Neste breve texto,
falo um pouco sobre um entendimento não muito popular sobre a linguagem,
antropologicamente falando, e de como podemos compreender a razão de termos
como gênero e ideologia serem tão “difamados”. Parto da reflexão proposta por
Richard Bauman (folclorista e antropólogo) e Charles L. Briggs (antropólogo), a
respeito de estudos linguísticos.
Um ponto inicial para estas perguntas é a distinção entre
discurso e texto. No cerne do processo de descentrar o discurso está o processo
mais fundamental – a entextualização. Em termos simples, apesar disto estar
longe de ser simples, é o processo de tornar o discurso passível de extração,
de transformar um trecho de produção lingüística em uma unidade – um texto –
que pode ser extraído de seu cenário interacional. Um texto, então, nesta
perspectiva, é discurso tornado passível de descontextualização.
Entextualização pode muito bem incorporar aspectos do contexto, de tal forma
que o texto resultante carregue elementos da história de seu uso consigo. (p.206/pf.
23)¹.
Esta
passagem, acima, nos faz pensar na relação entre o uso da linguagem e a
constante mudança que se coloca em curso, em ação, toda
vez que “usamos” a linguagem. Vejamos um exemplo atual. Leio uma manchete que
me fala sobre “ideologia de gênero”. Na mesma matéria, um deputado propõe uma
lei semelhante à “escola sem partido”, no intuito de impedir que “ideologia de
gênero” seja ensinada nas escolas, para crianças e adolescentes.
Ora,
a montagem, entre aspas “ideologia” + “gênero” é, exatamente, uma novidade que
extraiu um discurso de seu cenário, acadêmico e historicamente ligado ao
feminismo, mas não somente, e o reconfigurou. Academicamente o termo “gênero” refere-se
a um conjunto de estudos e teorias baseadas no uso do termo “gênero” aos campos
do “social”, “histórico” e/ou “cultural”. “Teoria de gênero” se apresenta como
um cenário em que são investigadas as possibilidades, tendências e exceções de
relações entre pessoas de diferentes lugares e períodos lidando consigo mesmas
quanto a aspectos afetivo/sexuais, conjugais, “público-privadamente”,
geracionais, educacionais, etc. Assim, relações de gênero, portanto, mudariam “historicamente”,
“cultural” e “socialmente”. Daí não podemos falar em “Ser humano”, “O homem”, “A
mulher”, mas sim falar sobre homens e mulheres em um contexto social, histórico
e cultura específico, nunca universal.
Por
fim, quando “gênero” é deslocado para outro cenário, ou “contexto”, ele é
acoplado à “ideologia”. O efeito desejado, aparentemente, é tornar moralmente
negativo o seu uso e, por conseguinte, impedir que seja um tema de estudo em
escolas da rede pública e privada no Brasil.
A ideologia como a fronteira da
compreensão
Agora,
vejamos o que aconteceu, historicamente, em paralelo ao desenvolvimento dos
estudos de gênero na segunda metade do século XX. Segundo a filósofa brasileira
Marilena Chauí, ideologia foi proposta como uma ciência das ideias por um filósofo
e soldado francês, Destutt de Tracy (1754-1836), na época da Revolução
Francesa. A filosofia marxista, contudo, operou o que chamo, aqui, de “primeira
mudança”: ideologia tornou-se “falsa consciência”. Isso ocorreu na primeira
metade do século XIX, mas na antiga Prússia.
Já
na primeira metade do século XX, ideologia era ainda um “carro chefe” do
marxismo, incluindo na França de meados daquele século, quando se desenvolvem
teorias acadêmicas conhecidas como estruturalistas (Louise Althusser) e de
análise de discurso (Michel Pêcheux), mas não somente. Nas décadas seguintes,
na França, a ideologia passa a ser bastante criticada enquanto conceito e em
seu uso (ver Michel Foucault, Gilles Deleuze e Félix Guatarri). Mas e o Brasil?
Em
1985, a nível de exemplo, um documento confidencial do serviço de inteligência²
policial alertava para a criação de escolas em um bairro da cidade de Olinda,
PE, que estava ainda em construção, Ouro Preto. O documento alertara os órgãos e
aparelhos de Estado, que caminhava para o fim do período de Ditadura Militar
Brasileira (1964-1985), para o ensino da pedagogia de Paulo Freire e sobre luta
de classes. Ora, “luta de classes” é o que se “institui”, a partir marxismo alemão
no século XIX, na antiga Prússia (Alemanha atual), a crítica à “falsa
consciência” (ideologia), da classe dominante, burguesa, contra a classe
trabalhadora (proletariado). O que quer dizer que, até então, ideologia era uma
“mentira contada pela classe dominante para manter as pessoas na ignorância sobre
suas condições de existência e de seu papel político”. Daí o “perigo”, em um
período de Ditadura Militar, de se falar em “luta de classes”.
Pois
bem, e hoje? O que aconteceu com a ideologia? De algum modo, como no caso de
ideologia de gênero, e nos discursos do presidente Jair Bolsonaro, “ideologia”
continua sendo uma coisa “ruim”, um mal. Porém, agora ela não é uma “coisa” da “classe
dominante”, mas da esquerda-comunista, com seu Paulo Freire e sua luta de
classes. O que aconteceu hoje, suponho, é que estamos diante de um novo uso ou
emprego da palavra “ideologia”. É como se tivesse ocorrido uma “apropriação
cultural” e, por isso, estamos diante de uma nova utilidade da “ideologia”, uma
nova maneira de utilizá-la. A grande questão, em minha opinião, não é mais
discutir sobre “o uso correto” do termo ideologia, porque isso nos faz pensar
que existe uma verdade a ser resgatada historicamente, sobre a interpretação
correta da “palavra” (“igual que nem” com “A palavra” das tribos judaico-cristãs
que utilizam livros religiosos para dar sentido a suas existências). O que
importa é observar essa “mudança” e atualizar o histórico, o arquivo do
conceito, como diria o filósofo francês Jacques Derrida. Quanto antes
abandonarmos nossos velhos hábitos sobre “direitos de uso” dos “conceitos”,
como ciência, razão, ideologia e gênero, tanto mais rápido poderemos reagir de
maneira mais apropriadas aos “tempos atuais”. Chega de monopólio da verdade! É
hora de pluralismo e democracia, inclusive sobre como podemos conhecer (epistemologia)
o mundo e entender os diferentes modos (ou discursos) de ser no mundo
(ontologia).
Isso
é tudo, bença.
1: Richard Bauman e Charles L.
Briggs (1990) A poética e performance como perspectivas críticas sobre a
linguagem a vida social. no Annual Review of Anthropology, 19:59-88.
2: ver foto.
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