quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

A fabricação do lugar de fala e da hidroxicloroquina

 

            Eita conceito pra dar confusão! Pois é: aqui, contudo, faço um paralelo com outro post, no qual meio que comparei Djamila com Galileu, mas não porque ela é foda como ele ou vice-versa, mas sim por que deveríamos nos perguntar: o que ele e ela mudaram na sociedade de seus tempos?

            Eis o primeiro ponto! Segundo a filósofa “branca-belga” Isabelle Stengers (ver A invenção das ciências modernas, de 1993), Galileu inventou um jeito novo de racionalidade ou de argumentação. Basicamente, ela diz que ele criou um dispositivo (“máquina”) para estudar o movimento. Porém, seu instrumento exercia o seguinte papel, quando o assunto é “debate”. Ele determina “como” se deve argumentar e com “quem” se argumentará: o que, ao mesmo tempo, exclui quem não pode “falar”. No caso de Galileu foi Roma e seus políticos.

            Em outras palavras: Galileu fabricou um dispositivo que inaugura a “ciência moderna”. Podemos recorrer ao filósofo “branco-francês”, Bruno Latour (que é também sociólogo e antropólogo), que, em 1991 fez o Jamais fomos modernos: ensaios de antropologia simétrica, para lembrar de outro dispositivo que “calou” o famoso inventor de outro dispositivo, o Leviatã, Thomas Hobbes. O dispositivo que falo é a bomba de ar de Robert Boyle. Com seu dispositivo, ele comprovava que não existia “éter” (uma suposta energia que animava os corpos), pois a bomba se baseava no mover ou não mover uma pena de galinha em seu interior, demonstrando que não havia éter no vácuo da bomba. Ou seja: não tinha como ter éter no espaço. Assim, Boyle fazia com Hobbes o mesmo que Galileu fez com Roma: impedia o não cientista de “falar” sobre o fato criado pela bomba.

            Ora, tá fácil deduzir, né? Lugar de fala então é um dispositivo? Djamila o inventou? Na verdade, não: e ela, em seu livro Lugar de Fala, não diz isso. Na verdade, ela usa o livro para explicar o conceito. Com isso, ela vai na História (disciplina ou área acadêmica) e nas humanidades para: 1) explicar a origem do conceito; 2) traçar a relação histórica entre o conceito e o racismo, como utilizá-lo e, claro; 3) quem excluir.

            Se Galileu exclui da fala “não-cientistas”, neste caso, romanos e sua Igreja Cristã; e se Boyle exclui “não-cientistas”, Hobbes e a política moderna, Djamila exclui, basicamente, um outro dispositivo de seus experimentos: corpos brancos. Mas como assim? Há muita discussão e hipocrisia nesse assunto, mas basta ler Lugar de Fala para se ter claro uma coisa: essa ciência de “brancos-europeus”, como tenho enfatizado ao citar Stengers e Latour, é, historicamente, “racista” e, por conseguinte, a “verdade” que ela “descobre” sobre os “fatos” da “natureza” seriam excludentes. Isto é: como não foram pessoas pretas que fizeram essa ciência, já que eram vitimas do racismo, então a ciência social ou estruturalmente “branca”, necessariamente, excluiria “saberes” de pessoas pretas.

            O movimento é interessante. Djamila, embasada em autoras como Lélia Gonzales, bell hooks, Grada Kilomba, entre outras, noticia um acontecimento: um novo dispositivo, a saber, o “lugar de fala”. Ao invés de um dispositivo fabricado como um objeto, o lugar de fala é conceito, permanece como uma representação da realidade. Assim, ao pensar em corpos pretos vítimas do racismo, ela então pode lembrar que apenas esses corpos “podem falar sobre a experiência de viver o racismo” e, em segundo lugar, que é preciso “deixar esses corpos assumirem lugares de fala”, pois os brancos e sua ciência branca sempre excluíram: 1) outros saberes; 2) corpos não brancos dos lugares de fala.

            Dispositivo apropriado, então, para criar um acontecimento. Dispositivo mais apropriado ainda para criar uma ruptura histórica, tal qual os dispositivos científicos. Tal ruptura demarca um campo de forças e, é claro, politiza a ciência. Ao utilizar esse dispositivo conceitual, você politiza a ciência de tal modo que, como uma guilhotina revolucionária, você pode cortar a cabeça, ou a língua, de quem fala em oposição à, por que não?, ciência preta.

            Ora, isso nada tem de diferente do que fez Galileu ou Boyle. Ao criar um dispositivo, eles fizeram com que a sociedade passasse a separar, de um lado: ciência e, de outro, política. O engano, contudo, é que se espera que essas coisas, por serem diferentes, não estejam conectadas. Muito pelo contrário, o movimento que Djamila utiliza demonstra a conexão de ambas. O problema, contudo, é a redução de uma coisa à outra. Ou seja: a redução da ciência à política e da política à ciência. Isso não é diferente da politização da ciência via hidroxicloroquina. A diferença é: lugar de fala é de movimentos sociais e de progressistas; hidroxicloroquina é do populismo digital não científico.

            Repito, pra ficar claro: a analogia entre hidroxicloroquina e lugar de fala não é sobre o conteúdo, mas sobre a redução da ciência aos interesses políticos.

            Por fim, cabe ainda dizer somente que “acontecimentos”, neste uso que faço, vem dos “pesadores” brancos-europeus Gilles Deleuze e Félix Guatarri, citados por Stengers. Para eles e ela, acontecimentos são contingentes e fundam, via novos dados, formas novas de, grosso modo, ação ou pensamento. No caso de Djamila, estou dizendo que lugar de fala está aí e pronto! Onde isso vai dar é algo que não podemos predizer. Mas de uma coisa eu tenho certeza: com o populismo digital (conceito de Letícia Cesarino), a ciência parece está sendo objeto de “fala” de Jair Bolsonaro a YoutTubers. Ou seja: a ciência, antes meio que restrita a controvérsias entre cientistas, agora voltou para a “esfera pública”, como se diz nas Ciências Políticas. Os primeiros desafiados foram os “ideólogos” das Ciências Humanas (também chamados de doutrinadores/as). Agora é a medicina e seus remédios (diante da pandemia). Lugar de fala, por sua vez, desafiou a “ciência em geral”, das Humanas às ciências “positivistas” (física, química, matemática, medicina, estatística etc.). Com essas rupturas ou acontecimentos, as contingências têm – e essa é uma hipótese que precisa ser comprovada – colocado em primeiro plano a “experiência não científica” como critério de confiança.

            “Experiência não científica” é só outro nome pra automedicação. E de remédios, para a “alma” ou para o “corpo”, dependem esses sofridos corpos, ora humanos, ora desumanizados...

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