quarta-feira, 28 de agosto de 2019

Introdução ao pensamento de BRUNO LATOUR I


I
Zelando por clareza e brevidade, busco apenas introduzir o pensamento do filósofo de formação Bruno Latour. Este é um texto cujo público alvo são estudantes universitárias/os que se interessam pela obra deste autor, mas ainda pouco o conhecem.
Creio que seja essencial compreender primeiramente quem Latour buscou combater e como ele desenvolveu essa “luta”. De seus trabalhos mais próximos a uma etnologia incomum, voltada para “nossa sociedade”, estudando ciência e tecnologia; abrindo mão de investigar o exótico (etnias indígenas, por exemplo), até chegar à antropologia simétrica e, mais tarde, à sociologia associativa (tudo isso podendo ser simplificado pelo termo teoria do ator-rede), Latour foi se opondo ao estruturalismo (Lévi-Strauss), à teoria crítica (Bourdieu), ao funcionalismo (de tradição britânica e seu criador, Durkheim), à desconstrução e ao interpretativismo (Geertz) – principalmente aos chamados pós-modernos.
Se entendemos contra quem Latour veio se opondo há aproximadamente 50 anos, agora perguntamos como isso foi feito. Acho que é fundamental que “esqueçamos” de nossas certezas teórico-metodológicas. Em segundo lugar, é preciso ser prático, pois, se eu conseguir ser claro como desejo, veremos que a teoria ator-rede é mais simples do que aparenta.
Ao invés de acreditarmos na ciência e na razão, façamos como faz um etnógrafo: vamos ao campo (não problematizemos esse termo). Quando fazemos esse movimento simples, passamos a observar cientistas sendo financiados, instalados em laboratórios cheios de máquinas, utilizando manuais e repetindo rotinas com diferentes amostras de coisas da natureza. Se deixarmos de lado debates filosóficos sobre epistemologia e nos tornarmos observadores participantes – como a antropologia nos ensinou -, perceberemos que fazer ciência é como fabricar um carro, por exemplo (Cf. Ciência em Ação; Vida de Laboratório).
Por outro lado, “não acreditar na ciência” não deve ser levado ao pé da letra. Trata-se apenas de deixar certezas de lado e estudar a ciência na prática; observar como cientistas constroem a ciência – ou como produzem fatos. A partir desta experiência, novas interpretações (e conceitos) surgiram...

II
Reduzindo a ciência  às práticas (lembrar que Foucault já havia sinalizado esse caminho em A arqueologia do saber), isto é: no estudo de práticas científicas, Latour incluiu a participação do que chamamos de coisas e natureza na análise. Ao invés de fazer como Marx, que falou em relações sociais entre coisas (fetichismo), Latour tentou compreender o que aconteceria se levássemos a sério nossa relação com essas coisas (objetos e não-humanos em geral). Porque essas coisas, principalmente o que ele chamava de técnica, seria o que nos distinguiria de outras espécies de animais, como os macacos (Cf. seu trabalho com a primatóloga Shirley Strum, redefinindo o “link” social: de babuínos a humanos  (https://journals.sagepub.com/doi/abs/10.1177/053901887026004004 ).
Pesquisar a técnica, então, permitiu-lhe concluir que as interações humanas eram mediadas pela presença de não-humanos, de objetos. Aqui ocorre o abandono da ideia de uma racionalidade intencional, humana, por trás da ação. Trata-se, antes, de observar a ação em movimento – as coisas acontecendo – e identificar como uma situação pode ser compreendida pela simples descrição das coisas interagindo e produzindo novos efeitos.
Vê-se, assim, que Latour se concentra em abordar a ação. Por isso, não se trata de observar por meio das técnicas e da materialidade, como a cultura se perpetuaria nas interações entre culturas (culturalismo); também não se tratava mais de se chegar a uma ordem social que estruturaria os rituais ou a ação dos indivíduos (antropologia social). Mas também não se tratava de tornar tudo discurso (interpretativismo) ou desconstruir os significados e seus “jogos” de diferença (Derrida). Tratava-se de investigar como a materialidade e os símbolos faziam parte das relações antes consideradas apenas intersubjetivas, porque ocorreriam apenas entre humanos. Ao colocar esses não humanos na interação, o olhar investigativo deveria se concentrar em “seguir” as redes em que a ação vai se desenvolvendo.
Numa pesquisa recente, fiz isso com o vírus Zika. Então primeiro identifiquei em quais locais o vírus estava circulando e escolhi o Instituto Aggeu Magalhães para observar como esse vírus circulava por lá. Então descrevi o ambiente, pesquisei sua fundação, sua história e analisei como as máquinas (de PCR, centrifugadoras, máquinas de macerar, computadores) permitiam com que amostras de mosquitos fossem estudadas por cientistas cujo intuito era produzir fatos novos sobre Zika. Ao fazer isso, percebi como as máquinas mediavam a produção dos fatos: a relação entre cientistas e mosquitos jamais foi a mesma depois da invenção das máquinas citadas. Assim, mosquitos chegavam ao laboratório e eram transformados em informação – como resultado de artigos científicos ou saiam em audiovisuais, como resultado de entrevistas feitas por jornalistas. Com isso, conclui que  a ação – epidemia de Zika -  passavam por diversas transformações até se tornar informação circulando em telejornais, possibilitando a mudança de comportamentos. Além disso, os interesses (intenções) humanos não desapareciam do processo: o governo financiava pesquisas por meio, por exemplo, da FACEPE, CNPq, Capes, no intuito de fazer políticas públicas e tomar decisões político-sanitárias; cientistas com suas carreiras pela frente buscavam contribuir realizando as pesquisas com o financiamento recebido e, assim, produziam fatos; a mídia, como comunicadores que são, visavam “conscientizar” o público em como combater a epidemia e, assim, mantinham seus investidores privados nos intervá-los de sua programação; a “população” tomava consciência da relação entre seus sintomas e a nova doença, o vírus Zika e, mais tarde, sobre microcefalia e Síndrome Congênita de Zika. E por aí vai...
Por ora, nessa parte, o mais importante é atentar para o movimento. Trata-se de uma teoria da ação, que cada vez mais dialoga com o pragmatismo (não utilitarista) estadunidense (o blog do sociofilo tem sido um grande difusor do pragmatismo no Brasil: ver: https://blogdosociofilo.com/tag/bruno-latour/). Por isso, é o olhar investigativo que tem que ser modificado. É preciso apenas observar como as coisas vão se transformando conforme vão trafegando entre os locais (um mosquito circulava pela paisagem; tornou-se amostra estatística congelada em microtubos; foi amplificado em uma máquina e seu RNA foi separado dele; essas informações se tornaram número; esses números foram interpretados por cientistas que concluíram que o Zika vírus estava ou não presente nas amostras; esses resultados circularam como artigos científicos ou matérias de jornal e televisão; as pessoas mudaram suas práticas depois de saber que o mosquito da dengue transmitia Zika?).
Nos (possíveis) próximos posts, falarei sobre antropologia simétrica e sociologia associativa, passando por conceitos desenvolvidos por Latour.






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