Sexo/biologia a priori
Quando
um feto está sendo gerado, precisamos esperar algumas semanas pra saber seu
sexo. Certo? Pois bem, para pensar em sexo (macho/fêmea) de um feto, devemos
esperar exames de ultrassom pra saber. Certo? Isso é natural, né? Ficamos com a
afirmativa: sim, é natural.
Gênero/cultura a priori
Quando
um feto é gerado, tornando-se uma criança, um bebê ou uma bebê, sabemos de antemão,
que será um “menino” ou uma “menina”, já que fizemos ultrassom ou, como no
passado, a criança nascia com um pênis ou vagina. Mas desde o desenvolvimento
das ciências humanas e sociais, descobrimos que “não se nasce mulher,
tornamo-nos mulheres” (ou “homens”).
Com
essa interpretação, começamos a entender que não bastava nascer com um “sexo
biológico”, a “cultura” ou a socialização é que construía ser “mulher” ou “homem”.
Então tá' certo: você pode nascer com um pênis ou com uma vagina, mas como você
se tornará isso ou aquilo varia de acordo com a cultura na qual você nasceu.
Assim, por exemplo, ser mulher ou homem em Recife é diferente de ser indianos, islâmicos, xucurus etc. Resultado: ser homem ou mulher varia de
lugar para lugar; de época para época.
Neste
sentido, a cultura é que “constrói” sobre nossos corpos o que significa ser
homem ou mulher. Mas significar isso ou aquilo pressupõe que nosso sexo é algo
inquestionável. E seria diferente? Pois bem. Então vamos pensar que “gênero” é
apenas um conceito.
Quando
falamos em gênero estamos falando numa “construção cultural”, numa construção “social”.
O que significa dizer, como já dito, que cada sociedade ou cultura tem um jeito
particular de lidar com o nascimento de corpos com pênis e com vaginas. Então
feminilidade e masculinidade vão variar conforme “visitamos” diferentes
sociedades. Por exemplo, se o futebol é uma coisa bastante associada a "cultura masculina", quando
visitamos os Xucurú de Pesqueira, vemos que são as mulheres de lá que “dominam”
o futebol (essa notícia saiu numa matéria do Globo Esporte).
Em
certo sentido, estamos acostumados/as a entender a “cultura” como variável, não
o sexo biológico. Até aí tudo bem?
Ontologia/performance
Nas
últimas décadas do século XX, as ciências sociais e humanas começaram a se
perguntar sobre em que medida nossa visão de cultura era “relativa”. Isto é: se
te pergunto como é “ser mulher” ou como é “ser homem”, como você responderia? Conforme viajamos para outros lugares, os comportamentos e hábitos
masculinos e femininos variam. Assim, parece que confirmávamos que o “gênero”
era uma coisa de cultura – como se fosse os comportamentos e hábitos variados
em cada lugar e tempo, conforme gênero em questão (masculino e feminino). Isso
nos fazia perceber que existiriam diferentes formas “culturais” de ser homem ou
mulher. Porém, surgiu um “movimento” que começou a pensar assim, “ora, se o
gênero é cultura, porque nossa concepção sobre sexo não é?”. Por acaso o
significado que damos para corpos com pênis e vagina é inquestionável, ou eles
são resultado de nossa, por que não, construção cultural? Em outras palavras:
se gênero é uma construção cultural, por que nossa milenar concepção de “sexo”
também não seria? Acaso não são todas essas interpretações, produtoras de
significados e sentidos que definem como homens e mulheres deveriam ser?
Cultura/gênero
é produto das ciências e movimentos sociais. Mais ainda, é algo recente. Antes,
por exemplo, no início do século XX, no Brasil, os comportamentos não eram
analisados com o termo “gênero”, mas com o termo “sexo” (masculino/feminino).
Neste contexto, determinados comportamentos eram associados ao masculino,
outros ao feminino; assim como acontecia com o termo “raça”, que associava
coisas “boas” aos brancos e coisas “ruins” aos negros. O que estava aceito, por
outro lado, era que da biologia, viria alguma influência sobre o comportamento
de homens e mulheres, brancos e negros. O que resulta numa questão: se as
relações sociais ou culturais se baseavam na biologia, existiria alguma
diferença entre “sexo” (biologia) e “gênero” (cultura)?
Com
esse raciocínio, podemos nos perguntar, afinal, qual a diferença de lidar com
sexo biológico e gênero cultural? Se ontologia é sobre a natureza do ser, da
natureza da realidade, então gênero talvez sempre tenha sido sexo e vice versa*,
pois seria a construção do sentido e significados sobre corpos que definiriam
como entendemos o que uma coisa (macho/homem) é e o que é outra (fêmea/mulher)**.
Num
exercício prático, cultura está para representação daquilo que “consideramos”
ser construído, como o gênero feminino e o masculino a partir de dados
biológicos; enquanto a ontologia está para como corpos podem ser diferenciados
e como eles produzem uma realidade a partir de suas práticas. Neste sentido,
com ontologia podemos observar as construções (discursivas) que geram efeitos
sobre o que entendemos por masculino e feminino, independente se falamos de
sexo ou de gênero, pois ambos termos produzem práticas observáveis.
O
“truque” é “como” ou “pra onde olhar”. Quando usamos cultura, é como se
olhássemos para representação/imagem que figura algo (homem, mulher); quando usamos
ontologia, olhamos pra junção das práticas de pessoas produzindo seu modo de
ser, independente das figuras que pressupomos. Assim, ser homem ou ser mulher é
algo que precisa ser descrito, não algo explicado a partir de nosso próprio
entendimento do que seja “gênero”, por exemplo. Sempre que uma pesquisadora
mobiliza o conceito de gênero para realizar uma pesquisa, produzir um artigo
etc., ela está mobilizando sua própria realidade para dar sentido à realidade
por ela observada e, por conseguinte, para os atores ou informantes que ela
estuda (tenha ou não consciência disso).
O gênero na imagem. GB 2019 |
* A socióloga Cynthia Lins Hamlin
descreve como o gênero “coloniza” o sexo na obra de Judith Butler (Cf. Corpos-Texto:
a Colonização do Sexo pelo Gênero na obra de Judith Butler.
** Faça um teste: tente imaginar
um corpo, um feto, sem conceber uma identidade masculina ou feminina para
ele/a. Agora se pergunte se em nossa “cultura” e sociedade, se esse corpo é ou
não associado a uma identidade desde o momento em que passa a existir. É um “sujeito
de direito”; é “menino” ou “menina”; é “filho de alguém”; é “parente de outrem”;
é “estatística de natalidade” etc. Para Butler não existe algo que seja pré-linguístico,
anterior as práticas discursivas.
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