Gabriel Ferreira de Brito, PPGA, UFPE
Neste trabalho nosso objetivo foi compreender qual ou quais
são os objetos de estudo da Etnologia. Conforme se observou nas primeiras aulas
por meio da observação participante em Etnologia Brasileira, em comparação com
a abordagem francesa do etnólogo Bruno Latour (e WOOGAR, 1997), sugerimos como
hipótese que a definição do objeto etnológico não é determinado por um consenso
puramente científico, mas por meio de escolhas institucionais concernentes a
cada instituição universitária e de acordo com seu próprio contexto. Em segundo
lugar, a escolha não é resultado apenas de um processo hermenêutico, mas também
de relações de autoridade em que o
poder decisório é distribuído assimetricamente. Metodologicamente utilizamos
observação participante em aulas da cadeira de Etnologia Brasileira; análise
documental da ementa da disciplina, assim como de e-mails e dados retirados de
blogs e salas de aula virtual relacionados às aulas da referida cadeira. Como
resultado, espera-se distinguir ao menos dois diferentes modos de se fazer
Etnologia: um brasileiro, outro francês.
O
papel dos intérpretes textuais: uma sociedade mantida por textos
Os dados produzidos pela observação participante, codificados
e depois classificados, geraram em torno de 128 códigos que foram agrupados em
famílias (Ação 8, Humanos 9, Humanos pessoalmente presentes 6, Intérpretes
textuais 51, Não humanos 29)1. O que saltou a
vista do observador foi o recurso constante aos intérpretes textuais. Termo
este designado para humanos cujos relatos, análises e descobertas foram
transformadas em impressões textuais. Foram 32 intérpretes identificados apenas
por meio da observação participante. Ora eles/elas eram veiculados por meio de
comunicadores humanos, de forma oral, ora eram veiculados por textos que
assumiam esta função, de comunicadores2.
Já na análise da ementa, foram encontradas 19 referências,
com duas co- ocorrências. Um texto, do próprio professor responsável pela
cadeira, aparece em três momentos do conteúdo programático. O que significa que
cada momento temático ou fase do conteúdo programático, conforme podemos
constatar via observação participante, seu texto dialogava com conceitos chaves
da ementa que apareciam diferentes momentos da programação.
Também fizemos análise de uma ferramenta: o diário de
leituras da cadeira de etnologia.
Tal tipo de análise funciona do mesmo modo com que na observação participante
se recorre ao diário de pesquisa e caderno de campo. Mas tal análise tem uma
especificidade: não se trata de um diário de
pesquisa. Ela se assemelha a uma sugestão de Latour (2012) chamada
caderno de insights. Também não é
idêntico a este caderno porque possui a especificidade de cumprir também a
função de diário. Em outras
palavras: trata-se de um diário de leituras da
cadeira com espaço para reflexões e comentários conforme as leituras avançassem.
A primeira impressão decorrente da observação
participante se deu em face da ênfase dada à formação do Brasil. Para alguém
formado em Ciências Sociais, os nomes de Gilberto Freyre e Francisco Buarque de
Holanda não soam incomuns. Todavia, desfazia-se um pré-conceito, pois
supunha-se que a Etnologia se restringiria aos estudos indígenas. Tão logo as
aulas tiveram início, tão logo entraram em cenas intérpretes inusitados: Bartolomeu de Las Casas e Sepúlveda, a
Carta de Pero Vaz de Caminha, Padre Manoel da Nóbrega, Diário de Náus, Serafim
Leite, entre outros.
Mais importante, todavia, não foi exatamente a relativa
importância dada aos intérpretes da história brasileira, mas aos veículos nos
quais eles eram transportados. Na soma dos dados codificados e classificados
como “Intérpretes textuais”, classificamos autores e autoras citadas, seja
apenas por nome, seja pelo título de seu trabalho, independente da forma
(carta, artigo, livro etc.). Foram 51 intérpretes mencionados. É preciso
destacar, no entanto, que a classificação se deu por influência da teoria
ator-rede (LATOUR, 2012). Daí a separação em humanos e não humanos. Ainda
assim, também consideramos outras categorias. Humanos e não humanos
descreviam humanos em geral (sejam eles
presentes em textos, conversas – etnias indígenas mencionadas, por exemplo – ou
em textos); Não humanos descreviam conceitos, ideias, lugares, doenças e objetos (presentes em sala ou não). Nossa ênfase, aqui, recairá sobre a
categoria de Intérpretes textuais, pois ela permite alcançar o objetivo aqui
proposto3.
Retornado à questão da importância da história do
Brasil, não se trata apenas da história como “ilustração” de um período, mas da
importância da alteridade em que
ocorria a relação entre povos indígenas e colonos, a princípio, e depois com o
Estado. Depois desses temas, a alteridade é situada no século XX, e surgem
novos intérpretes, passando por nomes como Darcy Ribeiro e Roberto da Matta,
entre outros. Entretanto, os mais importantes elos com a comparação que aqui
buscamos (entre franceses e brasileiros), é quando chegamos aos debates da
Etnologia Brasileira das décadas de 1970 em diante, chegando ao final da ementa, momento em que Márcio Goldman
aparece, introduzindo o assunto da antropologia pós-social. Este tema, por sua
vez, remete a um assunto bastante recente na antropologia contemporânea, a
chamada “virada ontológica”. Ainda assim, tal tema “amarra” nossa exposição, na medida em que nos remete a etnologia da ciência
realizada por Bruno Latour, na década de 1970 que desembocou na chamada antropologia simétrica que, por
sua vez, exerceu influência na virada ontológica, tanto quanto o chamado perspectivismo de Viveiros de Castro,
que há décadas vinha estudando a noção de pessoa entre etnologias indígenas.
Duas etnologias, um caminho em comum nos dias atuais? É o que parece que está
em pleno desenvolvimento nos anos recentes.
Neste ínterim, é preciso retomar e encerrar a questão
dos intérpretes, pois ela traz uma
questão de primeira instância a qual não devemos nos eximir: a agência não
humana nas salas de aula e a constituição de uma etnologia brasileira cujas
origens e influências delimitam o horizonte da prática etnológica em análise,
mas como observamos, não a determinam. Tal agência se vê na aprendizagem antropológica
na medida em que a observação participante, não a análise documental, nos
permitiu observar aula por aula, a presença de livros, pois o professor que
ministrava a cadeira os trazia para as salas de aula. Mais ainda: não
acostumado a ver mais estudantes lendo em voz alta a pedido de um professor,
eis que um discente de meia idade, em certa ocasião, segura em suas mãos um livro fornecido pelo professor e, a seu pedido, inicia leitura de
um
texto. Além dessa forma de aula, o professor costumava também indicar diversas
fontes de pesquisa. Tivemos a oportunidade, em certa ocasião, de encontrar na
biblioteca uma coleção de livros
sobre a História dos Jesuítas no Brasil em cujo prefácio se lê: “Que importa o
debate acêrca [sic] da sobrevivência de culturas e a verificação de que a
cultura inferior, posta em contacto [sic]
com a superior, ou se desagrega ou morre?” (LEITE, Serafim, 2006, XIII). Ora,
não seria justamente esse contato que mais interessaria a etnologia brasileira
e, depois, essa alteridade (cultura superior em contato com a inferior na citação), o tema por excelência da etnologia brasileira?
A
França e os laboratórios
A partir dos anos 1970 surgiram etnografias de laboratório na
Europa e Estados Unidos. Uma delas, a que será utilizada como exemplo, foi
realizada por Bruno Latour, conhecido como etnólogo francês naquele momento.
Seu campo de pesquisa foi o Instituto Salk, em um laboratório de Endocrinologia
(LATOUR e WOOGAR, 1997). Foi nessa época, inclusive, que Latour teve contato
com a primatologista Shirley Strum4.
Foi durante a observação participante que o professor
ministrante da cadeira de Etnologia brasileira desfez uma dúvida pessoal do
autor deste trabalho, pois disse que se chegasse à França, ele não seria
encarado como um etnólogo, já que estuda no seu próprio país. Muito pelo
contrário, por outro lado, dizia ele que se chegasse em uma reunião da
Associação Brasileira de Antropologia (ABA), ouviria comentários bem humorados,
“chegou o etnólogo”. Portanto, vê-se como varia a definição dos limites e
possibilidades da prática etnológica como um todo.
De todo modo, é preciso atentar para uma questão metodológica relativa à confiabilidade dos dados. Neste momento, ainda não foi obtido acesso a uma literatura etnológica francesa (não esquecendo que o célebre Lévi-Strauss realizou estudos na Amazônia brasileira); tampouco foi realizada análise documental dos arquivos institucionais de instituições francesas para corroborar as informações de nosso informante. Por outro lado, como exercício reflexivo, supomos que os dados ora levantados sustentam a afirmação de que definições sobre o objeto etnológico difere conforme países, mesmo que os dados ainda sejam superficiais.
4 Notar mais
uma curiosidade. Em diário de campo, o professor que ministra a cadeira de
Etnologia nos relatou que a Etnologia nos Estados Unidos costuma estar presente
em Departamentos de Primatologia. Shirley Strum diz ter conhecido Latour
(STRUM, 2017) durante um seminário no qual ela apresentava resultados de
pesquisa sobre, grosso modo, as relações sociais entre machos e fêmeas de
macacos.
No tocante à etnologia latouriana, seus resultados foram
provocativos e, em alinhamento com outras “etnologias” ou etnografias de
laboratório consideradas construtivistas (KNOR-CETINA, 1983), a noção de
natureza como dada, categoria invariável, e cultura (como aparece em
Levi-Strauss) como relativa, começou a ser questionada (e daí também vem a
inclusão do tema da agência de não humanos nas ciências sociais). Para essas
abordagens, a natureza e a cultura produziriam a realidade; os fatos não seriam
mais apenas “descobertas”, mas, também, “construções”.
Esse tipo de abordagem caminhou para, nos anos 1990 (LATOUR,
1994; VIVEIROS DE CASTRO, 2002) em diante, tentar superar o par
natureza-cultura que, no caso da etnologia brasileira, mas não somente, eram
basilares para os estudos sobre alteridade. Foi
nesse ínterim, como já mencionado, que se pensou, no Brasil, por
exemplo, em uma antropologia pós-social na esteira da virada ontológica
(GOLDMAN, 2012). Desse resultado, parece, por fim, que se chegou a um ponto de
possível convergência entre etnologia brasileira e etnologia francesa (ver
GOLDMAN, 2015).
Em conclusão, a hipótese deste trabalho parece não ter
sido confirmada, visto que somente com dados sobre “por que Latour seria
considerado Etnólogo”, ou “porque na ABA um antropólogo que estuda índios de
seu próprio país seria considerado etnólogo, não na França”, não trazem
evidências de autoridade e
assimetrias de poder. Muito pelo contrário, elas trazem apenas diferenças. Estas sim deveriam ser
investigadas para que fosse possível alcançar os objetivos aqui propostos. Por
outro lado, é preciso se ter em mente que os dados ora apresentados, apesar de incipientes, apontam para as diferenças
institucionais, o que, afinal, parece sugerir que o resultado esperado foi
alcançado. Isto é: distinguir ao
menos dois diferentes modos de se fazer Etnologia: um brasileiro, outro francês.
Referências
BRITO,
Gabriel Ferreira de. Zika vírus: uma
pesquisa sobre a participação da Fundação Oswaldo Cruz no combate à epidemia de
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<https://link.springer.com/article/10.1057/s41292-016-0035-y>.
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