terça-feira, 20 de outubro de 2020

Como não se tornar um “negacionista de esquerda”?

Existem mal-entendidos entre ciências sociais e ciências da natureza (“exatas”). O primeiro deles é “histórico”. Ele se refere à questão de método. Ou seja: se as ciências sociais deveriam usar os mesmos métodos das suas primas antigas: as ciências da natureza; ou não.

Um segundo mal-entendido é mais recente: ele se refere ao debate sobre a crítica pós-moderna (1980) e às demais críticas sobre o projeto moderno e ao projeto iluminista europeu. Neste caso, as críticas denunciam o contexto por trás da ciência. Isto é: crítica ao etnocentrismo ocidental, ao racismo, ao sexismo, ao patriarcado, ao capitalismo etc., por trás da ciência.

Tentarei refletir sobre esses debates no intuito de destacar os problemas ou efeitos/consequências negativas para a própria ciência e, por tabela, para cientistas sociais.

Durkheim, Weber e Marx. Internet.
Há alguns anos que eu não só leio sobre pós-colonialidade e decolonialidade, mas também pesquiso o uso dessas teorias por cientistas sociais de Recife-PE. Também fiz o mesmo com teorias de gênero. Já com marxismo, não pesquisei, apenas convivi com marxistas durante minha graduação e li bastante Karl Marx (1818-1883), Friedrich Engels (1820-1895), György Lukács (1885-1971), István Meszáros (1930-2017) e marxistas brasileiros de diferentes escolas, como Sérgio Lessa, Ivo Tonet, Cristina Paniago, Ricardo Antunes etc. O que há, portanto, em comum nessas teorias?

Bom, o primeiro argumento é simples: ninguém, aí, salvo raras exceções, fizeram pesquisas de campo com cientistas das áreas “da natureza”. O que há em comum, além disso, é que esse debate remete a dois elementos. No primeiro vem a questão inicial: se as ciências sociais devem compartilhar um mesmo método. No segundo a questão é sobre a denúncia aos “contextos” (etnocentrismo ocidental, racismo, sexismo, patriarcado, ao capitalismo etc.).

Depois de ter me dedicado nos últimos anos, principalmente de 2016 para cá, à sociologia da ciência e aos chamados estudos sociais sobre ciência e tecnologia (STS), além de ter “ido a campo” durante o meu mestrado em sociologia, tendo pesquisado a área de biomedicina (como já disse noutras ocasiões), eu cheguei a algumas conclusões que, hoje, tornaram-me mais seguro para defender opiniões sobre esses assuntos.

Em primeiro lugar, defendo a separação metodológica entre ciências sociais e ciências da natureza. Para quem vem de Sociais, é comum lembrar que Max Weber (1864-1920) defendia essa separação; já Émile Durkheim (1858-1917), não. O mencionado Marx e seu amigo Engels, também não, basta lembrar que eles diziam que aplicavam o método científico à análise do capitalismo e, por conseguinte, podiam demonstrar como se passaria do mesmo para o socialismo para, depois, o comunismo (um sistema socioeconômico sem estratificação social em classes – lembrar que no feminismo, Simone de Beauvoir dizia que isso não era sinônimo de acabar com a estratificação “sexual”, o patriarcado e a dominação “masculina”).

Em segundo lugar, tendo feito a separação metodológica entre as ciências sociais e suas “primas” da natureza – e eu não estou dizendo que não se deve usar métodos semelhantes, como a estatística e a matemática na sociologia, na ciência política ou na antropologia -, eu acredito que os debates subsequentes e críticos à “Ciência” (com C maiúsculo) não deveriam “generalizar” e “universalizar” suas críticas a “toda ciência” e sua “epistemologia”. Na verdade, e aqui sendo defensor do método pragmático, acredito que ao invés dessas generalizações, deveriam ser feitas análises a cada caso, empiricamente. Assim seria possível dizer quando a ciência está sendo utilizada para determinados interesses político e ideológicos (os quais combatemos, como o racismo, por exemplo). Mas me deixa dar um exemplo.

No livro Lugar de fala, a Djamila Ribeiro denuncia a ciência (e sua epistemologia) por ser “racista”, pois feita por pessoas brancas. No entanto, no mesmo livro, a autora usa dados estatísticos para reforçar seu argumento de que vivemos em uma realidade estruturalmente racista. Lembremos: estatística é um método de pesquisa que, inclusive, está por trás da classificação da sociologia como, de fato, uma ciência (ver O suicídio, livro de Durkheim que usa estatística para analisar socialmente o que leva pessoas a cometerem suicídio). Ou seja: com uma mão você ataca a “epistemologia racista”, com a outra você se vale dela para reforçar seu argumento. O que significa que, mesmo criticando, tal forma de conhecimento é útil, afinal.

Foi diante desse tipo situação que eu comecei a me questionar sobre os limites da crítica “pós- e decolonial”. No caso da Djamila, obviamente que ela não é uma racista! Então o uso que ela está fazendo da ciência “branca” não pode ser considerado racista. O mesmo vale para outras áreas. Dizer que, por exemplo, a biomedicina é “colonial” porque é feita por “brancos” e “europeus” é uma coisa até arriscada, pois ela esquece que essa mesma ciência está produzindo vacinas contra a Covid-19, a febre amarela... etc. O mesmo vale, no caso da minha pesquisa, para o vírus Zika. Existia uma maioria branca no laboratório que pesquisei, mas existiam negros também (brasileiras e um cabo-verdense). Isso não alterava em nada os famosos testes de PCR que eles e elas realizavam para identificar contaminação por vírus Zika em suas amostras.

Por outro lado, entender que essa área faz parte de um contexto mais amplo que, obviamente é ligado a fatores sociais, culturais e históricos não reduz a ciência a esses fatores. Aliás, e aqui levo ao limite meus argumentos sobre o debate sobre métodos e ciências diferentes, acredito que o trabalho das ciências sociais, inclusive da teoria crítica, é identificar essa realidade que “entra” e que “sai” do laboratório. Por exemplo: falei que a maioria das pessoas no laboratório que pesquisei eram brancas. Isso é um caso explícito de legado histórico racista. Por outro lado, a maioria dos e das cientistas eram mulheres. O que significa que, no quesito gênero (binário), o laboratório de entomologia tem uma representatividade maior de mulheres, incluindo nos cargos de liderança. Mas se continuarmos com nossa análise do que “entra”, ou quem entra, e o que “sai” do laboratório, podemos perguntar sobre representatividade indígena, sobre transgênero etc. O que resulta em um estudo de caso que aponta para alguns fatores sociais “por trás” dos fatos científicos que, inclusive, devem ser destacados caso se deseje pensar em questões éticas para além da “metodologia cientifica”, como o combate às desigualdades sociais.

Por fim, ao trazer minha experiência de pesquisa e meu repertório acadêmico da sociologia da ciência, tentei apontar para certos cuidados quando criticamos a Ciência. Há certos limites quanto ao alcance das críticas, mas também há pertinência nessas críticas. Porém, é preciso muito cuidado para não se tornar um tipo de “negacionista de esquerda”, pois se na nossa crítica tudo que for feito pela ciência “branca” não prestar, então não deveríamos usar estatística, nem deveríamos aceitar as vacinas “europeias”, por exemplo.


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