terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

Cifras e realidades ou metafísicas canibais

GB, cifra e metafísica, 2021.

Ontem tive uma “aula particular” (generosidade de um amigo) sobre partitura. Antes tive “aulas particulares” de canto (generosidade de um amore). Retribuo com a antropologia filosófica: afinal, como isso ajuda a pensar sobre as possibilidades do ser?

            Mariza Peirano, uma antropóloga veterana, diz que “antropologia não é método”. Tim Ingold, antropólogo também veterano, afirma que “antropologia é filosofia viva”, “aprendizado com outros” e, ainda, “que etnografia não é antropologia”. Eduardo Viveiros de Castro, um dos principais antropólogos da atualidade, diz que a antropologia é uma prática teórico-metodológica de descolonização constante do pensamento. Já Bruno Latour, filósofo de formação, mas antropólogo notável, diz que antropologia pode ser o auge da ciência, já que ele considera a ciência como, na prática, logística e conteúdo (produção da objetividade). Mas o que antropologia tem a ver com as aulas de música e possibilidades de “ser”?

            Em primeiro lugar cabe dizer que antropologia, atualmente, lida com metafísica. Algo que se deriva da filosofia aristotélica, portanto, filosofia grega. Porém, a antropologia lida com outras metafísicas possíveis. Isto é: ela lida até mesmo com as “metafísicas canibais” (título de um livro de Viveiros de Castro). O que isso significa? Que você pode ter sua perspectiva sobre o que significa viver, estar no mundo, conviver com outros/as, ser feliz, explicar “de onde viemos”, se existe um Deus ou mito criador que explica a realidade etc.; mas existem possibilidades alternativas de, digamos antropologicamente, outras possibilidades também existem. Em outras palavras: existem outras metafísicas que constituem outras realidades possíveis.

            Em segundo lugar cabe dizer que as aulas de “música” ajudam a pensar, por analogia, na metafísica ou em outras possibilidades de pensar o mundo, mas, como dizem o filósofo Gilles Deleuze e o psicanalista Félix Guatarri, no conceito como cifra. Para eles, a filosofia é uma arte “suprema” de criar conceitos. A cifra, portanto, “funcionaria” como, analogamente, filosofia. Mas apenas analogamente. A cifra, ou, no meu caso, a partitura, escreve a realidade sonora ou musical sobre um ordenamento escrito à tinta no papel, ao bit no digital. Desse modo, podemos pensar na aula de música como um efeito do ordenamento da música na cifra sobre o meu próprio corpo. O que quer dizer que esse gesto generoso de ensinar música a alguém ilustra muito bem como ocorre a “transmissão da cultura”, na antropologia clássica, ou a “agência” na antropologia contemporânea. Dito de outro modo: a aula de música ensina uma possibilidade de ordenamento e significação da música particular ao povo “ocidental”. Notemos: modo jônico, dórico etc., de escalas são de terras gregas, assim como a filosofia. É neste sentido, aliás, que Deleuze e Guatarri falam de geofilosofia: eles ligam o pensamento à terra, mas sem fixá-lo, como se faria em abordagens pós-coloniais e decoloniais.

Pausa dramática: já pensasse na diferença entre arte para artesanato? Dá no mesmo... a distinção é proposital e hierárquica, assim como o gosto estético, para lembrar da sociologia de Pierre Bourdieu. Na verdade, pode ser hierárquico ou não. Por isso, quando desclassificamos algo como “isso não é cultura” ou “isso não é música”, tenha-se ou não consciência, estamos com um “gosto” hierárquico em mente. O mesmo vale, também, para a escrita coloquial versus a norma culta. Já reparou que no Facebook todo mundo sabe muito bem o que alguém está falando, mesmo sem os sinais ortográficos? Pois é, há quem ache que isso é sinal de “ignorância” ou de “crise de civilização”. Tiro no pé da sociologia colonial.

Por último, essa reflexão guarda a intenção de demonstrar a possibilidade de existirem outras realidades possíveis. Dito de modo mais claro: existem outras cifras que codificam a realidade; cifras sem serem cifras; ritmos sem serem música no nosso mesmo sentido; dança sem ser dança na definição ou no sentido que a entendemos; arte e cultura sem ser no modelo do pensamento colonial. É por isso, por outro lado, que se fala tanto na antropologia de decolonizar o pensamento. De todo modo, fica a dica quanto as teorias antropológicas para pensar na música, na cultura, na arte, na filosofia e, por que não, nas possibilidades de sentidos metafísico-canibais.

 

2 comentários:

  1. Gostei muito, claro, objetivo, sem frescura.
    Duas questões:
    Estas metafísicas são enquanto significação antropológica, ou o são eu m si e por si, dando-se à percepção.
    Ao sequenciar, na conclusão, "música, cultura, arte, filosofia"; o conceito cultura nesse contexto, não carrega um sentido colonial!?!? Afinal, toda produção ou criação humana é cultura ou não!?!? Sendo pretensioso, e correndo um grande risco, música, filosofia, etc, não seriam elementos do conjunto CULTURA!?!? No

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    1. Adorei o comentário! A questão 1 mereceria uma reflexão, em si mesma, metafísica ou ontológica. Minha tese atual toca exatamente na questão que vc colocou.
      A questão 2, sobre carrega o sentido colonial é exatamente o que diz a crítica pós-colonial ou decolonial. Ou seja: a superação do conceito de cultura é, neste caso, essencial para essa corrente. O que, aliás, responde a questão sobre "tudo ser cultura": a cultura só existe enquanto conceito dentro da metafísica ocidental... outras realidades possíveis não partem dela. O metafísicas canibais, por exemplo, ao invés de falar em multiculturalismo, como no passado, fala em multinaturalismo. Mas isso é papo pra outro post. Abraço!

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