quinta-feira, 29 de agosto de 2019

Por que antropologia simétrica? – Introdução ao pensamento de Bruno Latour II

O princípio de simetria: origem

O principal livro de Latour no qual se encontram os princípios de uma antropologia chamada simétrica é Jamais fomos modernos: ensaios de antropologia simétrica. Alguns anos depois, Latour fez críticas e reconheceu as falhas desse projeto em Políticas da natureza: como fazer ciência na democracia. Outro livro em que alguns princípios sobre o assunto podem ser encontrados é em A esperança de Pandora: ensaios sobre a realidade dos estudos científicos.
Tal como na postagem anterior, cabe alguma contextualização sobre contra quem Latour estaria se opondo ao falar em simetria. Mas antes, é fundamental lembrar que a ideia de simetria veio originalmente do trabalho de David Bloor e Barry Barnes, chamado de o Programa Forte em Sociologia do Conhecimento. Para esses autores, simetria era um princípio segundo o qual não deveríamos opor crença e razão, verdade e falsidade, mas antes, identificar como tanto a ciência quanto a crença seriam causadas por fatores sociais externos. Bloor analisou como mesmo o conteúdo de diferentes abordagem matemáticas, foram transformados por razões sociais externas aos dados produzidos por matemáticos.
Em Vida de Laboratório: a construção dos fatos científicos, Latour e Steve Woogar aplicaram o conceito de simetria de David Bloor, mas perceberam que ele se limitava a causalidade social, ou a cultura, ignorando a participação de não-humanos (da natureza) na fabricação dos fatos científicos. Para retomar um exemplo do post anterior sobre Latour, voltemos para o caso de minha pesquisa sobre vírus Zika em um laboratório da Fiocruz em Recife. Se aplicássemos a simetria como Bloor sugeriria, eu deveria investigar como fatores sociais causaram a produção de fatos sobre Zika; por outro lado, a participação de mosquitos, máquinas e o laboratório como um todo, seriam ignorados.
Para Latour, incluir essa não humanidade (objetos, insetos, máquinas etc.) e estudar a ação em movimento, possibilitaria observar a relação que mediaria os testes de laboratório. Quando falo em mediar, estou me referindo à capacidade dos envolvidos de agir, de produzir a realidade como resultado de suas práticas e rotinas. O que é o oposto do que Bloor desejava, já que para esse sociólogo, cuja influência da sociologia clássica via Durkheim é assumida em seu livro Conhecimento e Imaginário social [1976], a relação de causa e efeito do social sobre a ciência que deveria explicar o ordenamento da ciência como parte de uma estrutura social.
Lembremos: Latour está o tempo todo interessado em abandonar o olhar para uma estrutura por trás dos agentes (ver Reagregando o Social: uma introdução à teoria do ator-rede). É ação e seu movimento que interessa. Quando isso fica claro, podemos então “seguir os atores” conforme eles e elas vão modificando as relações entre humanos e não-humanos.

Simetria generalizada

Apesar de outros autores, como Michel Serres e Michel Callon terem desenvolvido o princípio de simetria generalizada, no Brasil esse princípio parece ter ficado mais conhecido via Latour, que, claro, dialogou e foi influenciado por esses autores. Quando Latour fala em simetria generalizada, ele está adaptando a abordagem de Bloor, ao incluir a dimensão não-cultural – a natureza – e os não-humanos na análise. Mas no que isso resulta?
Em Jamais fomos modernos... Latour diz que a chamada modernidade européia se desenvolveu com ajuda da filosofia da época e com o progresso da ciência, passando por Déscartes e Kant. Seu resultado foi separar o que seria cultura do que seria natureza. Apesar de parecer um absurdo, conforme a antropologia desenvolveu o conceito de cultura para compreender as representações culturais de cada povo sobre a natureza, ocorria uma essencialização do que seria “natureza”. Isto é: a natureza seria algo universal, independente das representações que cada cultura teria dela. Resultado? Apenas nós, modernos, poderíamos, por meio da ciência, o que seria a natureza, já que conseguíamos produzir conhecimento independentemente das crenças. Essa seria nossa diferença para outros povos: “eles” são irracionais e suas crenças os impede de serem objetivos; nós, modernos, descobrimos um modo de alcançar a verdade, que seria a representação correta da realidade (2 + 2 = 4; a gravidade é inegável etc.). Qual é o problema dessa conclusão, afinal?
O problema é que não aceitamos que fazemos as mesmas coisas que as outras culturas: nós inventamos um conceito para interpretar as representações de outros povos – o conceito de cultura. Mas nos escondemos por trás da ciência como se não fossemos uma cultura como outras. Também representamos a realidade. Por que então seriamos tão diferentes?
O lado negativo dessa conclusão é que não sairíamos do relativismo cultural. Em outras palavras, se tudo fosse representação, então não faria mais sentido pensar em objetividade ou universalidade ou, politicamente, um bem comum. A solução, por sua vez, seria inverter os termos: propor uma antropologia que abandonasse a busca por representações culturais. Novamente, vem a questão da mudança de abordagem: seria preciso abandonar a velha antropologia para investigar como cada povo (“coletivo”) produziria sua própria natureza-cultura. Dito de outro modo: ao pesquisar qualquer povo, deveríamos observar como a mediação humano/não-humano poderia ser vista como uma relação que constrói (performa) a realidade. Esse é, aliás, o fundamento do conceito de “híbrido” – coisas compostas pela relação humano/não-humano: um celular, o buraco na camada de ozônio, uma bicicleta, um isqueiro, uma doença, o vírus Zika etc. São híbridos porque são parte Natureza, parte Cultura; são parte matéria, parte símbolo. Olhar para esses híbridos é olhar para os efeitos da ação. Por isso, cabe reforçar, não devemos olhar para como as estruturas sociais ou as representações culturais ordenam nossa sociedade; ao contrário, devemos estudar como a relação humano/não-humano produz, fabrica, constrói a sociedade, ou o coletivo – ou, nos termos clássicos, a natureza/cultura.
Caso essas ideias sejam levadas a sério, então deveríamos aplicar esse princípio de simetria a nós mesmos: à ciência e à tecnologia; ao nosso próprio coletivo (nossa sociedade). Latour admite que quando desejamos fazer uma antropologia simétrica, perdemos o exotismo, característica tão marcante da antropologia clássica, acostumada a pesquisar povos não ocidentais. Desse modo, aplicando o princípio de simetria, somos capazes de perceber que nossa suposta autenticidade “moderna” esconde nossa semelhança com outros coletivos (não-ocidentais), pois nós mobilizamos humanos e não humanos para produzir nossa sociedade e, claro, nosso político almejado bem comum.
Concluindo, falar em simetria não seria, em Latour, uma maneira de “descolonizar” a ciência. Trata-se, sim, de aplicar os mesmos princípios que aplicamos aos outros, a nós mesmos. Por que não conseguíamos estudar nossas “sociedade complexa” como um bom etnólogo conseguiria estudar a bruxaria Azande ou as Cosmologias Amazônicas, ou ainda, os rituais religiosos e a hierarquia hindu relacionado-as a política, ao parentesco, as regras de matrimônio, a educação etc.? Em outras palavras: por que quando estudamos nossa sociedade, só conseguimos estudar o marginal, o excluído etc., nunca a ciência, a tecnologia, as elites e sua relação com a totalidade de nossa sociedade? Eis o objetivo da antropologia simétrica.



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