Dentro “de
casa”, as ciências sociais sempre disputaram por reconhecimento e pelo status
de serem chamadas de ciência. Segundo Michel Foucault, o discurso de verdade da
ciência é, também, um discurso de poder. Nada mais pertinente que cruzar sua
afirmação com a de Spivak, apesar de ela criticá-lo, digamos, por não
reconhecer seu próprio lugar diante da divisão do trabalho mundial.
Salvo as
diferenças, vale lembrar que ainda mais "dentro de casa", dentro dos debates
entre teorias sociológicas, por exemplo, tínhamos nos Estados Unidos uma reação
de microssociologias às teorias macrossociológicas, como a de Talcott Parsons,
alguém que foi combatido por seu mais influente discípulo, Harold Garfinkel,
pai da etnometodologia. O que isso tem a ver com o debate acima? Bom, Garfinkel
era alguém preocupado com uma coisa comum à Spivak: a capacidade de pensar de
pessoas não cientistas e de sua plena condição de defender seu próprio ponto de
vista, com suas teorias próprias e, muitas vezes, opostas a da ciência.
Na
sociologia francesa, esse mesmo movimento, inclusive sob certa influência de
Garfinkel, fez outras abordagens surgirem. Inicialmente eram conhecidas como
Estudos Sociais sobre Ciência e Tecnologia e, noutros casos, Etnografias de
Laboratórios. Mais tarde, o pragmatismo alinhou diversos cientistas sociais
dessas áreas. Novamente: o que há de comum com Spivak, aqui? Bem, se repetiu a
crítica à sociologia tradicional que não enxergava a capacidade crítica,
reflexiva, teórica, de um não cientista de defender seus pontos de vista.
Antes do
passinho, mais uma informação dos bastidores do poder científico: atualmente a
antropologia brasileira, sob a bandeira do que se chama de Perspectivismo
Ameríndio, desenvolvido por Eduardo Viveiros de Castro, tem sido a corrente de
pensamento na antropologia preocupada em “levar a sério” o conhecimento do
“nativo” (essas pessoas que venho falando, às vezes chamadas também de
“subalternos”). Levar a sério é (como diria cantor pernambucano Walter de Afogados) a bola da vez.
Fala-se, inclusive, que isso tem a ver com o que a antropologia pós anos 2000
tem vivido, a “virada ontológica”.
Como de
costume, fico me perguntando sobre as coisas que acontecem no meu dia a dia e
sobre meu hábito de observar os acontecimentos e comportamentos de pessoas que
me cercam com essas lentes das ciências sociais. Fiz um texto crítico sobre
passinho antes, mas agora percebi que estou, justamente, repetindo a prática
que venho apresentando nos parágrafos anteriores: estou anulando o ponto de
vista das pessoas que praticam o hábito e estou inserindo elas num ponto de vista
sociológico, prendendo-as na rede de variáveis, dados e hipóteses científicas
para explicar a realidade... de quem dança, só que tipo, eu não danço!
Por outro
lado, é interessante notar que os critérios de valores (posicionamentos) mudam
conforme o gosto, o desejo. Minha crítica ao passinho veio de uma formação
crítica derivada de doses de marxismo e estudos de gênero e masculinidade. O
que se traduzia em: crítica a objetificação de corpos com determinadas músicas
e movimentos; crítica a mercantilização por trás da dança, que vende cultura de
massa, faz comerciais com o passinho etc.; por aí vai... Os exemplos são
muitos, basta escolher um livro de crítica que os alvos são coloridos nas cores
desejadas.
Porem, se levarmos a sério tudo
que temos aprendido no último século XX e início do XXI em ciências sociais, o
relógio bateu a meia noite para as ciências sociais e se não mudarmos,
continuaremos como abóboras para sempre, enquanto tentamos fingir que somos
carroças velozes seguindo o ritmo de mudanças pelas quais a sociedade vem
passando.
Resultado: levando a sério,
agora, teóricos como Antonie Hennion, Bruno Latour e Marilyn Strathern, por
exemplo, por que não passamos a descrever a mediação realizada pelo outro na
constituição de seu próprio gosto, hábito e “teoria” (ponto de vista)? Levar a
sério não significa concordar e se submeter. Significa, simplesmente, entender
que o que o outro fala é como ele ou ela entende o seu contexto e como ele ou
ela justificam suas práticas; ao mesmo tempo em que unificam do contexto em que
vivem, os elementos que dispõem para, por exemplo, manterem hábitos familiares,
lazer, descontração e, por que não?, suas condições de felicidade.
Parece-me que cientistas sociais
são como aquele tio militar velho e ranzinza, ou o padre da igreja local,
sempre pronto para moralizar a sociedade, mas sem assumir que está tentando
fazer isso. Afinal, são cientistas... [invejosos da toga do judiciário]
Fonte para imagem.
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