quarta-feira, 27 de maio de 2020

Coca-cola cura ressaca? Ou como separar negacionismo/cinismo bolsonarista da crítica à colonialidade “por trás” da Ciência


Crônica: após uma conversa sobre se coca-cola cura ressaca ou não, pude responder uma questão que me inquieta desde o ano passado, após uma aula de teoria antropológica. Qual a questão? Como podemos confiar na ciência mesmo quando estamos criticando-a sem cair no outro lado, a saber, duvidar da instituição científica ou dos fatos científicos como um todo (postura de muitos bolsonaristas)?

 

Um: experiência/testemunho pessoal versus provas científicas

            “Coca-cola tira ressaca?” Segundo ao menos cinco testemunhas, sim, a coca-cola cura ressaca. Uma pesquisa rápida na Internet e encontro uma matéria que foi publicada na revista Veja. Ela diz, “Mito. Coca-cola não cura ressaca”. Mas diversos blogs dizem que a coca-cola, ao menos no início, tinha ingredientes que pessoas escravizadas por serem negras, utilizavam esses tais ingredientes  para lidar com cansaço e, nota, com a ressaca.

            Esses dois passos: testemunhos pessoais + pesquisas na internet não são conclusivos. É preciso encontrar artigos científicos que falem sobre o assunto, para termos certeza (certo?). Então as respostas são inconclusivas. Porém, a ciência funciona assim mesmo: questões são levantadas e pesquisas são feitas para verificar se a informação procede ou se é falsa. Não existindo nenhuma resposta, lascou. Temos que esperar que elas surjam. Não é o mesmo com a Covid-19?

 

Dois: das provas científicas para o negacionismo

            Agora falando da Covid-19, não da coca-cola, como funciona o negacionismo? Basicamente diria: as provas científicas são ignoradas ou negadas por muitos bolsonaristas. Assim, eles e elas podem manter sua opinião política. Ou seja: você descredibiliza a ciência assim para poder denunciar os interesses políticos (ideológicos) por trás dela. Nota: historicamente a ciência produzida fora da teoria marxista era considerada por muitas pessoas (acadêmicas ou não) como “ideologia burguesa”, “interesses capitalistas” (ser “neutro” seria ser “a favor do opressor”) etc. O que quer dizer que o discurso contra ciência não é exclusivo aos tempos de hoje, nem aos/às bolsonaristas.

 

Três: a confiança na ciência e a crítica dos interesses colonialistas “por trás” da instituição científica

             Confio na ciência. Como pessoa, como antropólogo e sociólogo. Mas aprendi em sala de aula que a ciência serviu, historicamente, ao colonialismo e à dominação europeia no resto do mundo, inclusive a antropologia teve um importante papel no assunto (defendendo a ideia de que existia uma raça superior, civilizada, e os outros, não europeus, deviam ser estudados e classificados nessa escala que iria do primitivo, selvagem ao civilizado, branco europeu). E agora, José? Como defender a antropologia e a ciência?

            Bom, eu fui pra um laboratório de entomologia (estuda doenças em insetos) acompanhar cientistas fazendo experiências com mosquitos (ninguém tem pena deles!). Aí pude perceber que existia uma diferença sobre falar (mal) da ciência e “fazer ciência na prática”. Enquanto uma pessoa queria desenvolver pesticidas para acabar com mosquitos; outros/as queriam usar radiação para esteriliza-los; já outras queriam descobrir quais espécies de mosquitos transmitiam Zika vírus. Tá, mas cadê a “colonialidade” por trás da ciência?

            Numa entrevista, um cientista dizia que somente o que foi experimentado pela “comunidade científica” que deveria ser utilizado. Ou seja: nada de repelentes naturais, por exemplo. Ora, a colonialidade não está dentro do laboratório, mas “fora” dele: a fala do cientista desqualifica tudo que não for cientificamente comprovado. Ora, mas se as experiências e testemunhos, por exemplo, indígenas no uso de “saberes milenares” (que nem aquela chamada “medicina tradicional chinesa”), são jogadas fora sem nenhuma cerimônia ou respeito, então temos uma colonialidade operante.

            O mesmo vale para quando “conectamos” as pesquisas que falei, sobre mosquitos, com os interesses políticos e de financiadores “por trás” da ciência. Correto? Não necessariamente. A ciência não “deixa de ser ciência”, ela apenas “serve” ou não para interesses variados. O mesmo pode ser dito historicamente, com a antropologia: a ciência era colonialista exatamente porque justificava, cientificamente, o discurso racista dos europeus. Porém, os avanços na biologia e na antropologia demonstraram que tais teorias científicas estavam, obviamente, erradas.

           

Conclusão:  coca-cola cura ressaca?

            A diferença do negacionismo para a crítica colonialista à ciência é que a instituição científica é descredibilizada sem cerimônia toda vez que ela não serve aos "nossos" interesses. O ministro do meio ambiente é um exemplo: ele sempre usa a palavra “ideologia” quando quer questionar fatos científicos (“filho de peixe”, “bom garoto é”).

            Já a crítica à colonialidade tem dois lados. No primeiro, ela acaba descredibilizando toda a ciência quando ela não serve à “emancipação”, o que é um problema tão grave quanto o negacionismo. O outro lado, “positivo”, é que uma crítica equilibrada é salutar, faz bem, pois nos ajuda a melhorar a instituição científica e pode servir para colocar diferentes saberes em diálogo (iguais eles jamais serão, mas isso é positivo, não negativo).

            E a coca-cola, cura ou não ressaca? Eu tomo só pra tirar ressaca, porque sim, sabemos que faz um mal arretado. Mas e você? Diz aí bença.

 

Fonte da imagem           


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