sexta-feira, 30 de agosto de 2019

Sociologia Associativa – Introdução ao Pensamento de Latour III


            Seguindo os posts introdutórios ao pensamento de Latour, agora apresento a sociologia associativa. No mesmo espírito dos posts anteriores, cabe destacar a oposição de Latour a outras abordagens. Neste caso, à sociologia funcionalista, a qual ele chama de sociologia do social. Mas é preciso novamente se manter em mete o foco sobre a ação (ao movimento) no qual as “coisas acontecem” e “produzem algo”.
            Para Latour – principalmente em Reagregando o social: uma introdução à teoria “do” ator-rede -, o funcionalismo e sua vocação para explicar interações sociais por meio de estruturas de consciência coletiva que se imporiam sobre os indivíduos de modo coercitivo, seria uma modalidade sociológica que separava o que era “conteúdo” ou “construção social” de um lado, e todo o resto não social, do outro. Assim, por exemplo, existiria um reino da biologia, da economia etc., independente do social. Para explicar, então, a ciência, seria necessário identificar como fatores sociais influenciariam a ciência – mas não permitiriam estudar o conteúdo da ciência. Cabe lembrar, aqui, que a sociologia da ciência com Merton e, ainda, com o criador do princípio de simetria, ainda preservava essa separação de um reino social “anterior” à ciência (Merton), ou “dentro” do conteúdo da ciência (Bloor).
            Com a sociologia associativa, por outro lado, o social se diluiria, não sendo um reino à parte de outras áreas. Desse modo, as interações entre elementos heterogêneos, como mosquitos e seres humanos, por exemplo, resultariam em associações produtoras “do social”. Como a ação é que está em jogo, então a observação seria voltada para descrever o processo pelo qual o social emergiria como resultado, não como causa da ação. Se Bloor e Merton explicariam um fenômeno por meio de uma causa social que os provocaria, Latour descreveria como o social foi produzido como resultado de associações, não como a causa dessas associações.
            A partir de um exemplo pessoal, eu pesquisei como agronomia e ciências sociais interagiam com agrotóxicos na UFRPE, em 2016. Analisando ementas de cadeiras de ambos os cursos e realizando observação participante (assistindo aulas de cadeiras dos dois cursos), decidi utilizar a abordagem de Latour como referencial teórico. O que fiz foi então analisar como as aulas eram situadas e enquadradas em cada ambiente conforme ementa, e quais eram as associações que a agronomia e as ciências sociais mantinham com agrotóxicos. Como resultado, mapeei duas redes de associações distintas e em conflito, nas quais diferentes seres e substâncias eram, cientificamente,  mobilizados para a formação de pesquisadoras/es das duas áreas analisadas.
            Num contraste, poderíamos analisar as mesmas circunstâncias com a hipótese de que existiria uma força ideológica por trás dos dois cursos, uma de trabalho contra o capital; outra de capital contra o trabalho. Isso explicaria porque agronomia estaria associada ao agronegócio e ciências sociais à agreocologia. Por conseguinte, também poderia explicar porque existe mercado de trabalho amplo para agronomia e um amplo exército industrial de cientistas sociais de reserva, desempregados. Ou, ainda, poderíamos tentar compreender como a estrutura de reprodução da desigualdade permitiria certa autonomia aos campos, relativa, mas ainda assim, condicionada por outros campos, como a economia e a política.
            Se esse tipo de análise explica a desigualdade por meio de suas lentes, a sociologia associativa não faz o mesmo, ela se propõe a observar como as diferentes interações geram cursos de ação e alianças distintas. O lema, como diz Latour, é seguir os atores. Não falar em nome deles; nem escolher entre um e outro. Essa postura, normalmente criticada, não decorre apenas de uma questão ética, mas também de uma questão teórica: se o social emerge das relações, não cabendo explicar forças “sociais” por trás da ação, então como poderemos descrever um processo cujo resultado ainda está em construção, se já definimos de antemão suas causas?
            Outra controvérsia pode ilustrar uma situação distinta da controvérsia entre agronomia e ciências sociais – já que esta parece exigir que escolhamos entre qual dos lados está certo no modo como interage com agrotóxicos. Trata-se de uma controvérsia que analisei recentemente: sobre a capacidade vetorial de mosquitos comuns transmitirem o vírus Zika. Isto é (perguntaram-se entomologistas da Fiocruz de Recife): será que os mosquitos comuns, além dos mosquitos da dengue, conseguiriam transmitir o vírus Zika? Resultado: elas concluíram após testes de laboratório, que sim, eram potenciais vetores. No entanto, outros pesquisadores fizeram a mesma experiência, mas na Fiocruz do Rio de Janeiro, e concluíram o oposto: “não, mosquitos comuns não transmitem Zika. Recife deve estar errado”. Eu, sociólogo à época, explicaria que existia uma causa social por trás das duas instituições que, consequentemente, estaria influenciando os resultados científicos? Deveria apenas descrever a controvérsia e, especialista que sou em entomologia, me tornar o árbitro da controvérsia dizendo, “a regra é clara, meu time, recifense, está certo e ganhou o jogo porque saiu na ofensiva”? É por isso que a regra na sociologia associativa é “seguir os atores”, pois quem vai finalizar a controvérsia são os atores (actantes). Não “a gente”, que pesquisa a controvérsia “de fora”.
            A ideia de rede aparece nesse “rastro” deixado pela “trilha” que os atores vão desenhando na medida em que fazem e desfazem associações. Antes da epidemia de Zika, por exemplo, os mosquitos comuns eram pouco estudados no laboratório de entomologia; mas assim que a associação da doença misteriosa à época, “dengue fraca”, foi associada com o vírus Zika, descoberto em 1947, em Uganda, a situação mudou. O laboratório rapidamente começou a investir em pesquisas sobre Zika e, depois, Zika e Culex quinquefasciatus (mosquito comum). Seguindo essas associações, ao invés de identificar causas sociais por trás da mudança de práticas no laboratório, decidi seguir os atores. Como um etnógrafo fiquei observando todo o processo de produção até onde ele ia e, novamente, fiz certo mapeamento das associações em torno do Zika. Como resultado, pude compreender como a experiência de um local (laboratório) possibilia alistar aliados (agencias de fomento, parcerias internacionais, outras instituições) em busca da produção de respostas para lidar com a epidemia e, em seguida, essas alianças permitem com que o resultado das experiências seja comunicado/transportado para fora do laboratório. O que permite com que se desenvolvam políticas públicas e, em geral, “altere as interações sociais” ou, finalizando com Mary Douglas, modifica o modo como lidamos com a poluição (epidemia).
           

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