quinta-feira, 27 de junho de 2019

Diálogos esquizofrênicos II: Latour (Irredutível) e Schopenhauer (Vontade).

Silêncio. G. Brito


Diálogo entre o Irredutível e a Vontade

“Nós dizemos “aquele que controla a causa, controla o efeito”, como se o efeito estivesse potencialmente contido na causa. Entretanto, nenhuma palavra pode causar outra. Palavras seguem umas às outras numa história. Só posteriormente na história que um personagem é feito de “causa” e outro de “consequência”. O único efeito a ser considerado é o efeito que essa ou aquela aliança das palavras tem no público: “Não, ele está exagerando”, ou “está bem escrito”, ou ainda, “muito esclarecedor”, “muito convincente”, “quão presunçoso”, ou “que tedioso”.”*

- Entende o que eu digo? – O Irredutível indaga.

- Muito complexo. Lembra-me certo transcendentalismo com mania de grandeza. – Provoca, a Vontade. Ela pega um copo de água e molha a garganta, depois continua. – “Palavra pode causar outra”, você diz... interessante. - Em seguida, Vontade dá um copo de aguar ao Irredutível, que bebe com rapidez.

- “Só posteriormente na história que um personagem é feito de “causa” e outro de “consequência”, diz você mais a frente, Irredutível.

- Prossiga – diz Irredutível, pondo o copo em cima de uma mesa de madeira encerada.

- “O único efeito considerado... no público”...

- Quanto pudor!

- Pois bem, Irredutível. No meu entender, você usa palavras para tornar as próprias palavras em meras palavras, tentando com isso me convencer (com palavras) sobre seu argumento e, assim, faz o mesmo que critica, pois não poderia fazer diferente, a não ser se fosse telepata...

- espere... – gagueja o Irredutível.

- Não, agora me ouça, pois eu o ouvi. O materialismo oposto ao transcendentalismo diria que você está perdido em “fraseologias burguesas”. – A Vontade sorri e pigarreia. – Continuando: mas entendo o que desejas. Não se trata de olhar paras palavras, mas se bem compreendo, para “as coisas” ou, quer dizer, para as “ações”.

- ações? – Friamente o Irredutível pergunta.

- Não? Então não o compreendo. Veja: você diz, “Só posteriormente na história que um personagem é feito de “causa” e outro de “consequência”...”, o que me parece dar a ideia de algum movimento. Seria essa palavra (movimento)? Diante do olhar impenetrável do Irredutível, a Vontade prossegue.

- “O único efeito a ser considerado é o efeito que essa ou aquela aliança das palavras tem no público...”. Ora, novamente, a ação-movimento, melhor seria “deslocamento” – faz sinal de aspas com os dedos -, tem sobre um alvo. Se a palavra não é tão importante quanto dizes, mas apenas seu movimento, então eu optaria por usar “tempo”. Tudo bem?

- Pra mim, é indiferente. As palavras, como a verdade, por exemplo, em nada alteram o que estou dizendo. Use ação, movimento, efeito, deslocamento, tempo...

- Certo. Então no tempo observamos aquilo que queres que prestemos mais atenção, independente das palavras, correto?

- E o que queres que prestemos mais atenção, afinal?
            
      Faz-se silêncio.

- Seria “o efeito que essa ou aquela aliança das palavras tem no público...”? – A Vontade pergunta.

- Exato! Vês a irredutibilidade das coisas? – Triunfalmente responde, o Irredutível.

- Hm... interessante, não posso negar. Parece então que em algum tempo coisas acontecem... e o que precisamos observar são os efeitos das alianças das palavras sobre algo... assim como a aliança de palavras irredutíveis exerceu sobre mim, neste tempo em que conversamos.

- Bingo! Finalmente me entendes, Vontade. – Quase que solenemente o Irredutível responde.

            O Irredutível, finalmente, sorri de canto de lábio, com certo rubor no rosto e pescoço, dando margem até para se notar certa tensão ao contrair a garganta, como se tivesse derrotado seu interlocutor.

- então eu venci, Irredutível.

- Como? – Estarrecido e boquiaberto, o Irredutível pergunta.

- Oras, se nada se reduz a nada; se não importam os termos da discussão; se as palavras são meros meios que, juntos, geram algum efeito sobre.... (como dizes? “público?”); e se, por fim, retomo minhas palavras, “assim como a aliança de palavras irredutíveis exerceu sobre mim, neste tempo em que conversamos...”, eu, então, noto que, afinal, foi tua vontade que se exerceu sobre mim, assim como eu, que sou A Vontade, não preciso dizer mais nada, já que me manifesto na aliança de palavras que exerces sobre mim, que sou teu público.

            A mesa e o copo sobre ela permanecem ali, mas nada disseram.


*: Latour, Irreduções. Fonte:  Blog do Sociofilo. https://blogdosociofilo.com/2019/06/27/irreducoes-parte-3-por-bruno-latour/.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Duas religiões econômicas no comércio

 - Terminei. Vamos? - Diz minha pequena. - Posso ir ao banheiro? - Diz minha segunda pequena. Alguns minutos depois, caminhamos sobre o asfa...