quinta-feira, 24 de outubro de 2019

Fora de Contexto - texto apresentado em uma aula de Teoria e História da Antropologia na UFPE

Marilyn Strathern*


Preâmbulo
            Originalmente o ensaio ora analisado foi apresentado na famosa palestra Frazer, instituída inicialmente em 1922, em Universidades Britânicas. (p.9). Na época de sua apresentação, Strathern afirma que o pós-moderno estava sendo gestado no período de Malinowski, em oposição a Frazer. A fase de Frazer, por sua vez, era o moderno que estava a ser gestado (p. 10).

O que interessa a Strathern, nesse contexto, é demonstrar que "a redação não se exime das relações extralinguísticas e, portanto, constitui uma forma propriamente política de expressão do sujeito da antropologia..." (p. 11).

Ainda na apresentação (15) se fala da noção de jogo livre - o jogo em que os contextos são misturados como se não houvesse diferença entre eles; e jogo estruturado - cujo poder reflexivo se encontra precisamente na capacidade de diferenciar contextos. O jogo livre só existiria retoricamente; o segundo ocorre a partir de uma escrita comum à época, década de 1980, na qual a antropologia vivia um momento celebrado por alguns, criticado por outros, como de reflexividade antropológica ou de ênfase sobre o fazer antropológico em geral.
Tal reflexividade, e para antecipar o primeiro eixo analítico, é preciso dizer que a escrita e a relação entre autor/escritor, nativo/a e leitor/a vêm para o primeiro plano, sendo, portanto, a preocupação central de Strathern; o segundo eixo, que fica mais claro a partir da leitura do pósfacil de Renato Sztutman (USP), é o deslocamento da representação/cultural em Strathern, para uma abordagem ontológica. Sztutman define a virada ontológica da seguinte maneira, e a partir de Viveiros de Castro e Márcio Goldman: [...] a criação de novos conceitos a partir de etnografias interessadas em descrever outros modos de descrição do mundo. (p. 149)

I – Início
            Strathern inicia sua apresentação com uma interessante provocação: em que medida o propósito da antropologia pós-moderna de dar voz ao "outro" não serve antes a sua autolegitimação?

Anacronismo
            Falando sobre James Frazer, Strathern enfatiza o "anacronismo" presente em imputar visões de um agora tornado visível sobre um passado que se entendia em seus próprios termos. Aqui podemos sugerir que se trata da modalidade de jogo livre. Ou seja: os contextos do nosso presente são misturados com os do passado. Para a autora, isso é que nos dá a sensação de que "houve uma história". (p. 34).

Escrita e contextos
A autora levanta uma questão a cerca da legibilidade de Frazer em um momento e sua inelegibilidade em outro. Vejamos:

"A questão interessante é como antropólogos modernos [Malinoswki e companhia] conseguiram construir Frazer como uma figura que não cabia no tempo deles e como de fato a escrita, que para tantos outros era eminentemente legível, para eles se tornou ilegível. (p. 35).

            Para Strathern, Malinowski foi fundamental para esse efeito gerado sobre a obra de Frazer. Javier, Strather diz que a revolução promovida por Malinowski foi de: 1) substituir a antropologia de gabinete pela experiência de campo; 2) substituir, nos estudos da religião e da magia, as crenças em prol da ação social (o rito); 3) substituir falsas sequências evolucionárias por uma compreensão da sociedade contemporânea (sincronismo). Mas vejamos ainda como o eixo que chamamos de escrita, aparece nessa leitura: "Embora ainda haja algum debate mais ou menos frequente em torno dos argumentos do próprio Frazer, o que se condena é seu estilo [de escrita]" (p. 38).


Escrita e método
            Strathern diz que Malinoswki procedeu com uma escrita diferente da de Frazer. Ela fala do impacto do escritor sobre a imaginação, no relacionamento entre escritor, leitor e assunto/campo. Aqui as relações se dão de modo interno ao texto, no modo como o escritor arranja suas ideias. Com isso, o método comparativo mudou... (p. 42).

Ficções persuasivas
            Strathern diz que "Uma vez que qualquer obra escrita busca um certo efeito, isso só pode ser uma produção literária" (p. 42). Desse modo, a escrita de Frazer impactou seus leitores devido a sua familiaridade com eles. Diferente do que viria a acontecer com a Antropologia posterior (p. 47). Isso demonstra que a escrita em Frazer vinculava autor e leitores. Seria apenas com o modernismo que surgiria a ideia de distância entre leitores e autores. Ou seja: do gabinete, Frazer selecionava material para escrever para seus leitores. Porém, quando a ideia de campo surge, com ela vem a sensação de deslocamento: o antropólogo agora sai do ambiente familiar e se dirige para um lugar distante, inserindo na relação entre autor e leitor, os informantes e seu contexto. Com isso, "O trabalho de campo tornou um novo tipo de ficção persuasiva possível" (p. 52).
            Dá-se ênfase a Malinowski e sua colocação do "outro-objeto" dentro da "moldura" de seu "contexto", afastando o primitivo do historicismo etnocêntrico. O etnocentrismo torna-se recurso para a escrita, pois descentra o eu, ou tenta, colocando pragmaticamente o entendimento observado em seu contexto. Diferente de Frazer, que os extraía de seus contextos para poder realizar comparações entre culturas e, assim, “as colocaria em degraus de evolução diferentes” (p. 54).
            Notar a ênfase recorrente de Strathern na escrita, em como Malinowski cria um texto que separa o nós e o eles e, assim, articula um texto em que utiliza modelos para traduzir o sentido ou senso comum do outro e os contrasta com o nosso sem, contudo, hierarquizá-los. Desse modo, não se fala apenas entre nós e eles, etnógrafo e campo, mas entre ambos e o leitor. Portanto, caberia ao etnógrafo criar textualmente, escrever, essa relação. Mais tarde, será justamente essa escrita sobre o outro que será denominada de autoridade etnográfica (ver nota 47, p. 66/67). Já Frazer, antes, estabelecia uma autoridade com referência a uma moldura extrínseca aos nativos - no sentido de história que ele e seus leitores compartilhavam (p. 61).


Os jogos e a escrita
            Diz que se poderia de modo pós-moderno, aprovar Frazer ao retirá-lo do seu contexto. Isso ocorre porque o leitor poderia interpretar o texto etnográfico ao seu bel prazer, sem os contextos (jogo livre). Caso queiramos embaralhar contextos, então teríamos um guia histórico no próprio Frazer (p. 71).
            Em suma: Frazer pode ser um pré-cursor do pós-modernismo, mas não um pós-moderno tal como se poderia pensar. Isso devido à sua escrita, claramente não reflexiva. Já Malinowski, ao falar de etnocentrismo e contextos deslocados, utiliza isso não apenas como uma crítica, argumento, mas como uma emolduração que deveria ser substituída metodologicamente por uma escrita sobre os informantes lidos em seus contextos e, claro, sustentada pela autoridade do antropólogo que carrega a tradução entre as culturas ao deslocar o contexto do campo para os leitores.
A antropologia pós-moderna, então, ao brincar, jogar com contextos e múltiplas vozes, em alguma medida não faz algo tão distante do que o próprio Frazer o fez no passado. A questão é que no contexto pós-moderno, existe a relação com o leitor e o posicionamento do etnógrafo como autor explicita e reflexiamente, além de que o texto se torna também polifônico em sua relação com os informantes, que deixam de ser meros objetos da antropologia.

Parece que Frazer "fazia", sem perceber, o jogo de contextos, levando em conta, todavia, apenas sua "moldura"; não a dos informantes, nem a dos leitores, apenas aquela comum a ele e leitores médios.

Parte II – Em contexto

            Após os comentários ao capítulo escrito por Strathern, ela inicia sua réplica se dirigindo claramente ao Javier, que a atacou de forma mais dura. Diz Strathern: "talvez o que salve a não ficção (por definição, nunca ‘a coisa real’) da transcendência sejam os próprios limites em sua capacidade de estabilização" (p. 123).
            Esta frase beira o esoterismo. Mas vejamos: primeiro ‘não-ficção’ é uma definição, uma escolha, um sentido dado ao invés de outro, a saber, ‘à coisa real’. Segundo: ‘não-ficção’, pensado então como análogo à ‘coisa real’ seria salva da transcendência devido aos limites na capacidade de estabilização. Em outras palavras: conseguimos estabilizar determinados sentidos da realidade de modo mais duradouro do que outros. Parece que podemos responder certas coisas de uma maneira quase intuitiva; já outras, não. Isso nos dá a impressão de que existe uma realidade além de nossas ficções. Anteriormente, Strathern usou esse tipo de reflexão para falar sobre a nossa impressão de que “existe uma história”. Portanto, não se trata de uma coisa diferente.
            Lembremos: os eixos são a escrita e ontologia. Javier “provocou” Strathern, preocupando-se com a verdade e, por conseguinte, com a separação da ficção da ciência; ela o respondeu: "verdade sobre o quê?". Nesse sentido, ela diz que o que importava para ela, diferente de uma busca pela verdade, era outra coisa, a saber: “"a forma pela qual ideias são comunicadas e [qual seria] seu decorrente efeito para a estruturação das relações interpessoais" (p. 124).
            A escrita, portanto, se produz como um efeito de realidade, ou gerando efeitos sobre a realidade. Tal efeito se dá em uma relação. Neste caso, Strathern está se referindo à escrita etnográfica como produtora de uma realidade. Eis sua divergência com Jarvier: enquanto ele reivindica uma verdade extra-discurso, apartada da linguagem, do signo e, finalmente, da ficção; Strathern está dizendo que a escrita gera um efeito de verdade em uma comunicação que, claro, só pode ocorrer numa relação. Não está em questão o estatuto de verdade, mas a descrição de uma realidade enquanto, por ser literária, não deixaria de ser uma ficção persuasiva.
            Strathern prossegue. Ela menciona E. Tonkien, dizendo que quando a autora fala em ideologia e política, por exemplo, contrastando a relação com ficção e contextos, ela muda sua "moldura" para uma "semântica" que considera algo como ficção, externalizando uma coisa em relação à outra. Isso, supomos, significa dizer que o próprio ato de Tonkien opera uma distinção que privilegia um "texto" (político-ideológico) e, portanto, parece se esquecer de estar inserida na escrita. Em outras palavras: tal como a verdade em Jarvier, Tonkien traz elementos externos à ficção como se eles não constituíssem uma realidade agenciável e agenciada pela própria escrita da autora.
            Strathern diz que Tyler e Marcus a descontextualizam. Prossegue dizendo que eles a questionam por "acreditar" no que seria moderno e pós-moderno, mas ao fazê-lo, acabam entrando numa discussão que insere uma visão teórica sobre se, de fato, "a" modernidade e "a" pós-modernidade seriam o que realmente, de fato, são. Em outras palavras: Tyler e Marcus querem uma história certa. Não fazem a inversão que ela fez com Malinowski e Frazer (como se o primeiro fosse o precursor de um certo Frazer – aquele que poderia ser a fonte do jogo livre, pós-moderno). Ela diz que eles alegam que todo texto possui uma autorreferência (selvagem/civilizado). Porém, ela diz que uma inversão particular e concreta pode não ser autorreferente (p. 127). Para Strathern, essa particularidade cria um contexto. Isso seria possível porque “estaríamos de fora”: por exemplo, sua inversão de Malinowski e Frazer (moderno, pós-moderno) pode ser visto como um jogo livre; mas ela ao mesmo tempo produz essa particularidade num jogo estruturado, produzindo um contexto a partir da reflexividade sobre sua escrita. Algo que não existia do mesmo modo, se é que existia, com os dois antropólogos mencionados.

Conclusão
            Falamos que Fora de contexto é posfaciado por Renato Sztutman. Ele sintetiza o texto de Strathern da seguinte maneira: "o que chamamos de teoria deixaria o campo da transcendência, e a relação entre esta e a etnografia, entre o fazer da antropologia e sua história ou epistemologia, poderia se renovar” (p. 143). Com isso, ele associa Strathern à virada ontológica (p. 149).
            Como dissemos no início deste seminário, Strathern coloca em primeiro plano o papel da escrita. Ao fazê-lo, ela afirma que se a escrita antropológica é uma forma de escrita literária, então ela se torna uma ficção persuasiva. O segundo eixo, que pode ser associado à ideia de jogo estruturado, na qual a reflexividade do fazer antropológico se torna uma preocupação para a prática antropológica, tem em vista que o texto, um artefato construído pela relação entre etnógrafo/a, leitor/a e, diferente da antropologia moderna (Malinoswki) e pré-moderna (Frazer), o/a leitor/a, produz um efeito sobre a relação de comunicação entre as partes. O que significa que o texto, finalmente, torna-se parte da realidade, criando um novo contexto, diferente daquele presente no jogo livre, que estaria, em suas inversões e autorreferências, nas particularidades não esgotantes em si. Em outras palavras: escrever sobre algo é conceber um novo contexto sobre o que se escreve. Derrida jamais deixou de nos lembrar do caráter performativo da escrita.


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