“Só podemos
perceber algo delimitando a percepção para um espaço e numa escala temporal
circunstancial relativa aos componentes constitutivos de nossa percepção.”
* * *
Diálogo esquizofrênico entre Nietzsche e Schopenhauer
Nietzsche
pergunta, após ler o aforismo não publicado de seu mentor: - Schopenhauer, o
que isso quer dizer? Nossa percepção não é fruto da vontade e da representação?
- Não! – responde enfaticamente
Schopenhauer. – Sendo nossa capacidade perceptiva parte de nosso corpo, nosso
limite compreensivo reside na efetividade do que os latinos chamariam de realität e que eu prefiro chamar de wirklichkeit.
Nietzsche
pondera sobre as palavras do mestre.
- Gosto de clareza, não de
“hegelianismo” – prossegue Schopenhauer, percebendo a dedicação geniosa de seu
pupilo. – É preciso esclarecer que em nossa vida, somos levados a perceber as
coisas em gradações, gradientes, como um dégradé
de cores... Aliás, eu já lhe disse que eu já falei de cores a partir de Goethe?
- Claro que falaste, Schope,
sempre falas! – Diz Nietzsche, cansado dos constantes acessos de vaidade do seu
mentor.
- Bom, voltando... – retoma
Schopenhauer, disfarçando o próprio orgulho com seu trabalho. – Eu já disse na
minha principal obra que Kant se equivocou quando ignorou a experiência, apesar
de acertar quando falava das faculdades...
- Kant me causa ojeriza! Por que
deveríamos aceitar seus juízos categóricos a
priori? Acho que escreverei um aforismo, como você me ensinou, e vos
falarei: “vou escrever algo que seja além do bem e do mal” e toda essa
aberração kantiana...
- Nietzsche, sua necessidade de
chamar atenção parece maior do que a que eu tinha em juventude...
- Em juventude, Schope?
- Tudo bem, voltemos para o
começo. – Pacientemente o defunto retoma sua máxima: “Só podemos perceber algo
delimitando a percepção para um espaço e numa escala temporal circunstancial
relativa aos componentes constitutivos de nossa percepção.” – Ou seja: sim, o
primeiro nível perceptivo é intuitivo.
Não somos diferentes dos animais. Como meu cachorro, o Atma, nós percebemos o
mundo no espaço materialmente dado. Quando o exército invadia as ruas, Atma se
escondia em baixo de uma cama, pois o barulho dos disparos das armas o atingiam
muito mais do que a mim. Mas nós percebíamos a mesma coisa, não?
- Sim...
- Pois bem. Quando eu preparo a
comida de Atma, ele sente o cheiro, ouve o barulho de longe. É incrível. Com
seu olhar, civilizado, ele me observa indo de um canto a outra da casa, do
armário da cozinha ao local em que sua tigela se encontra. “Atma”, o chamo. Ele
vem abanando o rabo e, com fome, se sacia. Depois que sua vontade foi
satisfeita, ele vai até a sala e sobe numa poltrona em que eu costumava
descansar depois da natação.
- Você fala obviedades, Schope. –
reclama Nietzsche, levando a mão à testa, como que posando para uma foto com
seus longos bigodes que mais o faziam parecer com um cão da raça Dog alemão.
- Mas se é tão óbvio, você
entende que está percebendo o que Atma não consegue perceber?
- Agora me compara a um animal.
Que nojo!
- Se o faço, meu herdeiro, é
porque você poderá superar Kant ao não ignorar a relação entre vontade e
percepção. Atma casa as duas muito bem: ouviu meus passos, sentiu o cheiro,
sentiu a fome, comeu, saciou-se e, depois, descansou. Mas ele não pode superar
Kant, pois é um cachorro (mesmo que seja superior a maioria da raça humana!).
Mas você percebe que minha percepção é efetiva, e que eu estou dividindo-a com
você? Ao fazê-lo, estou despejando em você, sobre seu corpo, sobre sua vontade,
uma gradação nova em sua percepção. Depois que terminarmos aqui, seu corpo estará
um grau mais perceptivo do que estávamos antes de conversarmos.
- Novamente fala obviedades e,
claro, obviedades as quais posso simplesmente recusar, pois brotam de tua
vontade e, se estás de fato certo, até de tua moral!
- Não me atormentais, neófito! Sou
um cadáver em decomposição. Tendes compaixão. Achar-te-ão louco algum dia.
Acaso já pensasse em falar com o Jesus Cristo de Nazaré? – Schopenhauer morto
parece esboçar um sorriso após um olhar de soslaio para o seu legista,
Nietzsche.
- Se o tempo e o espaço delimitam
a percepção, então qual a importância de diferenciar graus de percepção?
- Nietzsche, me respondes: quando
vivias com teu pai, pastor, acaso tu percebias as palavras como as percebesse
depois de estudar filologia?
- Não! Óbvio que não.
- Pois então, dividas sua vida em
duas percepções sobre a efetividade do mundo. Tu o vias, o percebias. Nele tua
vontade te conduzia a teus dessabores...
- Não venha me falar de Salomé –
interrompe Nietzsche, consternado.
- Não consegui. Mais uma prova:
não seguisses meus conselhos para com as mulheres... Bem, voltemos. Tua vontade
te levou a ignorar a percepção que contigo dividi através de meus aforismos. Já
são três percepções: i) primeiro és como Atma, um animal; ii) depois
dividisse-se entre o filho do pastor e, depois, o filólogo; iii) agora és um
filósofo que, no entanto, teve a vontade que o levou ao sofrimento da
frustração do amor não correspondido por Salomé, assim percebendo que eu estava
certo o tempo todo sobre as mulheres, sobre a vontade e sobre o sofrimento. Mas
não percebesses ainda que tudo isso só pode ser compreendido na medida em que tua
percepção vai passando por diferentes relações de causa-efeito... lembre-se, a
realidade não devia ser “interpretada”, como o fez certa charlatanice do meu
tempo... a efetividade – wirklichkeit
– é melhor que “realidade” como falam os ingleses e latinos – realität, reality. Se entendes o que
digo, então notes que tu agora podes pensar na realidade e dela perceber
dimensões que, arrisco, darão problemas para pseudo-pensadores, professores de
filosofia, alunos universitários durante os próximos dois séculos, pelo menos.
Pois eles serão incapazes de compreender as relações de causa-efeito materiais,
efetivas, que estão dadas na vontade e na representação.
- Minha cabeça dói; meus olhos
estão pesados; sinto uma pressão enorme entre meus olhos. Sinto como um sino
badalando em minha cabeça. Por favor, cadáver putrefato, deixe-me em paz e
termine seu sermão. – Nietzsche deita-se no colchão velho de seu quarto, entre
quatro paredes mal cheirosas. Ele olha para o desenho que fez de Schopenhauer
na parede, que mais parecia um gnomo orelhudo ou um Orc de J. R. R. Tolkien.
- Escreve
estas palavras, Nietzsche: “Só podemos perceber algo delimitando a percepção
para um espaço e numa escala temporal circunstancial relativa aos componentes
constitutivos de nossa percepção.” Um - tua percepção é efeito de um conjunto
de causalidades; dois – tua percepção existe em algum corpo material em relação
com outros corpos e matéria; três – teus juízos decorrem do que tu podes
perceber em certo momento e sobre outros momentos que chegaram a ti como efeito
de outras causas; quarto – se as causalidades são indeterminadas pois
infinitas, então teu limite se dá através da relação entre tua percepção e o
que tu podes perceber. Assim, (tautologia) não podes perceber nada que não
possa ser percebido. Todo o resto, o que se pode perceber, decorre de teu
próprio corpo, tua vontade.
* * *
Fotos: Gabriel Brito
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