sábado, 19 de outubro de 2019

COMO ENTENDER OS OUTROS? Da cultura para ontologia na antropologia (Virada Ontológica III)


Marcelo Camargo. Agência Brasil.*
Não é que não “exista” cultura. A questão é que seu uso como conceito pode tornar compreensíveis ações que vinculam pessoas, ambientes e coisas de um modo que parece explicar - para nós - o sentido por trás destas ações. A cultura, mais ainda, é normalmente compreendida como um tipo de média comportamental esperada em uma escala ampla e difusa (falamos de cultura alemã ou ameríndia; cultura de terreiros; cultura muçulmana etc.).

O problema é que quando desejamos compreender a cultura dos outros, diferentes de nós em relação a esse média comportamental suposta - como se todo muçulmano fosse um "terrorista", todo estadunidense fosse patriota, e todo brasileiro amasse futebol ou carnaval etc.), ou para que possamos esclarecer a razão ou os sentidos das ações que não nos parecem claras, recorremos à interpretação das representações culturais dos outros em nossos próprios termos ou "repertórios" culturais – nossos próprios modos de entender algo ou, de modo geral, "nossa própria visão de mundo" [Na área da história, por comparação, temos o anacronismo, que ocorre quando avaliamos o passado a partir de nossos próprios termos "presentes"]. Mas isso nunca permite “extrair” fielmente a experiência vivenciada por essas outras culturas, o que significa sempre uma perda de sentidos que, por outro lado, nos garante, pelo menos, uma representação mínima de outrem, de outras culturas [daí a importância da antropologia, pois ela pretender com o trabalho de campo conhecer mais profundamente essa "outra cultura", sem ficar apenas com impressões e pré-conceitos]. O que é um custo muito caro e não poucas vezes infrutífero (muitas vezes insustentável eticamente - bastante evidente na questão indígena). Aliás, é por isso que antropólogos/as são ótimos para entender a "cultura" de terraplanistas ou bolsonaristas, sem ficar brigando a priori e chamando o terraplanista de irracional, ou o bolsonarista de "apenas" fascista, cínico ou ignorante (o buraco é mais em baixo...) 


         Neste sentido, optar pela ontologia nos promete um tipo de mudança metodológica: como desejamos observar os outros? Como faremos isso? Se com o conceito de cultura olhávamos para representações dos outros e tentávamos transportar tais representações para "dentro" do nosso sistema de compreensão e nossa própria "visão de mundo", para tornar inteligível o que nos parecia irracional; com a nova abordagem nos concentramos nas ações (performance) que podem ser observadas  enquanto formas de lidar com o mundo diferentes, constituindo, assim, uma realidade local (nenhuma realidade é universal, ela é construída e difundida, reterritorializada, deslocada, transformada de um canto a outro). Observar desse jeito evita o problema da “colisão” da "nossa cultura" com a dos "outros". Isto é: não faz mais sentido fazer nossa representação cultural se chocar com a representação de outros, até porque cultura já faz parte de nosso sistema de signos, podendo não ser um conceito traduzível para outros povos. Tal como dois aviões que colidiriam no céu, talvez deixando poucos passageiros/as para explicarem “de onde vêm, quem são e como deveriam se ajudar”,  culturas levam a esse problema quando "colidem". 

Quando optamos por ontologias, seríamos como torres de observação monitorando e descrevendo quais sãos as rotas que os aviões (culturas) estão fazendo, sem que se chocassem e, possivelmente, fazendo-os se comunicarem em prol de ajuda. Politicamente poderíamos dizer que tais ajudas seriam ou pontuais, com objetivos em curto prazo, ou duradouras, como a constituição de um bem comum que se estenda politicamente.

Quem sabe, finalmente, se nossa compreensão chegue a um ponto de não observar a fotografia de Marcelo Camargo (acima) como se fosse uma diferença entre "povos primitivos" e "civilização moderna". Essa interpretação é, para nós antropólogos, apenas sinal de ignorância, quando não apenas etnocentrismo ou, pior, o cinismo comum ao governo que só enxerga a realidade como refém da circulação econômica de capital, como um fim em si mesmo.
             

Fonte da Imagem: Jornal da USP. Link: https://jornal.usp.br/atualidades/os-indigenas-e-os-impactos-da-colonizacao-europeia/

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