segunda-feira, 25 de novembro de 2019

Ser o quê mesmo? Ontologia e Filosofia antes da Virada Ontológica da Antropologia

Fonte: Internet*

Neste breve texto, quero introduzir o uso do termo “ontologia”. O resultado esperado é esclarecer qual o uso que esse termo tem para área de filosofia. O motivo de redigi-lo se deve aos usos que tal termo adquire na antropologia (naquela abordagem mais atual conhecida como “virada ontológica”). Para tanto, escolhi dois artigos, ambos em português. Contemplei dois filósofos notáveis para o século XX: Gyrogy Lukacs, herdeiro do marxismo; e Martin Heidegger, que relaciona a ontologia à fenomenologia da tradição inaugurada por Edmund Husserl.
            No primeiro artigo, escolhi Sérgio Lessa como comentador, pois o filósofo brasileiro é um importante comentador da obra de Lukács e é um dos responsáveis pela difusão de sua obra no Brasil. Em “Lukács e a ontologia: uma introdução” (1985), Lessa situa a ontologia em sua tradição grega, passando por Aristóteles e Platão na Antiguidade, o pensamento teológico medieval ao seu uso em Marx, conforme a leitura que Lukács faz do co-fundador do materialismo histórico. Basicamente, Lessa remete o estudo filosófico sobre o ser como a preocupação da chamada ontologia. Assim, estudar o ser é, ao mesmo tempo, nos perguntar sobre a essência da realidade constitutiva do ser. O pensamento filosófico grego pensa a ontologia de um modo “fixo”, como uma essência eterna pré-existente à realidade. Então falar em ser é falar sobre essa essência fixa e compreender que as coisas que acontecem (os chamados fenômenos) participam de uma relação com essa essência do ser que, neste caso, passa a conhecer as coisas ou causas dos fenômenos.
            Na teologia medieval, o ser passa a ser associado a uma essência religiosa, a qual pressupõe um Deus, um ser eterno que de algum modo está relacionado à essência humana. Assim, ontologia passa ser compreendida como uma compreensão sobre um ser, a uma essência religiosa (judaico-cristã).
            Mais tarde, Hegel associa a ideia de um Espírito Absoluto em-si. Os fenômenos ou as coisas que acontecem podem finalmente encontrarem-se com esse ser em si do Absoluto, tornando-se para-si. Como se nossas relações remetessem à manifestação da essência desse Espírito Absoluto. O Estado Moderno, por sua vez, seria essa manifestação do Espírito e nós, partes desse resultado do desenvolvimento. Lessa não diz exatamente isso, ainda assim, essa interpretação um tanto descuidada pode servir para nossos fins; entretanto, é preciso se ter em mente que existem possibilidades tanto de recusar essa (minha interpretação) quanto a leitura que Lessa faz de Hegel. A quem possa interessar: “pesquise mais, não pare por aqui”. O que importa é destacar a transição da abordagem teológica do ser para a hegeliana. Mais tarde, para sermos breves, Marx aparece como quem desloca a “essência” para a “materialidade”, mas no processo, diz que nosso ser não “manifesta a essência da matéria”, mas que as relações sociais entre os “homens” em um dado momento histórico é que nos fazem sermos aquilo que podemos ser, nem menos nem mais. Assim, o pensamento de uma época, por exemplo, deveria refletir o estado atual dos modos de produção da sociedade (feudal, capitalista etc.). Importa salientar que o ser aqui não está associado nem ao “idealismo/transcendência” nem ao pensamento (ontologia) religioso.
            A partir do que até agora foi dito, a ontologia em Lukács surge como uma tentativa de descrever os diferentes momentos pelos quais pode emergir o que se chamará de uma “ontologia do ser social”. Esta, por sua vez, distingui-se de seres orgânicos e inorgânicos por meio de um processo (salto) que mantém uma continuidade destes modos de ser em um novo tipo de ser que inaugura uma nova modalidade ontológica do ser, a especificamente humana, social. É bom notar a oposição entre ontologia “laica”, um ser “secular”, daquela religiosa, “transcendental”.

***

            O segundo artigo que escolhi, sobre Heidegger, é de Maria Helena Damasceno e Silva Megale, também filósofa, e se chama “Introdução à ontologia heideggeriana e ao meio ambiente: abertura do ser para o infinito da existência com o outro” (2009). Infelizmente serei mais breve neste artigo. Mas basicamente, o texto enfatiza a questão do ser aí, como presença, ou como experiência e modo de existência (Dasein). Ao fazê-lo, a autora está dando destaque ao caráter fenomenológico da abordagem de Heidegger. Sua intenção é demonstrar essa negação de elementos transcendentais prévios à própria existência do ser aí. Em outras palavras: se você é uma pessoa aí (um ente), ser algo ou conceber uma essência do que você é só pode ocorrer a partir de sua existência e na sua relação com os outros. O que significa que não estamos em uma essência ou pensamento fixo (grego), ou relacionado à uma entidade (Deus/Espírito Absoluto), nem à uma materialidade prévia condicionante de um modo específico de possibilidades de ser (Marx/Engels), na qual nos situamos numa estrutura de classes sociais, por exemplo. O que não significa, por outro lado, que esses exemplos estejam errados de antemão, previamente, mas suas possibilidades só existem na medida em que você também existe como participante dessa ou daquela possibilidade de ser. Ao mesmo tempo, elas não fixam as coisas ou encerram o mundo em uma essência (Grega/Deus/Espírito/Matéria/Ser social). Megale encerra seu artigo defendendo a possibilidade de essa possibilidade de “ser aí” não se fechar.
            Minha escolha dos dois textos é bem pessoal. Há alguns anos, ao ler “Prolegômenos para uma ontologia do ser social”, de Lukács, li uma passagem biográfica que dizia que Lukács questionara a fenomenologia husserliana e, a meu ver, de modo reducionista, ao se perguntar se um acontecimento real, como um atropelamento de carro, poderia ser colocado “entre parênteses” (se bem me lembro) – o que tem o efeito de perguntar a você se você acredita na realidade de o acontecimento real de um carro te atropelar; o que leva a obvia conclusão de que se a existência do carro não pode ser ignorada, então não podemos “por a realidade entre parênteses” e “fingir que o carro não existe” (ou seja: não se pode por a realidade que conhecemos previamente fora de nossa análise). Sendo ou não sendo esse o caso, o sentido se mantém: a crítica de Lukács estava relacionada a negar certezas sobre a realidade, como se fosse muito “voluntarioso” ou “questão de opinião” observar o mundo apenas em sua imediaticidade – o mundo dos fenômenos. Fazer isso seria negar, para Lukács, as estruturas que condicionam a realidade (que ele percebera e tem como verdade). Por isso, escolhi essa dicotomia marxismo-fenomenologia. Além disso, tais abordagens são bem representativas de pensamentos estruturalistas e representacionalistas, de um lado, daqueles mais próximos ao interpretativismo e, depois, à virada ontológica de outro.
            Por fim, quis com esse texto demonstrar como a ontologia foi abordada por dois exemplos pontuais que, é claro, passam infinitamente longe de encerrarem os exemplos possíveis. Porém, creio que tais exemplos podem demonstrar o mais pertinente para minha exposição: falar sobre ontologia é, a princípio, nos perguntarmos sobre a essência do ser, sobre a realidade das coisas. Começar a refletir sobre isso é em alguma medida nos perguntar sobre o sentido de ser humano (Heidegger). Dos gregos ao século XX, com Heidegger e Lukács, tentei explicitar como esses filósofos lidaram com a ontologia. Ambos estavam tentando responder, basicamente, sobre o sentido de ser humano e sobre “como se constitui nossa realidade especificamente humana”.
            A grande questão, afinal, é – isso será essencial para compreender a virada ontológica – nos perguntarmos sobre se o ser dos entes ou o ser das coisas na filosofia grega e em seus herdeiros contemporâneos não é o mesmo que ir a campo como um antropólogo ou antropóloga fariam e pesquisar “qual a ontologia que está sendo construída por outros” – aliás, será que o termo ontologia seria suficiente para traduzir as experiências sobre “o ser” dos “outros”, digamos, povos Ameríndios, por exemplo? Essa é uma questão para um próximo post.  



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