quarta-feira, 12 de agosto de 2020

Djamila, Foucault e a Episteme

     Estaríamos vivendo uma mudança no pensamento contemporâneo? É uma pergunta vaga, mas que convida à reflexão: se a Idade Contemporânea Ocidental tem início com a Revolução Francesa de 1789, estaríamos assistindo a uma "revolução não tão silenciosa" ao longo do século XX na medida em que as descolonizações pós-escravidão ocorreram?

 

Bom, retornando à França da segunda metade do século XX, encontramos um dos filósofos mais influentes e conhecidos de seu tempo: Michel Foucault (1926-1984). Uma das grandes contribuições desse filósofo foi a ideia de episteme (epistemé). Grosso modo: existiria uma maneira de pensar particular a cada época. Por exemplo: para Foucault, a locura e a razão andavam de mãos dadas antes da modernidade europeia. Depois disso, razão e loucura foram separadas e o acesso à verdade (conhecimento) só seria possível via razão[1].

 

Ora! Quanto mais eu leio sobre estudos culturais (cultura studies) e estudos subalternos (subaltern studies) - dos anos 1970 e 1980 -; estudos pós-coloniais e, mais tarde, decoloniais (e descoloniais) dos anos seguintes, que parecem ter chegado com mais força no Brasil nesta década (2010); e os "estudos sobre lugar de fala" que a Djamila não só aprofundou, mas também ajudou a difundir nos últimos anos - principalmente em tempos de Internet e de Redes Sociais -, mais eu tenho a impressão de que estamos diante de um novo modo de pensar "pós-contemporâneo", que eu chamaria de uma época decolonial, na esteira de todos esses estudos que mencionei. Em outras palavras: estou dizendo que não se trata apenas de uma epistemologia "decolonial", mas sim de um limiar entre duas épocas históricas.

 

Já não é mais uma época em que o modo de pensar científico-racional "apaga" os rastros políticos e socioculturais e estabelece um único modo privilegiado de acesso à verdade, pois já não se trata mais da possibilidade de conhecer "a verdade", mas de produzir  realidades alternativas. É o que há de comum, inclusive, com o pensamento de estadunidenses brancos e brancas, que defendiam o pragmatismo pluridemocrático e uma pluriverdade, como o filósofo e "pai da psicologia", William James (1942-1910) ou a filósofa e "mãe do serviço social", Jane Addams (1860-1935).

 

Repetindo o chavão "levando a sério" nossa interlocutora, Djamila Ribeiro, tal como Simone de Beauvoir é levada a sério pela "braquitude crítica"[esta semana sairá um post sobre branquitude e negritude escrito por um homem branco e um homem preto, no Soteroprosa], podemos nos perguntar se "lugar de fala" inaugura uma nova forma de pensamento, uma nova época para o pensamento contemporâneo. Daí a incomodar tantas pessoas que, mesmo sem brancura física, estão imersas na branquitude "do pensamento". Para meus críticos e colegas mais exigentes, digo o seguinte: se o pensamento secular se opôs ao pensamento religioso na idade contemporânea e, ainda hoje, assistimos a ascensão evangélica ao Estado brasileiro, por exemplo, nada mais "natural" ver conservadores incomodados com um novo modo de pensar (tal como crentes de outrora desaprovavam o secularismo).

Por fim, e dito de outra forma, é que lugar de fala pode estar inaugurando uma modalidade de pensamento que: 1) veio para ficar; 2) que "amarra" os corpos ao ato de conhecer, inaugurando ou dando nome a uma epistemologia que não está concentrada apenas na ideia de "verdade" ou "como é possível conhecer", mas "como conhecemos algo por meio de diferentes corpos-ambientes?": i) o meio científico objetivo; ii) o meio pessoal, subjetivo, corporal (experiência); iii) e como sintetizamos isso em novas práticas científico-políticas?

 

A única questão que precisa ser mais desenvolvida é sobre as diferenças áreas científicas, pois há uma grande distância entre Ciências da Natureza e Ciências Humanas. Essa distância, contudo, não se resume a diferentes epistemologias com uma ontologia de fundo, mas às especificidades de cada área - algo que desde o nascimento das Ciências Sociais, por exemplo, jamais foi resolvido e que, portanto, não é "culpa" de Djamila e seguidoras não terem solucionado, pois é uma questão que está no âmago da separação entre as ciências e, possivelmente, não tenho solução. Para sair do monismo de ficar "apenas na episteme inaugurada pelo lugar de fala", acredito que a filósofa belga, Isabelle Stengers, pode nos auxiliar nessa empreitada.

 

Ah, sobre os usos e abusos de "lugar de fala": migo, miga, se vcs se desentendem com seus namorados e namoradas pelo WhatsApp porque não entendem uma palavra no mesmo sentido e vcs são só duas pessoas, imaginem quando uma palavra circula pela boca de milhões ou até milhares de pessoas? ;)  

 

1: ver o artigo "O cogito e a loucura - revisitando o debate de Foucault e Derrida em torno da continuidade ou descontinuidade dos saberes", Rev. Synesis, v.5, n. 2, pp. 148-166, jul/dez. 2013, de Ronalado Filho Manzi.

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