quarta-feira, 25 de setembro de 2019

Ideologia, Ciência e Religião II: A ciência é uma palavra “esperando tradução”


            Já falei antes sobre ideologia e ciência, ciência e religião e religião e ideologia. Falarei agora, possivelmente me repetindo, das três “coisas” novamente. Mas que coisas são essas, como devemos entendê-las?
            Vamos reduzir as três coisas a ideias e práticas (ou ações). Isso possibilitará definir a diferença de uma coisa da outra. Também permitirá demonstrar onde elas se associam e se conectam e onde elas se afastam.
            Primeiro vamos falar da religião. Normalmente, religião é uma “prática” ou conjunto de práticas baseadas em ideias. Óbvio? Sim. Mas quais práticas e quais ideias? As práticas são individuais e coletivas. Por individuais, entendo aquelas ações que são baseadas nas ideias religiosas, como caridade, reza etc., são normas coletivas: ‘não pecar’, ‘se confessar’, seguir mandamentos religiosos, seguir a bíblia, não comer certos alimentos, não manter relações sexuais fora, ou antes... do casamento etc. Mas como essas práticas se relacionam ou se conectam com outros setores da sociedade?
            Primeiro falamos na família e relações entre Educação, Política e costumes (cultura). A educação religiosa, em casa, orienta normas e valores que devem guiar a criação de filhos e filhas e de “marido” e “mulher”. Segundo, na escola, a educação religiosa direciona o ensino para manter essas normas e valores, ao mesmo tempo em que prepara estudantes para as práticas profissionais no mercado de trabalho. A Política, então, baseada na religião, deveria compartilhar os valores religiosos e, a Educação, então, mantém uma política educacional que atenda os valores e normas da religião. Ao mesmo tempo, prepara estudantes para serem capacitados/as para o mercado de trabalho. Supostamente, não existe ideologia nesse caso, apenas “religião”, “política” e “educação”.
            No segundo caso, falarei da “ideologia”. Que coisa é essa? Curiosamente, a ideologia nasce na França como um projeto epistemológico e científico. Ou seja: surge como uma área dentro de um projeto científico baseado em “ideias” centradas na razão (movimento iluminista europeu). Qual o resultado disso para os dias de hoje?
            No primeiro caso, a ideologia seria uma prática “filosófico-científica”: investigar as “ideias”. Depois, não se desenvolvendo como se desejava, a ideologia perdeu seu “reconhecimento” como um campo científico, não “germinou”, sendo considerada rapidamente outra “coisa”, mas não uma ciência. Hoje em dia, ela é sinônimo de “ideias não religiosas” que defendem “valores” e “normas” “infiltradas” na Política, na Educação e na Ciência.
            Por último, falarei da Ciência. Ela é uma “prática” que possui métodos e técnicas de se produzir conhecimento de maneira eficiente e eficaz para conseguir respostas para problemas de diferentes áreas, mas inicialmente, biológicos, químicos, físicos e, depois, psicológicos, sociais, de engenharias etc. Por isso, esses “métodos e técnicas” não podem ser considerados como a mesma “coisa” que “religião”. Um cientista não reza em um laboratório pedindo com fé que um teste de associação entre um vírus e uma amostra seja comprovado. Na verdade ele ou ela até pode rezar, mas o resultado não depende de uma convenção religiosa, mas de uma convenção científica sobre valores matemáticos ideais para se confirmar se um teste alcança ou não um valor que o classifique como verdadeiro ou falso.
            Hoje em dia, contudo, a Ciência é considerada “ideológica” quando não se encaixa com as normas e valores “religiosos”. Mas quando é que a engenharia ambiental, ao estudar a toxicidade de cianobactérias acima de um nível aceito se relaciona com “ideologia” ou com “política?”; quando é que o teste de correlação entre “Zika” e “mosquito da dengue” pode ser considerado “político” e “ideológico”? Quando é que os dados da “NAZA” podem ser considerados “políticos” e “ideológicos”? Aqui o erro ocorre tanto entre cientistas “da sociedade” e de “humanas” assim como ocorre com “religiosos”.
            Em primeiro lugar, a relação entre ciência e política não pode reduzir ações de certa “Prática” a de “Outra”. Portanto, um teste de correlação entre cianobactérias e Zika pode ser relacionada à microcefalia no Nordeste do Brasil, mas isso não se resume a “uma prática política”. Na verdade, a “política” está no financiamento, OU NOS CORTES de financiamento para pesquisas científicas. Mas e a “ideologia”?
            Bom, normalmente a Ciência só é considerada ideológica quando ela atinge ideias “morais” e “normas” sociais. Mas cianobactérias e Zika vírus pode afetar “normas sociais” e “morais”. A princípio não. Eis a questão. Então a “ideologia” se desloca, seguindo esse raciocínio, para ciências que lidem com “normas sociais” e a “moral”. Como esse é o campo que é assumido como o da “família”, da “Educação”, e da “cultura”, “da Política” então o confronto é claro: “religião e ideologia” se opõem.
            O segundo modo de a “ideologia” aparecer “conectado” com a Ciência, é quando a Política de financiamento E DE CORTES defende “prioridades” sobre ONDE E COMO SE INVESTIR. Como a religião está com as áreas da “cultura”, “da educação”, da “moral”, então a Ciência é reduzida à ideologia quando ela se opõe a esses assuntos, ou quando áreas, por exemplo, como a Saúde, desenvolve resultados de pesquisa que indiquem que políticas públicas, como a de Saneamento e de Meio Ambiente, precisam ser realizadas em prol de melhorias ignoradas pela política.
            Vê-se, assim, que a ideologia se conecta com a Ciência da seguinte maneira: “ideias” que representam interesses, “normas” e “valores” direcionam as áreas de desenvolvimento científico, fechando setores e abrindo ou investindo em outros. Isso acontece normalmente com as Ciências “no meio do caminho”, aquelas que são consideradas “da Natureza” ou “ciências duras”. Digo “no meio do caminho” em relação a um campo de disputa entre “religião” e “ideologia”. Sei que aceitar essa oposição é um equívoco: mas para quem? Eis a questão: para certos grupos, os religiosos, a “ideologia” é “Outra coisa”, “outras ideias”; para opositores, “a religião é só outra forma de ideologia”. Por isso, é como se a ciência não-social e “não-humana(s)” estivesse, atualmente, em disputa, com o Governo puxando de um lado, reclamando da Ideologia; e a Oposição, puxando do outro lado, reclamando da motivação religiosa por trás da Ciência...
            Aqui, finalmente, é onde vemos uma simetria: ideologia e religião são produzidas por “ideias” e “valores” diferentes. No primeiro caso, a ideologia normalmente está associada a um a história em que a Ciência, primeiramente, se opôs ao pensamento Religioso e ao poder da Religião na Política. Por isso se fala tanto em “Estado Secular”. De outro lado, a Religião aceitou a Ciência, não sem resistência, pois por exemplo, falar em Evolução das Espécies, de DNA, de Reprodução sexual, Heliocentrismo, são coisas que precisaram de gerações e gerações para serem reconhecidas (algumas delas nem são aceitas por alguns cientistas, por exemplo). No entanto, as coisas pioraram quando ocorreu a secularização e uma força contra toda “crença” não científica e, portanto, “religiosa” da sociedade. Mais ainda, quando as Ciências Sociais e Humanas, bem como a filosofia de outrora, começou a se opor ao pensamento religioso e, curiosamente, às ideologias falsas ou “falsos ídolos”, então chegamos ao estado de “coisas” atuais: de conflito entre religião e ideologia no qual a ciência vive em um suplício medieval, quase que sendo esquartejada pelos dois lados da moeda (basta ver o que Bolsonaro falou na ONU e o que Jessé de Souza Martins disse em entrevista recente). Sim, a ciência tornou-se um “significante” (“palavra”) em disputa.
            Por último, vos digo: a prática política é, no final das contas, essa relação de poder final, em que as “ideias” que possuem mais “força” para se fazer “práticas” vencem. Portanto, não acho arriscado concordar com certo pragmatismo segundo o qual a “crença” e a “confiança” que mantém a “crença” é que definem “como fazer política... e ciência”.
           



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