sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Quem tem medo da ciência (e suas epistemologias)? II

Fonte: Internet.
No post de hoje comento dois livros de Bruno Latour que, a meu ver, podem ser utilizados em conjunto numa pesquisa social: “Reagregando o Social: uma introdução à teoria ator-rede (versão em português de 2012; em inglês de 2005)” e “Modos de existência: uma antropologia dos modernos (2019; 2012)”. A ideia é continuar demonstrando a utilidade da obra de Latour para pensar no debate ciência e política.



A chamada teoria “do” ator-rede (como se costuma dizer no Brasil) foi desenvolvida por várias pessoas, Latour é uma delas e talvez a mais conhecida no Brasil. O livro “Reagregando o social...”, como o título diz, tenta sintetizar os princípios teórico-metodológicos desta teoria. Eu utilizei esse livro na minha monografia (TCC) de conclusão de curso (2016) e no mestrado em sociologia (2019). O que acho importante nesse livro é que, basicamente, ele nos ensina a “rastrear associações”. Mas o que isso significa?


Basicamente, nós observamos as práticas cotidianas das pessoas onde quer que elas estejam e seja lá o que façam ou no que trabalhem. No meu TCC eu fiquei assistindo aulas de agronomia e de ciências sociais ligadas ao tema dos agrotóxicos/defensivos agrícolas. Além disso, entrevistei discentes e docentes dessas áreas e análisei fontes documentais (“e virtuais”) dos dois cursos. Minha intenção era compreender como os agrotóxicos participavam da realidade dos diferentes cursos e como as pessoas se posicionavam sobre o assunto. A aplicação da teoria ator-rede nesta pesquisa ajudava a guiar a atenção para as instituições, para o material didático utilizado nas aulas, incluindo aulas práticas de agronomia em hortas, e para as opiniões das pessoas sobre o assunto. Falar em “rastrear associações”, portanto, significava observar a conexão entre os elementos mencionados. Por exemplo: em Sociais a associação que formava o corpo discente estava ligada ao Ministério do Desenvolvimento Agrário e à Agroecologia (conforme ementa de uma disciplina) ligado ao tema dos, neste caso, combate aos agrotóxicos. Já no caso da agronomia, a relação era com a Associação Brasileira de Ação à Resistência de Plantas Daninhas (HRAC-BR), entre outras associações. Esta entidade, por seu turno, está ligada a empresas como a ADAMA, IHARA, Arysta LifeScience, ISK Bioscience do Brasil Defensivos Agrícolas, BASF: The Chemical Company, Monsanto, Syngenta entre outras.

Bom, com o TCC eu aprendi a mapear essas “associações” e, neste sentido, isso significou entender a conexão entre mercado, agronegócio e aulas de agronomia, de um lado; de outro, a conexão entre teoria crítica, movimento de trabalhadores/as e ciências sociais. O problema do meu TCC é que ele não fornecia acesso aos juízos de valor das pessoas que entrevistei, nem ao meu próprio. Sempre me cobravam, aliás, um “posicionamento” e eu normalmente dizia: “gente, meu posicionamento pessoal é uma coisa, e meu posicionamento enquanto sociólogo está na escolha do tema polêmico! Mas quem define o que é certo ou errado não sou eu, pesquisador, mas as pessoas do campo; o que não significa que eu precise concordar com nenhuma delas”. 

Já no mestrado eu fiz o mesmo: utilizei a teoria ator-rede. Mas escolhi outro campo: um laboratório de Entomologia para observar o cotidiano de cientistas fazendo descobertas sobre Zika. No final, descobri como se faz a conexão entre ciência e Estado “na prática”. Se no TCC eu percebi que existiam conexões entre agrotóxicos, aulas de agronomia e interesses de mercado, por exemplo, no mestrado descobri como ocorrem associações entre interesses políticos, científicos, “sociais” e mosquitos (sim, mosquitos: a teoria ator-rede presume que não humanos também são “atores sociais”). Isso me fez perceber que essas associações operam em “redes” e que elas resultam, no caso dos agrotóxicos, na formação de agrônomos/as competentes para o mercado de trabalho, enquanto cientistas sociais estão sendo formados para denunciar os perigos do uso de agrotóxicos e, portanto, não para o mercado de trabalho; e, no caso do mestrado, fez-me perceber que as associações entre ciência e política ajudavam a combater a epidemia de Zika vírus.

Por outro lado, eu continuava sem registrar “juízos de valor”. Descobri apenas em 2019 que esse era o problema que o próprio Latour reconheceu na teoria ator-rede. Aí que entra o “Modos de existência...”. Nele, Latour “corrige” a falha da teoria ator-rede e recomenda outra abordagem, na qual você deve descobrir qual é o sentido que as pessoas dão as coisas que fazem e no que acreditam. Ele chamou isso de “modo de existência das preposições” (as redes passaram a ser o “modo de existência das redes”). Com isso, você pega uma palavra ou ideia e registra o que ela inclui, o que ela exclui e sua lógica de funcionamento. Por exemplo: no caso dos agrotóxicos, cientistas sociais os consideravam tóxicos e nocivos e, portanto, excluíam seu uso com base em seus “juízos de valor”. Para eles/elas a “agroecologia” e a “sustentabilidade” eram alternativas ao uso dos agrotóxicos e para o combate ao “mercado”. Com isso, eles incluíam o “movimento dos trabalhadores” e os “orgânicos”, excluindo os agrotóxicos e seus fabricantes, como a Monsanto.

Podemos pegar um exemplo que gosto: lugar de fala. Se você pegar esse conceito e o considera como uma “preposição”, você para de definir o “sentido verdadeiro” ou “correto” e passa a observar seu uso nas Redes Sociais. Logo você vai perceber o que “entra” e o que “sai” quando o termo é utilizado. Isso nos indica os “juízos de valor” que as pessoas que utilizam ou que criticam o conceito possuem. Normalmente você vai encontrar pessoas autodeclaradas negras/pretas defendendo seu uso e pessoas brancas resmungando. Porém, há exceções, claro. O blogueiro Jones Manoel, por exemplo critica seu uso, partindo da ideia de uma perspectiva epistemológica marxista.

O conceito de gênero é outro termo interessante. Estudos indicam que a palavra-chave “ideologia de gênero” está em ascensão na América Latina em paralelo com a militância evangélica. Bolsonaro e Damaris não são exceções, são, na verdade, fruto dessa realidade: eles não “enganam o povo”, ele e ela representam uma fração desse povo, neste caso, no Brasil. Em outras palavras: gênero é uma teoria, ou conjunto de teorias baseado, incialmente, na ideia de que a biologia e o sexo biológico não definem nem a sexualidade, nem a identidade política e social de uma pessoa. Quer dizer: isso se você está seguindo associações que envolvem ciências humanas e sociais, assim como movimentos sociais como o feminismo. Mas se você perguntar para Bolsonaro e cia, você vai ver a exclusão do termo “teoria” e a inclusão do termo “ideologia”. Essa mudança nada sutil nos termos diz, basicamente, quais são os “juízos de valor” por trás do sentido de cada palavra. Em outras palavras: ou você é a favor do feminismo ou você é bolsonarista. Seguindo essa lógica, não dá pra ser os dois.

Conclusão: as obras de Latour ajudam a rastrear as conexões entre política e ciência; mercado e agronomia; agroecologia e ciências sociais; Bolsonaro e ideologia; feminismo e teoria de gênero; lugar de fala e pessoas negras (mas não somente); etc.  Isso possibilidade identificar as conexões. A única coisa que deve ser lembrada é que Latour é pragmático e, portanto, ele se baseia sempre na pesquisa empírica, de campo, como bom antropólogo que é. O que significa que as afirmações que eu tô levantando podem estar “ultrapassadas”, mas aí temos que ver isso com pesquisa de campo. E você, acha que elas são ultrapassadas?

Por fim, é importante lembrar de uma coisa que já falei num post anterior, no Soteroprosa, sobre Latour: ciência e política são diferentes e uma não se reduz à outra, mas ambas podem se conectar conforme as forças em jogo. Por exemplo: Bolsonaro se alia a hidroxicloroquina (mercado farmacêutico), mas não concorda com isolamento social (ciência-OMS). A globo, sua arqui-inimiga atual, concorda com o isolamento social (ciência-OMS), mas, até onde sei, não financia nenhuma pesquisa científica brasileira que busca a cura para a Covid-19 (posso estar enganado, mas vale a reflexão).


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