segunda-feira, 14 de outubro de 2019

Ontologia e GÊNERO - Virada Ontológica II


Sexo/biologia a priori
            Quando um feto está sendo gerado, precisamos esperar algumas semanas pra saber seu sexo. Certo? Pois bem, para pensar em sexo (macho/fêmea) de um feto, devemos esperar exames de ultrassom pra saber. Certo? Isso é natural, né? Ficamos com a afirmativa: sim, é natural.
           
Gênero/cultura a priori
            Quando um feto é gerado, tornando-se uma criança, um bebê ou uma bebê, sabemos de antemão, que será um “menino” ou uma “menina”, já que fizemos ultrassom ou, como no passado, a criança nascia com um pênis ou vagina. Mas desde o desenvolvimento das ciências humanas e sociais, descobrimos que “não se nasce mulher, tornamo-nos mulheres” (ou “homens”).
            Com essa interpretação, começamos a entender que não bastava nascer com um “sexo biológico”, a “cultura” ou a socialização é que construía ser “mulher” ou “homem”. Então tá' certo: você pode nascer com um pênis ou com uma vagina, mas como você se tornará isso ou aquilo varia de acordo com a cultura na qual você nasceu. Assim, por exemplo, ser mulher ou homem em Recife é diferente de ser indianos, islâmicos, xucurus etc. Resultado: ser homem ou mulher varia de lugar para lugar; de época para época.
            Neste sentido, a cultura é que “constrói” sobre nossos corpos o que significa ser homem ou mulher. Mas significar isso ou aquilo pressupõe que nosso sexo é algo inquestionável. E seria diferente? Pois bem. Então vamos pensar que “gênero” é apenas um conceito.
            Quando falamos em gênero estamos falando numa “construção cultural”, numa construção “social”. O que significa dizer, como já dito, que cada sociedade ou cultura tem um jeito particular de lidar com o nascimento de corpos com pênis e com vaginas. Então feminilidade e masculinidade vão variar conforme “visitamos” diferentes sociedades. Por exemplo, se o futebol é uma coisa bastante associada a "cultura masculina", quando visitamos os Xucurú de Pesqueira, vemos que são as mulheres de lá que “dominam” o futebol (essa notícia saiu numa matéria do Globo Esporte).
            Em certo sentido, estamos acostumados/as a entender a “cultura” como variável, não o sexo biológico. Até aí tudo bem?
              
Ontologia/performance
            Nas últimas décadas do século XX, as ciências sociais e humanas começaram a se perguntar sobre em que medida nossa visão de cultura era “relativa”. Isto é: se te pergunto como é “ser mulher” ou como é “ser homem”, como você responderia? Conforme viajamos para outros lugares, os comportamentos e hábitos masculinos e femininos variam. Assim, parece que confirmávamos que o “gênero” era uma coisa de cultura – como se fosse os comportamentos e hábitos variados em cada lugar e tempo, conforme gênero em questão (masculino e feminino). Isso nos fazia perceber que existiriam diferentes formas “culturais” de ser homem ou mulher. Porém, surgiu um “movimento” que começou a pensar assim, “ora, se o gênero é cultura, porque nossa concepção sobre sexo não é?”. Por acaso o significado que damos para corpos com pênis e vagina é inquestionável, ou eles são resultado de nossa, por que não, construção cultural? Em outras palavras: se gênero é uma construção cultural, por que nossa milenar concepção de “sexo” também não seria? Acaso não são todas essas interpretações, produtoras de significados e sentidos que definem como homens e mulheres deveriam ser?
            Cultura/gênero é produto das ciências e movimentos sociais. Mais ainda, é algo recente. Antes, por exemplo, no início do século XX, no Brasil, os comportamentos não eram analisados com o termo “gênero”, mas com o termo “sexo” (masculino/feminino). Neste contexto, determinados comportamentos eram associados ao masculino, outros ao feminino; assim como acontecia com o termo “raça”, que associava coisas “boas” aos brancos e coisas “ruins” aos negros. O que estava aceito, por outro lado, era que da biologia, viria alguma influência sobre o comportamento de homens e mulheres, brancos e negros. O que resulta numa questão: se as relações sociais ou culturais se baseavam na biologia, existiria alguma diferença entre “sexo” (biologia) e “gênero” (cultura)?
            Com esse raciocínio, podemos nos perguntar, afinal, qual a diferença de lidar com sexo biológico e gênero cultural? Se ontologia é sobre a natureza do ser, da natureza da realidade, então gênero talvez sempre tenha sido sexo e vice versa*, pois seria a construção do sentido e significados sobre corpos que definiriam como entendemos o que uma coisa (macho/homem) é e o que é outra (fêmea/mulher)**.
            Num exercício prático, cultura está para representação daquilo que “consideramos” ser construído, como o gênero feminino e o masculino a partir de dados biológicos; enquanto a ontologia está para como corpos podem ser diferenciados e como eles produzem uma realidade a partir de suas práticas. Neste sentido, com ontologia podemos observar as construções (discursivas) que geram efeitos sobre o que entendemos por masculino e feminino, independente se falamos de sexo ou de gênero, pois ambos termos produzem práticas observáveis.
            O “truque” é “como” ou “pra onde olhar”. Quando usamos cultura, é como se olhássemos para representação/imagem que figura algo (homem, mulher); quando usamos ontologia, olhamos pra junção das práticas de pessoas produzindo seu modo de ser, independente das figuras que pressupomos. Assim, ser homem ou ser mulher é algo que precisa ser descrito, não algo explicado a partir de nosso próprio entendimento do que seja “gênero”, por exemplo. Sempre que uma pesquisadora mobiliza o conceito de gênero para realizar uma pesquisa, produzir um artigo etc., ela está mobilizando sua própria realidade para dar sentido à realidade por ela observada e, por conseguinte, para os atores ou informantes que ela estuda (tenha ou não consciência disso).
           

O gênero na imagem. GB 2019

* A socióloga Cynthia Lins Hamlin descreve como o gênero “coloniza” o sexo na obra de Judith Butler (Cf. Corpos-Texto: a Colonização do Sexo pelo Gênero na obra de Judith Butler.
** Faça um teste: tente imaginar um corpo, um feto, sem conceber uma identidade masculina ou feminina para ele/a. Agora se pergunte se em nossa “cultura” e sociedade, se esse corpo é ou não associado a uma identidade desde o momento em que passa a existir. É um “sujeito de direito”; é “menino” ou “menina”; é “filho de alguém”; é “parente de outrem”; é “estatística de natalidade” etc. Para Butler não existe algo que seja pré-linguístico, anterior as práticas discursivas.

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