quarta-feira, 9 de outubro de 2019

Sobre epistemologia e ontologia (em Antropologia) - Virada Ontológica I



            Já existe literatura especializada em língua portuguesa, atualizada, para se compreender o que tem se chamado de “virada ontológica” na Antropologia durante as últimas décadas. Aqui, busco apenas introduzir o assunto.
            Segundo o antropólogo Roy Dilley (2010), James Frederick Ferrier () foi o “pai do termo “epistemologia” (epistemology) – e também agnoiology. Basicamente, epistemologia significa a ciência do conhecer e como conhecer (o que contrasta com seu oposto, a agnoiology, que seria uma teoria da ignorância).
            Podemos entender a epistemologia então como um “modo de conhecer” ou “o estudo dos modos de conhecer”. Noutra acepção, poderíamos pensar na epistemologia como a pergunta “como o conhecimento é possível?”. Por isso, não há “semelhança” com a palavra “ontologia”, a não ser pelo sufixo derivado do “logos” (como estudo de algo, como bio-logia, sócio-logia, antropo-logia etc.).
            O termo episteme, sem o sufixo, foi empregado por Michel Foucaul de As palavras e as coisas e A arqueologia do saber para compreender os diferentes modos de conhecer que se desenvolveram da escolástica medieval até o desenvolvimento da ciência moderna (e além...). Deixemo-lo falar:

[...] Por episteme entende-se, na verdade, o conjunto das relações que podem unir, em uma dada época, as práticas discursivas que dão lugar a figuras epistemológicas, a ciências, eventualmente a sistemas formalizados; o modo segundo o qual, em cada uma dessas formações discursivas, se situam e se realizam as passagens à epistemologização, à cientificidade, à formalização; a repartição desses limiares que podem coincidir, ser subordinados uns aos outros, ou estar defasados no tempo; as relações laterais que podem existir entre figuras epistemológicas ou ciências, na medida em que se prendam a práticas discursivas vizinhas mas distintas. A episteme não é uma forma de conhecimento, ou um tipo de racionalidade que, atravessando as ciências mais diversas, manifestaria a unidade soberana de um sujeito, de um espírito ou de uma época; é o conjunto das relações que podem ser descobertas, para uma época dada, entre as ciências, quando estas são analisadas no nível das regularidades discursivas. (2008, p. 214).

            “Práticas discursivas” que dão lugar a “figuras epistemológicas”. Lembrar que discurso para Foucault é mais amplo que “falar ou argumentar”, mas compreende um conjunto de práticas que produzem, por exemplo, efeitos de verdade. Assim, quando falamos em episteme, estamos falando de epistemologias que se desenvolvem local e historicamente. Antecipando uma grande contribuição da Antropologia, é com tal área que “descobrimos” que essas epistemologias são locais e situadas e, portanto, a Ciência Moderna é um modo de conhecer, com suas características, propriedades e convencionalismos próprios, distintos de outras epistemologias ou saberes. Ainda assim, é uma epistemologia – ou ao menos tentou ser uma, universal...
            Ontologia, por sua vez, remete a um logos do ser, sobre uma ciência ou estudo sobre o ser das “coisas”. Dito de outro modo: é um estudo que se pergunta sobre a natureza da realidade. Um exemplo pertinente pode ser extraído de um marxista húngaro, György Lukacs (). Em sua concepção geral, existiriam três esferas de realidade: uma inorgânica, outra orgânica e, por último, uma social. Vê-se que sua abordagem compreenderia, basicamente, matéria químico-física, matéria biológico-químico-física e, relações sociais entre as matérias mediadas pela mente humana. Seguindo sua explicação, durante o curso da evolução, ocorreram “saltos” do inorgânico para o orgânico e do deste para o social, permitindo o desenvolvimento da consciência humana e sua vida social.
            Mas o caso de Lukacs é só um exemplo de um brother que concebeu uma leitura ontológica para explicar a realidade das coisas. Na verdade, a ontologia é “apenas” um ramo da filosofia grega, clássica, originada ao menos desde Aristóteles. Em algum sentido, portanto, a ontologia é também metafísica, pois está se propondo ao estudo do “além”(meta) da “matéria” (física). É sobre o “ser das coisas” (ou dos entes, como dizia Heidegger de O ser e o tempo). Então esse tipo de abordagem está interessado em estudar a “natureza da realidade”, suas particularidades, características etc. Mas tal estudo, por sua vez, só é possível, digamos, dentro de um espaço-tempo (ou de uma cultura historicamente dada). Marx, por exemplo, é criticado neste sentido quando seu materialismo histórico parece estar fora do espaço-tempo, supostamente podendo explicar como a história “funciona” ou como ela “opera” suas transformações (como se ele tivesse descoberto os mecanismos “materiais” estruturantes e por trás das ações humanas).
            Se a epistemologia científica alcançou seu status pleno (limiar de cientificidade), então para uma área proto- ou pré-científica se tornar científica, ela tem que “ser aceita” “pela” episteme (não, não é uma pessoa ou instituto, são “as práticas discursivas de um momento particular que sancionam práticas relativas a diferentes epistemologias). Por exemplo: para Sociologia e Antropologia se tornarem ciência, elas precisaram compartilhar elementos que sustentam a epistemologia sancionada, a Ciência. Como bem sabemos, Sociologia e, principalmente, a Antropologia, vem lutando durante os últimos dois séculos para serem reconhecidas como Ciência.
           
            Se a epistemologia é esse estudo das possibilidades e como conhecer, tendo a Ciência o reconhecimento convencionalizado como mais “eficiente” e “eficaz”, e a ontologia ser um estudo “metafísico” sobre a natureza da realidade, então por que na Antropologia nos confundimos tanto? Por que a “virada ontológica” assusta tanta gente? Por que largar a “cultura” e ficar com a “ontologia”?
            Uma dica que me pareceu útil – depois de assistir uma aula sobre o assunto nesta semana, com ênfase em Tim Ingold e Perig Pitrou – foi a seguinte: cultura está para representação assim como a ontologia está para a ação/performance/construção. Vai ficar claro...
            Quando a Antropologia se propôs a ser uma ciência, ela precisou compartilhar da epistemologia comum às práticas científicas. Com sua epistemologia num livro de bolso, nossa querida Antropologia se deparou com “nativos” de outras terras. Assim, conforme estudava essas terras e seus nativos, ela percebia que eles tinham uma “cultura/representação” diferente da dela própria. Então caberia à Antropologia interpretar essas culturas/representações e explicar as razões que faziam com que esses “estranhos” nativos pensassem e agissem como agiam (irracionalmente). Com isso, a epistemologia científica estaria, como queria o positivismo francês de August Comte, num grau superior aos dos “primitivos e selvagens nativos”. Estes estariam presos a crenças, mitos e, no máximo, religiões (esse pensamento etnocêntrico e arrogante é invocado toda vez que um ateu “blasfema” contra a religião de alguém – sim, você está sendo positivista com sua crença científica!).
            Mas com o chamado “movimento” da “virada antropológica” pós anos 1980, nossa querida amiga passava por uma “crise de representatividade”, pois percebera que a “cultura/representação” era Uma versão epistemológica da realidade, e existiam tantas outras quanto existiriam outros povos e terras “estranhas”. Em sua crise existencial, ela se perdeu, concordamos, mas com a ontologia sendo extraída da filosofia, e focando-se no estudo das práticas e da ação, nossa desolada amiga começou a ter esperança novamente. Ela percebeu que se você substitui “cultura/representação” por “ontologia/performance/construção”; e explicação/interpretação por descrição, então você pode passar a observar a construção da realidade que é levada a cabo por cada “nativo/pessoa-povo” que era tido como “selvagem/primitivo/irracional”.
            É neste sentido geral, sobre ontologia, que são observadas coisas como “agência não humana”. Ou seja: se percebemos que não é mais a representação cultural de um povo que deve ser explicada para “nosso povo” em nossas monografias e artigos, então podemos substituir esse comportamento pela observação, aprendizado e descrição de como um povo constitui ou produz sua realidade, e como essa realidade gera efeitos no mundo-local em que esse povo vive. O engano ocorre quando tentamos observar a ontologia como uma representação de um povo. Aí sim, voltamos “sem querer” à cultura/representação, restaurando toda a estrutura anterior da Antropologia quando tentamos ir além dela. Daí algumas críticas surgirem dizendo que “ontologia” é só mais outro nome para “cultura”.  
                       

Nos próximos textos tentarei falar sobre como essa diferença entre cultura e ontologia incide sobre o conceito de gênero. Também pretendo falar sobre o que aconteceria se a ontologia fosse abordada pragmaticamente (não que ela já não esteja caminhando dessa forma, mas digo radicalmente).            

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