segunda-feira, 16 de março de 2020

O que o PASSINHO ensina às Ciências SOCIAIS?


        
    “Pode o subalterno falar?” foi um título provocativo para um ensaio escrito por uma crítica literária, indiana, Gayatri C. Spivak em 1985. Basicamente, seu titulo sugeria que a ciência europeia não podia entender o ponto de vista do outro (não europeu), como as ciências modernas e, mais, a filosofia de origem grega, sempre tentaram fazer.

            Dentro “de casa”, as ciências sociais sempre disputaram por reconhecimento e pelo status de serem chamadas de ciência. Segundo Michel Foucault, o discurso de verdade da ciência é, também, um discurso de poder. Nada mais pertinente que cruzar sua afirmação com a de Spivak, apesar de ela criticá-lo, digamos, por não reconhecer seu próprio lugar diante da divisão do trabalho mundial.

            Salvo as diferenças, vale lembrar que ainda mais "dentro de casa", dentro dos debates entre teorias sociológicas, por exemplo, tínhamos nos Estados Unidos uma reação de microssociologias às teorias macrossociológicas, como a de Talcott Parsons, alguém que foi combatido por seu mais influente discípulo, Harold Garfinkel, pai da etnometodologia. O que isso tem a ver com o debate acima? Bom, Garfinkel era alguém preocupado com uma coisa comum à Spivak: a capacidade de pensar de pessoas não cientistas e de sua plena condição de defender seu próprio ponto de vista, com suas teorias próprias e, muitas vezes, opostas a da ciência.

            Na sociologia francesa, esse mesmo movimento, inclusive sob certa influência de Garfinkel, fez outras abordagens surgirem. Inicialmente eram conhecidas como Estudos Sociais sobre Ciência e Tecnologia e, noutros casos, Etnografias de Laboratórios. Mais tarde, o pragmatismo alinhou diversos cientistas sociais dessas áreas. Novamente: o que há de comum com Spivak, aqui? Bem, se repetiu a crítica à sociologia tradicional que não enxergava a capacidade crítica, reflexiva, teórica, de um não cientista de defender seus pontos de vista.

            Antes do passinho, mais uma informação dos bastidores do poder científico: atualmente a antropologia brasileira, sob a bandeira do que se chama de Perspectivismo Ameríndio, desenvolvido por Eduardo Viveiros de Castro, tem sido a corrente de pensamento na antropologia preocupada em “levar a sério” o conhecimento do “nativo” (essas pessoas que venho falando, às vezes chamadas também de “subalternos”). Levar a sério é (como diria cantor pernambucano Walter de Afogados) a bola da vez. Fala-se, inclusive, que isso tem a ver com o que a antropologia pós anos 2000 tem vivido, a “virada ontológica”.

            Como de costume, fico me perguntando sobre as coisas que acontecem no meu dia a dia e sobre meu hábito de observar os acontecimentos e comportamentos de pessoas que me cercam com essas lentes das ciências sociais. Fiz um texto crítico sobre passinho antes, mas agora percebi que estou, justamente, repetindo a prática que venho apresentando nos parágrafos anteriores: estou anulando o ponto de vista das pessoas que praticam o hábito e estou inserindo elas num ponto de vista sociológico, prendendo-as na rede de variáveis, dados e hipóteses científicas para explicar a realidade... de quem dança, só que tipo, eu não danço!

            Por outro lado, é interessante notar que os critérios de valores (posicionamentos) mudam conforme o gosto, o desejo. Minha crítica ao passinho veio de uma formação crítica derivada de doses de marxismo e estudos de gênero e masculinidade. O que se traduzia em: crítica a objetificação de corpos com determinadas músicas e movimentos; crítica a mercantilização por trás da dança, que vende cultura de massa, faz comerciais com o passinho etc.; por aí vai... Os exemplos são muitos, basta escolher um livro de crítica que os alvos são coloridos nas cores desejadas.

Porem, se levarmos a sério tudo que temos aprendido no último século XX e início do XXI em ciências sociais, o relógio bateu a meia noite para as ciências sociais e se não mudarmos, continuaremos como abóboras para sempre, enquanto tentamos fingir que somos carroças velozes seguindo o ritmo de mudanças pelas quais a sociedade vem passando.

Resultado: levando a sério, agora, teóricos como Antonie Hennion, Bruno Latour e Marilyn Strathern, por exemplo, por que não passamos a descrever a mediação realizada pelo outro na constituição de seu próprio gosto, hábito e “teoria” (ponto de vista)? Levar a sério não significa concordar e se submeter. Significa, simplesmente, entender que o que o outro fala é como ele ou ela entende o seu contexto e como ele ou ela justificam suas práticas; ao mesmo tempo em que unificam do contexto em que vivem, os elementos que dispõem para, por exemplo, manterem hábitos familiares, lazer, descontração e, por que não?, suas condições de felicidade.

Parece-me que cientistas sociais são como aquele tio militar velho e ranzinza, ou o padre da igreja local, sempre pronto para moralizar a sociedade, mas sem assumir que está tentando fazer isso. Afinal, são cientistas... [invejosos da toga do judiciário]


Fonte para imagem. 

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