Já
existe literatura especializada em língua portuguesa, atualizada, para se
compreender o que tem se chamado de “virada ontológica” na Antropologia durante
as últimas décadas. Aqui, busco apenas introduzir o assunto.
Segundo
o antropólogo Roy Dilley (2010), James Frederick Ferrier () foi o “pai do termo
“epistemologia” (epistemology) – e também agnoiology.
Basicamente, epistemologia significa a ciência
do conhecer e como conhecer (o que contrasta com seu oposto, a agnoiology, que seria uma teoria da
ignorância).
Podemos
entender a epistemologia então como um “modo de conhecer” ou “o estudo dos
modos de conhecer”. Noutra acepção, poderíamos pensar na epistemologia como a
pergunta “como o conhecimento é possível?”. Por isso, não há “semelhança” com a
palavra “ontologia”, a não ser pelo sufixo derivado do “logos” (como estudo de
algo, como bio-logia, sócio-logia, antropo-logia etc.).
O
termo episteme, sem o sufixo, foi empregado por Michel Foucaul de As palavras e as coisas e A arqueologia do saber para compreender
os diferentes modos de conhecer que se desenvolveram da escolástica medieval
até o desenvolvimento da ciência moderna (e além...). Deixemo-lo falar:
[...] Por episteme entende-se, na verdade, o conjunto das
relações que podem unir, em uma dada época, as práticas discursivas que dão
lugar a figuras epistemológicas, a ciências, eventualmente a sistemas
formalizados; o modo segundo o qual, em cada uma dessas formações discursivas,
se situam e se realizam as passagens à epistemologização, à cientificidade, à
formalização; a repartição desses limiares que podem coincidir, ser
subordinados uns aos outros, ou estar defasados no tempo; as relações laterais
que podem existir entre figuras epistemológicas ou ciências, na medida em que
se prendam a práticas discursivas vizinhas mas distintas. A episteme não é uma
forma de conhecimento, ou um tipo de racionalidade que, atravessando as
ciências mais diversas, manifestaria a unidade soberana de um sujeito, de um
espírito ou de uma época; é o conjunto das relações que podem ser descobertas,
para uma época dada, entre as ciências, quando estas são analisadas no nível
das regularidades discursivas. (2008, p. 214).
“Práticas
discursivas” que dão lugar a “figuras epistemológicas”. Lembrar que discurso
para Foucault é mais amplo que “falar ou argumentar”, mas compreende um
conjunto de práticas que produzem, por exemplo, efeitos de verdade. Assim,
quando falamos em episteme, estamos falando de epistemologias que se
desenvolvem local e historicamente. Antecipando uma grande contribuição da
Antropologia, é com tal área que “descobrimos” que essas epistemologias são
locais e situadas e, portanto, a Ciência Moderna é um modo de conhecer, com
suas características, propriedades e convencionalismos próprios, distintos de
outras epistemologias ou saberes. Ainda assim, é uma epistemologia – ou ao
menos tentou ser uma, universal...
Ontologia,
por sua vez, remete a um logos do
ser, sobre uma ciência ou estudo sobre o ser das “coisas”. Dito de outro modo:
é um estudo que se pergunta sobre a natureza da realidade. Um exemplo pertinente
pode ser extraído de um marxista húngaro, György Lukacs (). Em sua concepção
geral, existiriam três esferas de realidade: uma inorgânica, outra orgânica e, por
último, uma social. Vê-se que sua abordagem compreenderia, basicamente, matéria
químico-física, matéria biológico-químico-física e, relações sociais entre as
matérias mediadas pela mente humana. Seguindo sua explicação, durante o curso
da evolução, ocorreram “saltos” do inorgânico para o orgânico e do deste para o
social, permitindo o desenvolvimento da consciência humana e sua vida social.
Mas
o caso de Lukacs é só um exemplo de um brother
que concebeu uma leitura ontológica para explicar a realidade das coisas. Na
verdade, a ontologia é “apenas” um ramo da filosofia grega, clássica, originada
ao menos desde Aristóteles. Em algum sentido, portanto, a ontologia é também metafísica, pois está se propondo ao
estudo do “além”(meta) da “matéria” (física). É sobre o “ser das coisas” (ou
dos entes, como dizia Heidegger de O ser
e o tempo). Então esse tipo de abordagem está interessado em estudar a “natureza
da realidade”, suas particularidades, características etc. Mas tal estudo, por
sua vez, só é possível, digamos, dentro de um espaço-tempo (ou de uma cultura
historicamente dada). Marx, por exemplo, é criticado neste sentido quando seu
materialismo histórico parece estar fora do espaço-tempo, supostamente podendo explicar
como a história “funciona” ou como ela “opera” suas transformações (como se ele
tivesse descoberto os mecanismos “materiais” estruturantes e por trás das ações
humanas).
Se
a epistemologia científica alcançou seu status pleno (limiar de
cientificidade), então para uma área proto- ou pré-científica se tornar
científica, ela tem que “ser aceita” “pela” episteme (não, não é uma pessoa ou
instituto, são “as práticas discursivas de um momento particular que sancionam
práticas relativas a diferentes epistemologias). Por exemplo: para Sociologia e
Antropologia se tornarem ciência, elas precisaram compartilhar elementos que sustentam
a epistemologia sancionada, a Ciência. Como bem sabemos, Sociologia e, principalmente,
a Antropologia, vem lutando durante os últimos dois séculos para serem
reconhecidas como Ciência.
Se
a epistemologia é esse estudo das possibilidades e como conhecer, tendo a
Ciência o reconhecimento convencionalizado como mais “eficiente” e “eficaz”, e
a ontologia ser um estudo “metafísico” sobre a natureza da realidade, então por
que na Antropologia nos confundimos tanto? Por que a “virada ontológica”
assusta tanta gente? Por que largar a “cultura” e ficar com a “ontologia”?
Uma
dica que me pareceu útil – depois de assistir uma aula sobre o assunto nesta
semana, com ênfase em Tim Ingold e Perig Pitrou – foi a seguinte: cultura está
para representação assim como a ontologia está para a ação/performance/construção.
Vai ficar claro...
Quando
a Antropologia se propôs a ser uma ciência, ela precisou compartilhar da
epistemologia comum às práticas científicas. Com sua epistemologia num livro de
bolso, nossa querida Antropologia se deparou com “nativos” de outras terras.
Assim, conforme estudava essas terras e seus nativos, ela percebia que eles
tinham uma “cultura/representação” diferente da dela própria. Então caberia à
Antropologia interpretar essas culturas/representações e explicar as razões que
faziam com que esses “estranhos” nativos pensassem e agissem como agiam (irracionalmente).
Com isso, a epistemologia científica estaria, como queria o positivismo francês
de August Comte, num grau superior aos dos “primitivos e selvagens nativos”. Estes estariam presos a crenças, mitos e, no máximo, religiões (esse pensamento etnocêntrico e
arrogante é invocado toda vez que um ateu “blasfema” contra a religião de
alguém – sim, você está sendo positivista com sua crença científica!).
Mas
com o chamado “movimento” da “virada antropológica” pós anos 1980, nossa
querida amiga passava por uma “crise de representatividade”, pois percebera que
a “cultura/representação” era Uma versão epistemológica da realidade, e
existiam tantas outras quanto existiriam outros povos e terras “estranhas”. Em
sua crise existencial, ela se perdeu, concordamos, mas com a ontologia sendo
extraída da filosofia, e focando-se no estudo das práticas e da ação, nossa
desolada amiga começou a ter esperança novamente. Ela percebeu que se você
substitui “cultura/representação” por “ontologia/performance/construção”; e
explicação/interpretação por descrição, então você pode passar a observar a
construção da realidade que é levada a cabo por cada “nativo/pessoa-povo” que era
tido como “selvagem/primitivo/irracional”.
É
neste sentido geral, sobre ontologia, que são observadas coisas como “agência
não humana”. Ou seja: se percebemos que não é mais a representação cultural de
um povo que deve ser explicada para “nosso povo” em nossas monografias e
artigos, então podemos substituir esse comportamento pela observação,
aprendizado e descrição de como um povo constitui ou produz sua realidade, e
como essa realidade gera efeitos no mundo-local em que esse povo vive. O engano
ocorre quando tentamos observar a ontologia como uma representação de um povo.
Aí sim, voltamos “sem querer” à cultura/representação, restaurando toda a
estrutura anterior da Antropologia quando tentamos ir além dela. Daí algumas
críticas surgirem dizendo que “ontologia” é só mais outro nome para “cultura”.
Nos próximos textos tentarei falar sobre como essa diferença entre cultura e ontologia incide sobre o conceito de gênero. Também pretendo falar sobre o que aconteceria se a ontologia fosse abordada pragmaticamente (não que ela já não esteja caminhando dessa forma, mas digo radicalmente).
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