, é como se parássemos de
fazer essa divisão entre pensamento e representação humana de um
lado, e a natureza ou a realidade do outro lado. Com a ontologia nós
não exportamos mais nosso ponto de vista para os outros. Na verdade,
são esses outros que exportarão o seu modo de ser para o
antropólogo, que, assim, descobre como a realidade alheia se
constitui. A tarefa da antropologia passa a ser a de traduzir o
máximo possível essa outra realidade para a nossa. Na prática, o
antropólogo escreverá em nossa linguagem familiar, o que ele ou ela
aprendeu sobre a forma como quem ele ou ela pesquisou cria sua
própria realidade e como tal criação difere ou se assemelha à
nossa.
Pragmaticamente
pensemos em um antropólogo pesquisando entomologistas (estudam
insetos, vírus, doenças etc.) em seus laboratórios… Ele passa um
semestre inteiro assistindo como entomologistas produzem fatos e
descobertas sobre mosquitos e epidemias. Depois entrevista seus
informantes para compreender o que eles e elas pensam sobre o que
fazem. Ele então consegue perceber que a ciência do laboratório se
“conecta” à “mídia” e, assim, chega às casas e residências
fora do laboratório. Ele também percebe que o laboratório está
“conectado” com o Estado, pois o dinheiro das pesquisas e do
salário de pesquisadores/as vem do Estado. Neste sentido, ele
percebe que existe uma totalidade “social” e a ciência é parte
dela. Seus entrevistados, por sua vez, informam os valores – o que
é bom ou mal cientificamente: eles e elas dizem que uma ciência
“boa” é uma ciência objetiva, matemática; uma ciência “fraca”
é uma ciência “subjetiva”, sem matemática, com métodos
toscos, não passível de replicação (como a antropologia); eles e
elas, inclusive, acham que o antropólogo que os e as estudou não
passa de um tipo de “Big Brother”, “filmando” o trabalho e as
fofocas do grupo (“seria um auditor disfarçado?”).
O
antropólogo conclui que seus informantes são como uma “tribo”
de jalecos azuis que acredita que a ciência não é “política”,
nem “contaminada” por pessoas e por sua subjetividade, valores ou
emoções. Porém, o antropólogo viu exatamente como as coisas estão
“conectadas” e como elas são mantidas e produzidas, ao mesmo
tempo em que elas parecem sustentar a fé das pessoas de fora do
laboratório na ciência. Por exemplo: se um cientista diz que você
deve ficar em casa durante uma pandemia e seu presidente diz o
contrário, você deve acreditar no cientista, não no presidente. O
cientista é verdadeiro; o presidente é “político!” Ora, vimos
que a prática científica é realmente uma prática diferente da
prática política, porém, a ciência não sobrevive sem a política
e o dinheiro (ou impostos), e a política, atualmente, também parece
não sobreviver sem a ciência.
O
que o exemplo acima nos ensina sobre ontologia? Ora, podemos dizer
que a divisão ciência de um lado, política do outro é uma
produção de uma sociedade que divide suas atividades como se as
coisas não estivessem relacionadas. Em segundo lugar, diríamos que
cientistas acreditam na objetividade como se ela não fosse produzida
por eles e elas, mas sim pela própria ciência (como se a ciência
fosse uma inteligência artificial que não precisasse de seres
humanos para existir – a Skynet de O exterminador ou os AI-5, de
Eu, Robô). Comparando com uma etnia indígena qualquer, poderíamos
dizer que cientistas são um povo que acredita que as coisas existem
em “domínios” distintos e que uma coisa nada tem a ver com a
outra, o que deixa um velho xamã indígena surpreso e estupefato
com… ou ingenuidade d cientistas, ou seu mau caráter.
Por
último, cabe então enfatizar que, na prática, usar “ontologia”
ao invés de “cultura” numa pesquisa permite notar e registrar
como os e as cientistas constroem seu mundo, povoando-o de fatos
objetivos, conectados com a política, mas sempre dizendo que a
ciência é ciência e política é política. O antropólogo que os
e as estudou diz o mesmo, afinal, a antropologia não é mais
colonial! Ele respeita, leva a sério, o que seus informantes dizem!
O mundo deles, seu modo de ser, é científico, com redes de cadeias
de fatos sustentando outras ações, neste caso, políticas e
“sociais”. Mas a pergunta que fica é: será que usar ontologia
ao invés de cultura realmente faria diferença? Dois filósofos de
diferentes países diriam que o “uso” é que faria diferente, não
o termo. Um é austríaco; o outro, norte americano, e ambos já
estão mortos (quem são?).