sexta-feira, 26 de julho de 2019

Diferentes modos de se fazer etnologia: o caso Brasil e França


Gabriel Ferreira de Brito, PPGA, UFPE
 
Pombos, fios e perspectiva numa cidade pós-colonial.
G.B,
Neste trabalho nosso objetivo foi compreender qual ou quais são os objetos de estudo da Etnologia. Conforme se observou nas primeiras aulas por meio da observação participante em Etnologia Brasileira, em comparação com a abordagem francesa do etnólogo Bruno Latour (e WOOGAR, 1997), sugerimos como hipótese que a definição do objeto etnológico não é determinado por um consenso puramente científico, mas por meio de escolhas institucionais concernentes a cada instituição universitária e de acordo com seu próprio contexto. Em segundo lugar, a escolha não é resultado apenas de um processo hermenêutico, mas também de relações de autoridade em que o poder decisório é distribuído assimetricamente. Metodologicamente utilizamos observação participante em aulas da cadeira de Etnologia Brasileira; análise documental da ementa da disciplina, assim como de e-mails e dados retirados de blogs e salas de aula virtual relacionados às aulas da referida cadeira. Como resultado, espera-se distinguir ao menos dois diferentes modos de se fazer Etnologia: um brasileiro, outro francês.

O papel dos intérpretes textuais: uma sociedade mantida por textos
Os dados produzidos pela observação participante, codificados e depois classificados, geraram em torno de 128 códigos que foram agrupados em famílias (Ação 8, Humanos 9, Humanos pessoalmente presentes 6, Intérpretes textuais 51, Não humanos 29)1. O que saltou a vista do observador foi o recurso constante aos intérpretes textuais. Termo este designado para humanos cujos relatos, análises e descobertas foram transformadas em impressões textuais. Foram 32 intérpretes identificados apenas por meio da observação participante. Ora eles/elas eram veiculados por meio de comunicadores humanos, de forma oral, ora eram veiculados por textos que assumiam esta função, de comunicadores2.

Já na análise da ementa, foram encontradas 19 referências, com duas co- ocorrências. Um texto, do próprio professor responsável pela cadeira, aparece em três momentos do conteúdo programático. O que significa que cada momento temático ou fase do conteúdo programático, conforme podemos constatar via observação participante, seu texto dialogava com conceitos chaves da ementa que apareciam diferentes momentos da programação.
Também fizemos análise de uma ferramenta: o diário de leituras da cadeira de etnologia. Tal tipo de análise funciona do mesmo modo com que na observação participante se recorre ao diário de pesquisa e caderno de campo. Mas tal análise tem uma especificidade: não se trata de um diário de pesquisa. Ela se assemelha a uma sugestão de Latour (2012) chamada caderno de insights. Também não é idêntico a este caderno porque possui a especificidade de cumprir também a função de diário. Em outras palavras: trata-se de um diário de leituras da cadeira com espaço para reflexões e comentários conforme as leituras avançassem.
A primeira impressão decorrente da observação participante se deu em face da ênfase dada à formação do Brasil. Para alguém formado em Ciências Sociais, os nomes de Gilberto Freyre e Francisco Buarque de Holanda não soam incomuns. Todavia, desfazia-se um pré-conceito, pois supunha-se que a Etnologia se restringiria aos estudos indígenas. Tão logo as aulas tiveram início, tão logo entraram em cenas intérpretes inusitados: Bartolomeu de Las Casas e Sepúlveda, a Carta de Pero Vaz de Caminha, Padre Manoel da Nóbrega, Diário de Náus, Serafim Leite, entre outros.
Mais importante, todavia, não foi exatamente a relativa importância dada aos intérpretes da história brasileira, mas aos veículos nos quais eles eram transportados. Na soma dos dados codificados e classificados como “Intérpretes textuais”, classificamos autores e autoras citadas, seja apenas por nome, seja pelo título de seu trabalho, independente da forma (carta, artigo, livro etc.). Foram 51 intérpretes mencionados. É preciso destacar, no entanto, que a classificação se deu por influência da teoria ator-rede (LATOUR, 2012). Daí a separação em humanos e não humanos. Ainda assim, também consideramos outras categorias. Humanos e não humanos descreviam  humanos em geral (sejam eles presentes em textos, conversas – etnias indígenas mencionadas, por exemplo – ou em textos); Não humanos descreviam conceitos, ideias, lugares, doenças e objetos (presentes em sala ou não). Nossa ênfase, aqui, recairá sobre a categoria de Intérpretes textuais, pois ela permite alcançar o objetivo aqui proposto3.
Retornado à questão da importância da história do Brasil, não se trata apenas da história como “ilustração” de um período, mas da importância da alteridade em que ocorria a relação entre povos indígenas e colonos, a princípio, e depois com o Estado. Depois desses temas, a alteridade é situada no século XX, e surgem novos intérpretes, passando por nomes como Darcy Ribeiro e Roberto da Matta, entre outros. Entretanto, os mais importantes elos com a comparação que aqui buscamos (entre franceses e brasileiros), é quando chegamos aos debates da Etnologia Brasileira das décadas de 1970 em diante, chegando ao final da ementa, momento em que Márcio Goldman aparece, introduzindo o assunto da antropologia pós-social. Este tema, por sua vez, remete a um assunto bastante recente na antropologia contemporânea, a chamada “virada ontológica”. Ainda assim, tal tema “amarra” nossa exposição, na medida em  que nos remete a etnologia da ciência realizada por Bruno Latour, na década de 1970 que desembocou na chamada antropologia simétrica que, por sua vez, exerceu influência na virada ontológica, tanto quanto o chamado perspectivismo de Viveiros de Castro, que há décadas vinha estudando a noção de pessoa entre etnologias indígenas. Duas etnologias, um caminho em comum nos dias atuais? É o que parece que está em pleno desenvolvimento nos anos recentes.
Neste ínterim, é preciso retomar e encerrar a questão dos intérpretes, pois ela  traz uma questão de primeira instância a qual não devemos nos eximir: a agência não humana nas salas de aula e a constituição de uma etnologia brasileira cujas origens e influências delimitam o horizonte da prática etnológica em análise, mas como observamos, não a determinam. Tal agência se na aprendizagem antropológica na medida em que a observação participante, não a análise documental, nos permitiu observar aula por aula, a presença de livros, pois o professor que ministrava a cadeira os trazia para as salas de aula. Mais ainda: não acostumado a ver mais estudantes lendo em voz alta a pedido de um professor, eis que um discente de meia idade, em certa ocasião, segura em suas mãos um livro fornecido pelo professor e, a seu pedido, inicia leitura de
um texto. Além dessa forma de aula, o professor costumava também indicar diversas fontes de pesquisa. Tivemos a oportunidade, em certa ocasião, de encontrar na biblioteca uma coleção de livros sobre a História dos Jesuítas no Brasil em cujo prefácio se lê: “Que importa o debate acêrca [sic] da sobrevivência de culturas e a verificação de que a cultura inferior, posta em contacto [sic] com a superior, ou se desagrega ou morre?” (LEITE, Serafim, 2006, XIII). Ora, não seria justamente esse contato que mais interessaria a etnologia brasileira e, depois, essa alteridade (cultura superior em contato com a inferior na citação), o tema por excelência da etnologia brasileira?

A França e os laboratórios
A partir dos anos 1970 surgiram etnografias de laboratório na Europa e Estados Unidos. Uma delas, a que será utilizada como exemplo, foi realizada por Bruno Latour, conhecido como etnólogo francês naquele momento. Seu campo de pesquisa foi o Instituto Salk, em um laboratório de Endocrinologia (LATOUR e WOOGAR, 1997). Foi nessa época, inclusive, que Latour teve contato com a primatologista Shirley Strum4.
Foi durante a observação participante que o professor ministrante da cadeira de Etnologia brasileira desfez uma dúvida pessoal do autor deste trabalho, pois disse que se chegasse à França, ele não seria encarado como um etnólogo, já que estuda no seu próprio país. Muito pelo contrário, por outro lado, dizia ele que se chegasse em uma reunião da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), ouviria comentários bem humorados, “chegou o etnólogo”. Portanto, vê-se como varia a definição dos limites e possibilidades da prática etnológica como um todo.

De todo modo, é preciso atentar para uma questão metodológica relativa à confiabilidade dos dados. Neste momento, ainda não foi obtido acesso a uma literatura etnológica francesa (não esquecendo que o célebre Lévi-Strauss realizou estudos na Amazônia brasileira); tampouco foi realizada análise documental dos arquivos institucionais de instituições francesas para corroborar as informações de nosso informante. Por outro lado, como exercício reflexivo, supomos que os dados ora levantados sustentam a afirmação de que definições sobre o objeto etnológico difere conforme países, mesmo que os dados ainda sejam superficiais.
4 Notar mais uma curiosidade. Em diário de campo, o professor que ministra a cadeira de Etnologia nos relatou que a Etnologia nos Estados Unidos costuma estar presente em Departamentos de Primatologia. Shirley Strum diz ter conhecido Latour (STRUM, 2017) durante um seminário no qual ela apresentava resultados de pesquisa sobre, grosso modo, as relações sociais entre machos e fêmeas de macacos.

No tocante à etnologia latouriana, seus resultados foram provocativos e, em alinhamento com outras “etnologias” ou etnografias de laboratório consideradas construtivistas (KNOR-CETINA, 1983), a noção de natureza como dada, categoria invariável, e cultura (como aparece em Levi-Strauss) como relativa, começou a ser questionada (e daí também vem a inclusão do tema da agência de não humanos nas ciências sociais). Para essas abordagens, a natureza e a cultura produziriam a realidade; os fatos não seriam mais apenas “descobertas”, mas, também, “construções”.
Esse tipo de abordagem caminhou para, nos anos 1990 (LATOUR, 1994; VIVEIROS DE CASTRO, 2002) em diante, tentar superar o par natureza-cultura que, no caso da etnologia brasileira, mas não somente, eram basilares para os estudos sobre alteridade. Foi nesse ínterim, como já mencionado, que se pensou, no Brasil, por exemplo, em uma antropologia pós-social na esteira da virada ontológica (GOLDMAN, 2012). Desse resultado, parece, por fim, que se chegou a um ponto de possível convergência entre etnologia brasileira e etnologia francesa (ver GOLDMAN, 2015).
Em conclusão, a hipótese deste trabalho parece não ter sido confirmada, visto que somente com dados sobre “por que Latour seria considerado Etnólogo”, ou “porque na ABA um antropólogo que estuda índios de seu próprio país seria considerado etnólogo, não na França”, não trazem evidências de autoridade e assimetrias de poder. Muito pelo contrário, elas trazem apenas diferenças. Estas sim deveriam ser investigadas para que fosse possível alcançar os objetivos aqui propostos. Por outro lado, é preciso se ter em mente que os dados ora apresentados, apesar de incipientes, apontam para as diferenças institucionais, o que, afinal, parece sugerir que o resultado esperado foi alcançado. Isto é: distinguir ao menos dois diferentes modos de se fazer Etnologia: um brasileiro, outro francês.

Referências

BRITO, Gabriel Ferreira de. Zika vírus: uma pesquisa sobre a participação da Fundação Oswaldo Cruz no combate à epidemia de Zika. 2019a (Dissertação de Mestrado – Programa de Pós-graduação em Sociologia) 109 f . UFPE, Recife.

GOLDMAN, Márcio. Antropologia Pós-Social, perspectivas e dilemas  contemporâneos: entrevista com Márcio Goldman. Campos, 13(1), 93-108, 2012.

              . “Quinhentos anos de contato”: por uma teoria etnográfica da (contra) mestiçagem.     In:       Mana, 21              (30),      641-659,           2015.             Disponível  em:        <

KNOR-CETINA, Karin. The Ethnographic Study of Scientific Work: Towards a Constructivism Interpretation of Science. In: KNOR-CETINA, Karin. (ed.). Perspectives on the Social Study of Science. London, Sage, 1983. pp. 115-140. Disponível em: <https://d-nb.info/1101582359/34> . Acesso: 24 jan. 2018

LATOUR, Bruno.; WOOGAR, Steve. A vida de laboratório: a produção dos fatos científicos. Rio de janeiro, Relume Damará, 1997.

LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos: ensaios de antropologia simétrica. Rio de Janeiro. Ed., 34, 1994.

2004.                . Reagregando o social: uma introdução à Teoria do Ator-Rede. Salvador, EDUFBA, 2012; BAURU, São Paulo, 2012.

LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Tomo I. (Século XVI – O estabelecimento). Editora Itatiaia, Belo Horizonte, 2006.

STRUM, Shirley.; LATOUR, Bruno. Redefining the social link: from baboons to humans. Social Science Information, 26, 4, pp. 783-802, 1987. Disponível em:

STRUM, Shirley. Baboons and the Origins of Actor-Network Theory. An interview with Shirley Strum about the shared history of primate and science studies. BioSocieties,               n.                          12,          158-167,                                   2017.     Disponível                        em:

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo B., 2002. “O nativo relativo”, in MANA 8(1):113-
148.               Disponível             em:             <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104- 93132002000100005&script=sci_abstract&tlng=pt>. Acesso: 9 set. 2018.

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